terça-feira, 7 de outubro de 2008

CARLOS REYGADAS, LUZ SILENCIOSA E O CINEMA CONTEMPORÂNEO

Antonio Carlos Egypto













Luz Silenciosa (Stellet Licht), México, França, Holanda, 2007. Direção: Carlos Reygadas. Com: Cornelio Wall Fehr, Miriam Toews e Maria Pankratz. 127 min.

"Luz Silenciosa", o filme do mexicano Carlos Reygadas, é um belo exemplar do que poderíamos chamar de cinema contemplativo. Os primeiros minutos, assim como o tempo final, equivalem a assistir ao pôr do sol, ao anoitecer e ao raiar do dia serenamente no campo. Com o domínio do tempo, que só o cinema pode fazer, pelos recursos de montagem e decupagem, o deslumbramento das imagens toma conta da tela grande e arrebata. Pelo menos, aqueles que não se deixaram viciar pelos ritmos frenéticos hollywoodianos.

Os tempos de "Luz Silenciosa" e sua estrutura narrativa remetem ao clássico dinamarquês de Carl Dreyer, "A Palavra", de 1955. Este filme, assim como a obra de Dreyer como um todo, foi fonte de inspiração para Ingmar Bergman, o maior cineasta sueco de todos os tempos.

"Gritos e Sussurros", de 1972, uma verdadeira obra-prima de Bergman, também dialoga com "A Palavra" e está fortemente presente em "Luz Silenciosa". Reygadas bebeu dessas fontes, procurando refazer o caminho antes trilhado por eles, não em busca de parodiá-los, mas enquanto exercício de estilo, metalingüístico, que pode ser chamado de imitativo, de tão colado que está nessas referências do cinema moderno, que são Dreyer e, sobretudo, Bergman. Por isso mesmo, rigorosamente alinhado ao cinema contemporâneo. O caráter imitativo presente no cinema contemporâneo não é mero plágio, ou repetição. É muitas vezes citação do que merece ser lembrado ou rediscutido, mas também o que merece ser reconstruído, seja enquanto reflexão, seja enquanto linguagem cinematográfica. Ou, ainda, como refacção de outras manifestações artísticas, como a pintura ou o teatro.

Os valores e estilos de vida praticados pelos protestantes, seus conflitos com a realidade e entre eles próprios, são tão caros à visão religiosa de Dreyer quanto ao questionamento de Deus e das religiões de Bergman. Para penetrar neste mundo mais convincentemente nos dias atuais, Reygadas recorreu a uma comunidade protestante, isolada dos valores contemporâneos: os menonitas. Vivendo num mundo à parte, que rejeita o progresso e professa um pacifismo radical, eles estão muito próximos das vivências e conflitos das comunidades focalizadas por Dreyer e das experiências e observações que preencheram a infância de Bergman.

Verdades rígidas em oposição a paixões que escapam ao controle e modificam as pessoas, trazendo sofrimento, mas também avanços, fazem parte da estrutura narrativa da obra, tanto de Reygadas, como dessas grandes referências que ele buscou. A cena da morta que volta à vida é emblemática e entrelaça os três diretores, com sentidos distintos, porém, similares: é uma questão transcendental, de algum modo “espiritual”, que ali está colocada.

É do significado da morte, da relação que estabelecemos com os mortos e do que muda com a partida deles, que se trata. E, ainda, do que aconteceria se houvesse o retorno. A refacção por Reygadas da mesma cena do “milagre” de Dreyer, que inspirou Bergman a realizar uma das cenas mais fortes e tocantes sobre a dor e a incapacidade de viver afetos profundos, mesmo após a morte, é uma referência lingüística que ultrapassa o seu significado.

É o cinema reverenciando o que o cinema já produziu de melhor, mostrando que ser contemporâneo não significa, necessariamente, se opor às tradições, mas comporta até mesmo cultuá-las, a partir das próprias experiências subjetivas (no caso, as de cinéfilo), na busca de um sentido universal, único. Em última análise, em busca do essencial.

Reygadas, ao realizar um filme tão contemplativo, também questiona o cinema frenético e acelerado que se tornou hegemônico, procurando levar o espectador a recuperar uma possível dimensão esquecida, ou pouco experimentada na atualidade.

Não por acaso, o mexicano Carlos Reygadas faz parte da lista dos sessenta cineastas contemporâneos, destacados pelo Cinema Now. Ele, sem dúvida, tem grandes méritos para figurar nesta lista dos cineastas, nascidos após 1950, que realizam um trabalho de peso para a história do cinema contemporâneo, que agora se constrói. Certamente ele faz parte deste cinema que se refaz e se recicla na contemporaneidade. São filmes que aspiram a ser mais do que um simples filme, ou seja, que querem ir além do contar histórias, mesmo que de forma não linear ou em ordem inversa.

Os recursos que o cinema tem hoje permitem muito mais experimentação, relacionamento com outras formas de arte, busca de significados, idéias-força, questionamentos e renovação da sua linguagem. Cada filme contemporâneo poderia ser o germe de uma dessas buscas, ressignificando o próprio cinema, em especial num momento em que a tecnologia digital democratiza o acesso de todos à sua linguagem.

"Luz Silenciosa" é um trabalho artístico respeitável de um cineasta que não chega a alcançar o talento de seus grandes inspiradores. Mas não é pouco oferecer um belo filme contemplativo com base em referências como Dreyer, Bergman (e, também, Tarkovsky), aos cinéfilos da atualidade.

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