CONTO
DE FADAS (Shazka). Rússia, 2022. Direção e roteiro: Alexandr
Sokurov. Elenco: Alexander Sagabashi,
Wakhtang Kuchava, Fabio Mastrangelo, Lothar Deeg. 80 min.
O
cinema joga com o tempo, o espaço, a realidade, o sonho, a imaginação, a
fantasia. Grandes criações partiram de explorações inusitadas de um ou mais
desses aspectos. O êxito da produção
depende, essencialmente, da forma, da criatividade com que esses elementos são
trabalhados. Em princípio, tudo é
possível e é muito interessante quebrar regras, expectativas, tirar o
espectador da sua zona de conforto.
Estou
falando tudo isso para entrar no novo filme de Alexandr Sokurov, um diretor
autoral russo para lá de inovador e criativo, capaz de gerar uma estética cheia
de beleza e que dialoga com o tema tratado pelo filme à perfeição. É o caso da louca proposta de “Conto de
Fadas”, um sonho, ou melhor, um pesadelo.
Um lindo pesadelo.
Supostamente
as almas dos que morrem, ou parte delas, não vão direto para o paraíso nem para
o inferno. Ficam num limbo chamado
purgatório, à espera de uma decisão final de Deus, sobre o seu paradeiro. Não sei se nos dias de hoje o Papa Francisco
ainda fala em purgatório ou valida sua existência. Enfim, seja como for, no filme de Sokurov, lá
está o purgatório e rodeado de figuras históricas, vagando a esmo. Ninguém menos do que Adolf Hitler, Benito
Mussolini, Joseph Stalin e Winston Churchill.
Surpreendentemente,
também está por lá Cristo, deitado, amargando ainda as dores da crucificação, à
espera do chamado do Pai. Também aparece
por lá Napoleão Bonaparte. E muitos
outros, soldados, o povo destroçado pelas guerras que esses senhores produziram
ou que se fazem ainda em nome deles ou de suas ideias disruptivas.
Eles
convivem entre si, envergando suas roupas que remetem aos impérios e à
militarização dos conflitos.
Observam-se, comentam as vestimentas, coisas pessoais, têm tiradas
irônicas ou sarcásticas, uns em relação aos outros, pensam sobre a vida que
levam agora e a que levaram antes. Tudo
de modo amistoso e sem pressa. Afinal,
tempo ali não vale mais nada.
Sokurov,
muito ligado aos fatos históricos e aos personagens do poder que os encarnam,
coloca-os num mundo de fantasia que, como eu disse antes, é um verdadeiro
pesadelo. Poderia ser insuportável se
não fosse bonito, fotografado em preto e branco, mas contendo cores em algumas
poucas cenas, projetado em tela quadrada, em enquadramentos maravilhosos. E altamente expressivos. Remetem ao momento de expectativa e
frustração que se vive no purgatório, à espera de uma porta que parece não
querer se abrir para ninguém, ao menos por muito tempo ainda.
Acompanhamos
essa aventura post mortem de
personagens tão conhecidos quanto polêmicos (alguns claramente odiados). Se podemos embarcar na fantasia absoluta de
uma Mary Poppins, de um Batman ou de um Homem Aranha, por que não podemos
embarcar nessa fantasia histórico-realista?
É original e artisticamente relevante.
Para
quem não está se lembrando, Alexandr Sokurov é o diretor do brilhante “Fausto”
(2011), do inovador “Arca Russa” (2002), filmado de uma só vez no Museu
Hermitage para contar a história russa, e também de “Francofonia – Louvre Sob
Ocupação” (2015), que mostra o museu como elemento vivo da civilização humana e
do que a arte nos ensina sobre a história e o poder.
Em
“Conto de Fadas” Sokurov montou uma
estrutura narrativa que envolve atores vivendo os personagens, que se
multiplicam, e imagens originais dos citados, manipuladas para existir e
interagir com os elementos oníricos do filme, com clareza cristalina. Mas também em meio a brumas e distorções de
imagens, sempre que é necessário enfatizar algo. O início do filme informa que foram
utilizadas imagens de arquivo, mas não recursos de inteligência artificial para
essa criação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário