domingo, 15 de novembro de 2009

MANOEL DE OLIVEIRA: REALIZADOR CENTENÁRIO





Antonio Carlos Egypto


Eu fui descobrindo a obra maiúscula do diretor português Manoel de Oliveira, pouco a pouco, a cada edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e ele, praticamente, esteve em todas as edições da Mostra, a partir da 3ª., há 30 anos, quando foi exibido “Amor de Perdição”, adaptação do romance clássico de Camilo Castelo Branco, de 1863, em filme de 1978.

De lá para cá, é sempre uma agradável surpresa aguardar pelo novo filme do centenário realizador. Ele já completou 100 anos de idade e continua produzindo um filme por ano, tirando todo o atraso que o regime salazarista de Portugal lhe impôs. Manoel de Oliveira busca sempre realizar adaptações literárias que tragam uma reflexão nova e original sobre o mundo contemporâneo, a história, as crenças e costumes, com base em contrastes e estranhezas.

Em “Non, ou a vã glória de mandar”, de 1990, um grupo de soldados e um subtenente que estão numa patrulha conversam longamente na carroceria de um veículo militar, enquanto se deslocam, relembrando a história de Portugal por meio de suas derrotas, até chegar à Revolução dos Cravos, em 1974. Estranhíssimo e original. Uma situação improvável, que nos enche de informações relevantes, de forma irônica. Nunca esqueci essa admirável sessão de cinema.

Outro filme com uma cena marcante do mestre Manoel de Oliveira é “Viagem ao princípio do mundo”, de 1997, filme protagonizado por Marcello Mastroianni, que faz um ator nascido na França, filho de um português morto há muito tempo. Ele decide visitar a aldeia rural onde seu pai nascera, na esperança de encontrar uma velha tia. Ele a encontra, mas a tia não se conforma que ele seja seu sobrinho e não a entenda, não fale a sua língua. É uma dessas cenas inesquecíveis da história do cinema. Esse foi o último filme do grande ator italiano, que morreu logo depois das filmagens, embora tenha deixado bilhete ao diretor, dizendo que estaria à disposição para novos filmes, sempre que Manoel de Oliveira o chamasse.

Em “A carta”, de 1999, adaptando o romance do século XVII “La Princesse de Madame”, de La Fayette, o diretor faz uma leitura do texto, contando uma história de amor entre Mademoiselle de Chartres, do passado, e um cantor de rock, do século XX, Pedro Abrunhosa. Segundo o diretor, trata-se de “uma história passional, com fragmentos de uma visão social, que nos mostra a desordem que assola, com a mesma crueldade do passado, nosso mundo incorrigível”. Mais uma vez, original e profundo.

Em “Palavra e utopia”, filme de fruição mais difícil e erudita, Manoel de Oliveira presta tributo ao padre Antonio Vieira e seus famosos sermões. Em 1663, o padre é convocado a responder à Inquisição portuguesa sobre suas ideias a respeito da escravidão, da situação dos índios e das relações império-colônia. Mais uma aula de história e elementos para reflexão, em filme que contou com Lima Duarte no elenco.

O mito do rei português D. Sebastião, desaparecido em 1578 numa batalha, e cuja lenda indica que um dia voltará como aparição no meio da névoa, é relembrado em “O quinto império: ontem como hoje”, de 2004, adaptação do livro “El-Rei Sebastião”, de José Régio. A figura lendária do “Escondido” também aparece numa lenda muçulmana, segundo a qual um imã voltaria um dia montado num cavalo branco, numa manhã de neblina, para destruir o mal e restabelecer a paz e a harmonia entre os homens.

O “Espelho mágico”, de 2005, se baseia no romance “A alma dos ricos”, de Agustina Bessa-Luis, autora frequentemente visitada pelo cinema de Manoel de Oliveira. Aqui, a aristocrática Alfreda tem certeza de que a Virgem Maria aparecerá para ela, já que é uma mulher de fé e rica. Ela não aceita que a aparição da Virgem ainda não tenha acontecido em sua vida. Além disso, crê que Maria e Jesus teriam sido, na verdade, ricos como ela. Uma história sensacional e inusitada, com um elenco de peso internacional. Além de Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra e Ricardo Trepa, lá estão também Michel Piccoli, Marisa Paredes e Lima Duarte.

Em “Um filme falado”, de 2003, Manoel de Oliveira reuniu também um elenco internacional. Leonor Silveira, Catherine Deneuve, Stefania Sandrelli, Irene Papas e John Malkovich atuam, cada qual falando sua língua, e num jantar todos se entendem, apesar disso. Outra cena antológica para a história do cinema. O filme se passa num navio, em que o cruzeiro visita lugares que marcam as diferentes culturas da civilização ocidental. Toda essa diversidade, cordialidade e entendimento sofrerão abalo decisivo ao final da jornada. Grande filme.

Haveria muitos outros a mencionar, como “O Convento”, de 1995, em que um pesquisador americano se dispõe a provar que Shakespeare teria sido espanhol e não britânico, ou “Vale Abraão”, de 1993, adaptação do clássico “Madame Bovary”, de Flaubert. Mas vamos incluir uma palavra sobre o mais recente filme de Oliveira: “Singularidades de uma rapariga loura”, de 2009.

“Singularidades...” é baseado em conto de Eça de Queiroz. Uma paixão que se dá a partir da sacada de um escritório e da janela de uma casa. Macário (Ricardo Trepa) tem sua vida transformada pela paixão por uma linda loira (Catarina Wallenstein) e seu maravilhoso leque. Até que sua singularidade transforma tudo, abruptamente. E é como esse pequeno (63 min) grande filme termina: abruptamente.

O escritório é tradicional, assim como as casas, a loja de tecidos e outros ambientes mostrados no filme. Embora os preços sejam em euro, é do Portugal mais tradicionalista e conservador que se está tratando: remete a Salazar e até ao século XIX, de Eça de Queiroz, como que a revelar que, a despeito do Portugal moderno e progressista, a tradição pesa e está fortemente presente, para o bem e para o mal.

Sei que muita gente que gosta de cinema ainda torce o nariz para os filmes de Manoel de Oliveira. Reclama dos seus tempos lentos ou de sua erudição. Outros não curtem o seu cinema, por considerá-lo muito literário. É uma pena, porque descobrir a obra desse mestre do cinema é um prazer que compensa qualquer esforço inicial que tenhamos de fazer para penetrar em seu território.

2 comentários:

  1. Os interessantes comentários analíticos do Egyto sobre Manoel de Oliveira fizeram com que eu revivesse, filme a filme, o prazer que tive ao assistí-los.
    Francisco Monteagudo.

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  2. A interessantíssima apreciação analítica do Egyto sobre Manoel de Oliveira fez com que eu, a cada filme comentado, revivesse o enorme prazer que tive ao assistí-los. Francisco Monteagudo.

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