Antonio
Carlos Egypto
TRILOGIA -- AS 1001 NOITES. Portugal,
2015. Direção e roteiro: Miguel Gomes.
AS 1001 NOITES: O INQUIETO, vol. 1. Elenco: Crista Alfaiate, Adriano Luz, Américo
Silva, Rogério Samora. 125 min.
AS 1001 NOITES: O DESOLADO, vol. 2. Elenco: Crista Alfaiate, Chico Chapas, Luísa
Cruz, Gonçalo Waddington. 131 min.
AS 1001 NOITES: O ENCANTADO, vol. 3. Elenco: Crista Alfaiate, Américo Silva,
Carloto Cotta, Jing Jing Guo. 125 min.
Muitas vezes, quando a gente se aproxima da
chamada realidade, ela soa surreal. Com
humor e ironia, as desgraças se convertem em estranhamentos. O excêntrico também pode ser visto como redentor.
É próprio do cinema mesclar o cotidiano e o
sonho, o real e o imaginário, a verdade factual e a ficção, de modo que essas
coisas se embaralhem e se tornem indiscerníveis. Tempo e espaço perdem, ainda, seus limites.
Alguns cineastas trabalham, de modo evidente,
com a realidade surreal, desestabilizam nossa percepção, exigem que deixemos de
lado o conforto da narrativa clássica.
Estou pensando em realizadores como o norte-americano Wes Anderson, o
sueco Roy Andersson, o chinês Jia Zhang Ke e o mestre espanhol Luís Buñuel, entre
outros. Pois o português Miguel Gomes é
um lídimo representante dessa vertente.
Seus filmes “Aquele Querido Mês de Agosto”, de 2008, e sobretudo “Tabu”,
de 2012, já eram demonstrações claras e bem sucedidas disso. A trilogia de filmes “As 1001 Noites”
sacramenta de vez a inovação narrativa do diretor, sem deixar margem a dúvidas.
Esclareça-se, de início, que são três filmes
distintos, que resultaram de uma metodologia única e da mesma estrutura formal,
no caso, emprestada das 1001 Noites, com Xerazade contando histórias ao rei,
mas não é uma adaptação, nem tem nada a ver com os contos árabes.
O que Miguel Gomes e sua equipe fizeram foi
contratar jornalistas para colher fatos importantes, surpreendentes,
significativos ou relevantes, que estivessem acontecendo em qualquer parte de
Portugal naquele momento e, a partir deles, construir uma história ficcional
que, muitas vezes, é quase documental e, outras vezes, embarca fortemente na
fantasia. Quanto mais surreal, mais
retrata Portugal em meio à crise de austeridade que assolou o país e a Europa. Mas os momentos se alternam.
O primeiro filme, “O Inquieto”, dá conta das
maldições que se abatem sobre o país, tem baleias que explodem, desempregados
que contam suas histórias, o banho (coletivo) dos magníficos, promovido por um
sindicalista em pleno inverno, e um galo que, de tanto exigirem que seja
abatido, resolve falar e explicar o que acontece. O mal estar civilizatório é muito claro e as
coisas não são o que aparentam ser.
No segundo filme, “O Desolado”, o título já
diz tudo: não parece haver solução, a desolação toma conta das vidas. Até uma juíza se verá tão aflita que chorará,
em vez de ditar a sua sentença, o suicídio se impõe na saga de um cão fiel, que
muda de dono e permanece capaz de amar da mesma forma a todos. Os animais acabam sempre abrindo o caminho da
esperança, até na desolação. Esse é o
mais bem realizado da trilogia e foi indicado por Portugal para representá-lo
no Oscar de filme estrangeiro.
O terceiro filme, “O Encantado”, descobre que
há vida e esperança na simplicidade e na paixão: no caso dos passarinheiros, em
que aprendemos que os tentilhões podem ser ensinados a cantar, os passarinhos
não nascem sabendo, aprendem com os mais velhos e podem aprender o canto de
outra espécie, se forem treinados para tal.
A poesia encontra seu lugar. A
revolução dos cravos é lembrada, as recompensas afetivas ganham destaque.
São as diversas faces dos homens e das suas
circunstâncias, pensando em Sartre, o que Miguel Gomes mostra nessa trilogia,
muito bem realizada, em que pesem alguns maus momentos, como “os homens de pau
feito”, no primeiro filme. Já o do
“Simão sem Tripas” é uma das histórias saborosas que os filmes têm a contar.
Cada um dos filmes vale por si só, independe
dos outros. É possível assistir a eles
isoladamente e em qualquer ordem. Não
são partes sequenciais. São diferentes
histórias que se relacionam a diferentes momentos e espaços da vida portuguesa
atual. Em conjunto, formam um painel
amplo e diverso, bastante ilustrativo da sociedade que procuram retratar.
“As 1001 Noites” de Miguel Gomes é um dos
principais destaques da 39ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Não pode faltar no cardápio dos cinéfilos,
que se alimentam do cinema autoral do evento mais aguardado da cidade, todos os
anos.
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