Antonio Carlos Egypto
BENEDETTA (Benedetta). França,
2021. Direção (e roteiro com David
Birke): Paul Verhoeven. Elenco:
Virginie Efira, Charlotte Rampling, Daphne Patakia, Lambert Wilson. 130 min.
O diretor holandês Paul Verhoeven
sempre curtiu erotismo e violência em tom provocativo, com a intenção de mexer
com o estabelecido, sacudir conceitos, valores, estruturas. “Instinto Selvagem”, de 1992, e “O Quarto
Homem”, de 1983, são apenas dois exemplares conhecidos do seu trabalho. Há coisas bem mais explícitas do período
eminentemente contestatório dos hippies, por exemplo. Pois bem, aos 83 anos de idade, ele continua
sendo um jovem iconoclasta.
“Benedetta” explicita a hipocrisia da
Igreja Católica, seus conventos de freiras e representantes do Vaticano, no
período do Renascimento italiano e também Contra-Reforma. A partir de fatos verdadeiros, ocorridos no
século XVII, na cidade de Péscia, na Toscana, no Convento Madre de Deus,
relatados no romance da historiadora inglesa Judith C. Brown, “The Life of a
Lesbian Nun in Renaissance Italy”.
Freira lésbica? Vem polêmica por
aí, é claro!
O lesbianismo da freira Benedetta
(Virginie Efira) e sua parceira de convento Bartolomea (Daphne Patakia) é
central na trama, mas há muitos outros elementos importantes no caso
Benedetta. Ela fazia milagres, tinha
visões, falava com Jesus, que lhe indicava caminhos e previa coisas que viriam
a acontecer, incluindo sua própria morte e a erupção de uma peste, amplamente
mortal, no estilo da nossa pandemia atual.
A palavra de Deus determina atitudes,
posicionamentos na escala de poder, promove e destrona figuras que vão do rés
do chão ao topo e vice-versa. Julga,
tortura, prende e mata infiéis. E onde
está essa palavra, afinal?
O problema é que tudo isso pode ser
uma grande farsa, uma mentira, teatralizada por grandes crises, convulsões,
histeria. Na base de tudo, o sexo
reprimido, que explode onde e quando menos se espera.
O que é muito interessante, também, é
debater o que há de intencional, consciente, nesta história de uma figura que
assume ares de fanatismo, premonição, santidade, engodo e bruxaria. O que é e onde está a verdade? Um heroísmo do tipo Joana D’Arc se
materializa quando a cidade de Péscia escapa da tal peste destruidora, que ela
anteviu e teria sido responsável por sua não expansão à localidade. Mas o núncio apostólico do Vaticano (Lambert
Wilson) e a abadessa irmã Felicità (Charlotte Rampling) serão atingidos. Evidentemente, isso não é aleatório na
trama. Não significa, porém, que o
contexto do bem e do mal esteja claramente traçado. Longe disso.
A principal provocação está justamente aí. Não tanto no objeto de estímulo sexual
acoplado à imagem de Nossa Senhora, que tem provocado escândalo. Provocou escândalo? Difícil escandalizar nos dias de hoje.
Algumas pessoas se sentem atingidas em
suas crenças por coisas assim, que na verdade questionam, mas não invalidam a
crença de ninguém. Se fosse assim, os
inúmeros casos comprovados de pedofilia dos sacerdotes católicos, em várias
partes do mundo, já teriam posto abaixo a própria Igreja Católica. Suponho que
os evangélicos se incomodem com as fortunas que se ligam a pastores, que não só
enriquecem como constroem impérios de poder.
Que espíritas se abalem com Joões de Deus, que além de enriquecer abusam
sexualmente de pacientes, abalados por suas doenças. Esse tipo de desumanidade, crueldade,
insensibilidade com os vulneráveis está em toda parte, não só nas
religiões. Infelizmente.
Se o cinema de Paul Verhoeven cultiva
excessos, é um modo de atacar questões que, estas, sim, escandalizam pela sua
simples existência. Algumas cenas e
imagens podem não ser de bom gosto. Têm a intenção de chamar a atenção, de
provocar. Podem não agradar a muitos,
mas têm sua função. Fazem parte do
estilo de um diretor já consagrado por uma vasta obra cinematográfica.
“Benedetta” é uma realização muito
boa. Mostra uma movimentação de câmera
intensa, que acompanha personagens com densidade psicológica. Explora uma dimensão política importante, num
tema histórico, aparentemente distante do nosso tempo. Virginie Efira brilha como Benedetta,
Charlotte Rampling está muito bem como a superiora do convento, capaz de
administrar uma justiça que passa pelos interesses financeiros da
instituição. Lambert Wilson, muito bem
também, como o núncio que representa a hierarquia eclesiástica, num tempo em
que bruxas queimavam na fogueira, e ele nunca perde a pose. A jovem Daphne Patakia tem uma forte
interpretação de figura mais guiada pelo instinto ou pelo desejo do que pelas
coisas divinas. Todo o elenco tem
desempenho muito apropriado para uma história desafiante e cínica, como a de
“Benedetta”.
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