Antonio Carlos Egypto
Eu fui descobrindo a obra maiúscula do diretor português Manoel de Oliveira, pouco a pouco, a cada edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e ele, praticamente, esteve em todas as edições da Mostra, a partir da 3ª., há 30 anos, quando foi exibido “Amor de Perdição”, adaptação do romance clássico de Camilo Castelo Branco, de 1863, em filme de 1978.
De lá para cá, é sempre uma agradável surpresa aguardar pelo novo filme do centenário realizador. Ele já completou 100 anos de idade e continua produzindo um filme por ano, tirando todo o atraso que o regime salazarista de Portugal lhe impôs. Manoel de Oliveira busca sempre realizar adaptações literárias que tragam uma reflexão nova e original sobre o mundo contemporâneo, a história, as crenças e costumes, com base em contrastes e estranhezas.
Em “Non, ou a vã glória de mandar”, de 1990, um grupo de soldados e um subtenente que estão numa patrulha conversam longamente na carroceria de um veículo militar, enquanto se deslocam, relembrando a história de Portugal por meio de suas derrotas, até chegar à Revolução dos Cravos, em 1974. Estranhíssimo e original. Uma situação improvável, que nos enche de informações relevantes, de forma irônica. Nunca esqueci essa admirável sessão de cinema.
Outro filme com uma cena marcante do mestre Manoel de Oliveira é “Viagem ao princípio do mundo”, de 1997, filme protagonizado por Marcello Mastroianni, que faz um ator nascido na França, filho de um português morto há muito tempo. Ele decide visitar a aldeia rural onde seu pai nascera, na esperança de encontrar uma velha tia. Ele a encontra, mas a tia não se conforma que ele seja seu sobrinho e não a entenda, não fale a sua língua. É uma dessas cenas inesquecíveis da história do cinema. Esse foi o último filme do grande ator italiano, que morreu logo depois das filmagens, embora tenha deixado bilhete ao diretor, dizendo que estaria à disposição para novos filmes, sempre que Manoel de Oliveira o chamasse.
Em “A carta”, de 1999, adaptando o romance do século XVII “La Princesse de Madame”, de La Fayette, o diretor faz uma leitura do texto, contando uma história de amor entre Mademoiselle de Chartres, do passado, e um cantor de rock, do século XX, Pedro Abrunhosa. Segundo o diretor, trata-se de “uma história passional, com fragmentos de uma visão social, que nos mostra a desordem que assola, com a mesma crueldade do passado, nosso mundo incorrigível”. Mais uma vez, original e profundo.
Em “Palavra e utopia”, filme de fruição mais difícil e erudita, Manoel de Oliveira presta tributo ao padre Antonio Vieira e seus famosos sermões. Em 1663, o padre é convocado a responder à Inquisição portuguesa sobre suas ideias a respeito da escravidão, da situação dos índios e das relações império-colônia. Mais uma aula de história e elementos para reflexão, em filme que contou com Lima Duarte no elenco.
O mito do rei português D. Sebastião, desaparecido em 1578 numa batalha, e cuja lenda indica que um dia voltará como aparição no meio da névoa, é relembrado em “O quinto império: ontem como hoje”, de 2004, adaptação do livro “El-Rei Sebastião”, de José Régio. A figura lendária do “Escondido” também aparece numa lenda muçulmana, segundo a qual um imã voltaria um dia montado num cavalo branco, numa manhã de neblina, para destruir o mal e restabelecer a paz e a harmonia entre os homens.
O “Espelho mágico”, de 2005, se baseia no romance “A alma dos ricos”, de Agustina Bessa-Luis, autora frequentemente visitada pelo cinema de Manoel de Oliveira. Aqui, a aristocrática Alfreda tem certeza de que a Virgem Maria aparecerá para ela, já que é uma mulher de fé e rica. Ela não aceita que a aparição da Virgem ainda não tenha acontecido em sua vida. Além disso, crê que Maria e Jesus teriam sido, na verdade, ricos como ela. Uma história sensacional e inusitada, com um elenco de peso internacional. Além de Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra e Ricardo Trepa, lá estão também Michel Piccoli, Marisa Paredes e Lima Duarte.
Em “Um filme falado”, de 2003, Manoel de Oliveira reuniu também um elenco internacional. Leonor Silveira, Catherine Deneuve, Stefania Sandrelli, Irene Papas e John Malkovich atuam, cada qual falando sua língua, e num jantar todos se entendem, apesar disso. Outra cena antológica para a história do cinema. O filme se passa num navio, em que o cruzeiro visita lugares que marcam as diferentes culturas da civilização ocidental. Toda essa diversidade, cordialidade e entendimento sofrerão abalo decisivo ao final da jornada. Grande filme.
Haveria muitos outros a mencionar, como “O Convento”, de 1995, em que um pesquisador americano se dispõe a provar que Shakespeare teria sido espanhol e não britânico, ou “Vale Abraão”, de 1993, adaptação do clássico “Madame Bovary”, de Flaubert. Mas vamos incluir uma palavra sobre o mais recente filme de Oliveira: “Singularidades de uma rapariga loura”, de 2009.
“Singularidades...” é baseado em conto de Eça de Queiroz. Uma paixão que se dá a partir da sacada de um escritório e da janela de uma casa. Macário (Ricardo Trepa) tem sua vida transformada pela paixão por uma linda loira (Catarina Wallenstein) e seu maravilhoso leque. Até que sua singularidade transforma tudo, abruptamente. E é como esse pequeno (63 min) grande filme termina: abruptamente.
O escritório é tradicional, assim como as casas, a loja de tecidos e outros ambientes mostrados no filme. Embora os preços sejam em euro, é do Portugal mais tradicionalista e conservador que se está tratando: remete a Salazar e até ao século XIX, de Eça de Queiroz, como que a revelar que, a despeito do Portugal moderno e progressista, a tradição pesa e está fortemente presente, para o bem e para o mal.
Sei que muita gente que gosta de cinema ainda torce o nariz para os filmes de Manoel de Oliveira. Reclama dos seus tempos lentos ou de sua erudição. Outros não curtem o seu cinema, por considerá-lo muito literário. É uma pena, porque descobrir a obra desse mestre do cinema é um prazer que compensa qualquer esforço inicial que tenhamos de fazer para penetrar em seu território.
Os interessantes comentários analíticos do Egyto sobre Manoel de Oliveira fizeram com que eu revivesse, filme a filme, o prazer que tive ao assistí-los.
ResponderExcluirFrancisco Monteagudo.
A interessantíssima apreciação analítica do Egyto sobre Manoel de Oliveira fez com que eu, a cada filme comentado, revivesse o enorme prazer que tive ao assistí-los. Francisco Monteagudo.
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