BIG JATO. Brasil, 2015. Direção: Cláudio de Assis. Com Matheus Nachtergaele, Marcélia Cartaxo,
Rafael Nicácio, Jards Macalé. 92 min.
É possível fazer poesia da merda? As palavras do romance de Xico Sá, com
roteiro de Anna Carolina Francisco e Hilton Lacerda, os planos do cineasta
Cláudio de Assis, aliada à fotografia de Marcelo Durst, conseguem essa proeza.
“Big Jato”, o filme de Cláudio de Assis baseado no
livro de Xico Sá, põe em evidência um limpa-fossas de uma cidade sem saneamento
básico, que é o ganha-pão de Francisco (Matheus Nachtergaele), um homem rude,
austero, trabalhador, que literalmente vive da merda dos outros. Xico (Rafael Nicácio), um garoto vivendo a
adolescência, acompanha o pai Francisco no caminhão limpa-fossa e se sente
identificado com aquele mundo.
Também se sente atraído pelo mundo um tanto delirante
do tio Nelson, artista, libertário, anarquista, que evita o trabalho pesado e
se dedica a um programa musical em rádio local, papel também de Matheus
Nachtergaele. Seu irmão Francisco
considera que ficar numa salinha com ar condicionado não é trabalhar.
A poesia é a verdadeira vocação de Xico, como se pode
ver na relação que ele mantém com o Príncipe, papel de Jards Macalé. O tio Nelson é capaz de ver isso, ajudar e
estimular Xico a sair daquele fim de mundo, onde ele próprio se afundou. Ou se fossilizou, como os peixes que teriam
dado origem à cidade, que um dia foi mar.
Se Xico Sá criou um romance de caráter
autobiográfico, dando margem a uma ficção maluca, como ele mesmo diz, Cláudio de
Assis ampliou o delírio. O Cariri
cearense da década de 1970 virou a cidade fictícia de Peixe de Pedra dos dias
atuais, o que permitiu ao diretor criar imagens fantasiosas e etéreas lado a
lado com o ambiente hiperrealista do povoado, sua gente, sua labuta. Coisas que se petrificam, se fossilizam,
sonhos delirantes com mulheres exuberantes, fantasiosos inspiradores dos Beatles e coisas quetais
convivem em harmonia com estradas de terra, buracos, sujeira, pobreza e demais
carências. Um amálgama bastante
interessante e poético. A locação na
Chapada do Araripe, entre os Estados de Ceará e Pernambuco, traz beleza e
poesia adicionais à trama.
As histórias de Xico Sá têm a ver com sua própria
experiência, pelo menos como ponto de partida.
São datadas, naturalmente.
Trazê-las para o mundo atual gera alguns anacronismos. Coisas ficam fora de lugar, apesar do esforço
de adaptá-las, como o encanto da máquina portátil de escrever, que seria mais
romântica do que o computador. O smartphone da menina que veio da cidade
grande não pega lá, se torna uma máquina fotográfica de luxo, que em nada
combina com aquele ambiente. Uma cidade
sem saneamento, sem banheiros, infelizmente, é um anacronismo cruel que ainda
faz parte da nossa realidade, a um só tempo de modernidade tecnológica e de atraso
dos mais primitivos. A mescla de
elementos de diferentes tempos tem o sentido simbólico de revelar essa mistura
estranha, que é um dos nossos espelhos.
Mas também produz um ruído na comunicação de ideias e imagens.
Matheus Nachtergaele, um dos maiores atores da
atualidade, carrega o filme e esbanja talento no desempenho duplo, do pai e do
tio de Xico, personalidades muito diversas e em conflito, vivendo realidades
distintas e distantes, no mesmo espaço geográfico. Marcélia Cartaxo faz a mãe de Xico, outro
grande desempenho que fortalece o filme.
O jovem Rafael Nicácio faz bem o importante papel que lhe coube, mas tem
uma dificuldade na dicção, que compromete a compreensão de diversas falas dele
nas cenas. O músico e compositor Jards
Macalé faz um papel que lhe cabe como uma luva, pairando sobre a narrativa. “Big
Jato” recebeu diversos prêmios no último Festival de Brasília, os de ator,
atriz, roteiro adaptado e trilha sonora.
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