sábado, 15 de fevereiro de 2014

A IMAGEM QUE FALTA - Rithy Panh


     Antonio Carlos Egypto


A IMAGEM QUE FALTA (L’Image Manquante).  Camboja, França, 2013.  Direção de Rithy Panh.  Documentário. 95 min.




Rithy Panh viveu na infância uma história tão absurda quanto trágica, quando teve toda a sua família dizimada pela perseguição, pela fome e pela separação de seus membros, durante o regime do Khmer Vermelho, no Camboja, entre 1975 e 1979.  Sobrevivente dessa opressão, foi viver fora do país, se tornou cineasta e seu cinema se pauta, principalmente, pelo resgate da memória daquele período histórico.  O regime, que foi capitaneado por Pol Pot, acabou virando um tabu no país, do qual ninguém fala, nem quer se lembrar.  Romper esse tabu, revirar e mexer nessas memórias, tanto as pessoais quanto as que podem ser provocadas por uma câmera que perscruta quem viveu tudo aquilo, como algoz ou vítima, é seu principal objetivo cinematográfico.

Embora militante dessa causa de explodir o tabu cambojano do Khmer Vermelho, Rithy Panh não faz um cinema de pregação ou propaganda.  Apesar de tudo o que viveu, ainda consegue ser sutil, ao mexer nesse vespeiro, que envergonha as pessoas que seguem vivas.  E registra que o Camboja foi uma subjugada colônia francesa, fazia parte da Indochina, enfrentou esse regime dito comunista do Khmer Vermelho, incompetente e delirante, mas vive hoje na mesma miséria e exploração humanas de sempre, num mundo capitalista que segue oprimindo por outros meios, perpetuando a pobreza e a miséria.

Nada se compara, é claro, ao genocídio que o Camboja viveu naqueles quatro anos da década de 1970.  Um país que tinha sete milhões de habitantes viu morrer quase dois milhões de pessoas.  Perseguidos e executados como inimigos do povo, por razões ideológicas ou por qualquer tipo de resistência a uma vida insustentável.  A maioria, porém, morreu mesmo de fome.  Não poderia sobreviver a uma política de trabalhos agrícolas forçados, de sol a sol, em busca de metas impossíveis, dependendo de uma ração de arroz cada vez mais reduzida para sobreviver.  Tudo em nome da coletivização da produção para um país que deveria, segundo seus dirigentes da época, se tornar puramente agrícola, só de camponeses e políticos.  O pai do cineasta foi o primeiro a morrer na família, de fome, por decisão própria, rejeitando a situação em que estava colocado.  O que tornou ainda pior a vida dos que ficaram.



Tudo isso fica muito evidente no filme “A Imagem que Falta”, em que Rithy Panh relata na primeira pessoa, sem que sua imagem apareça, suas memórias de infância.  Sua fala em off vai narrando a sua história.  O problema é encontrar imagens para reconstruí-la.  Não há.  O país mudou, está diferente.  O que restou de imagens daquele regime é quase sempre filme de propaganda, idealizando os avanços, com slogans ideológicos e uma postura equivocadamente patriótica.  Pode-se ver o artificialismo e a falsidade daquela publicidade, mas não basta. 

É aí que o filme de Rithy Panh inova.  Ele procurou artistas que reconstruíssem os locais, os animais e as pessoas das suas lembranças e montou as cenas todas com figuras de argila que povoam o filme do começo ao fim, entremeadas por filmes e fotos do período, aquilo que foi possível juntar.  Embora tendo partido de um livro, “A Eliminação”, de Christophe Bataille, é da sua experiência particular que se trata.  São as suas imagens criadas por meio da argila que formam a composição do filme.  Segundo o cineasta, “não é a imagem final, nem a busca de uma única imagem, mas a imagem objetiva de uma busca: a busca que o cinema permite”.


Rithy Panh

Quem viveu tal experiência, ainda que se afaste e conquiste novos rumos, nunca poderá esquecer o que viveu.  É preciso voltar às origens, para poder elaborar uma perda tão brutal, que vai das pessoas afetivamente mais importantes na vida à própria identidade nacional.  Com uma mensagem tão impactante pelo próprio testemunho pessoal, era preciso encontrar o meio, a imagem para transmiti-la.  Ele não poderia ter encontrado melhor forma do que a dos bonecos de argila, que realizam o que ele buscou e suavizam a barbárie, tornando-a mais assimilável.  A reação que produz no espectador é de interesse e de ouvir o que o cineasta tem a dizer e não de rejeição, como poderia acontecer se o filme carregasse em imagens violentas.  Um brilhante trabalho que recebeu o prêmio Um Certo Olhar, no Festival de Cannes 2013. 

“A Imagem que Falta” acabou ficando entre os cinco finalistas na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro. Só por essa razão foi lançado nos cinemas. Até então só tinha sido exibido em mostras especiais ou festivais. Deve passar meteoricamente pelos cinemas, a menos que leve a estatueta dourada, o que é bem improvável de ocorrer.


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