terça-feira, 21 de maio de 2024

CONTO DE FADAS

                           

 Antonio Carlos Egypto

 


CONTO DE FADAS (Shazka).  Rússia, 2022. Direção e roteiro: Alexandr Sokurov.  Elenco: Alexander Sagabashi, Wakhtang Kuchava, Fabio Mastrangelo, Lothar Deeg.  80 min.

 

O cinema joga com o tempo, o espaço, a realidade, o sonho, a imaginação, a fantasia. Grandes criações partiram de explorações inusitadas de um ou mais desses aspectos.  O êxito da produção depende, essencialmente, da forma, da criatividade com que esses elementos são trabalhados.  Em princípio, tudo é possível e é muito interessante quebrar regras, expectativas, tirar o espectador da sua zona de conforto.

 

Estou falando tudo isso para entrar no novo filme de Alexandr Sokurov, um diretor autoral russo para lá de inovador e criativo, capaz de gerar uma estética cheia de beleza e que dialoga com o tema tratado pelo filme à perfeição.  É o caso da louca proposta de “Conto de Fadas”, um sonho, ou melhor, um pesadelo.  Um lindo pesadelo.

 

Supostamente as almas dos que morrem, ou parte delas, não vão direto para o paraíso nem para o inferno.  Ficam num limbo chamado purgatório, à espera de uma decisão final de Deus, sobre o seu paradeiro.  Não sei se nos dias de hoje o Papa Francisco ainda fala em purgatório ou valida sua existência.  Enfim, seja como for, no filme de Sokurov, lá está o purgatório e rodeado de figuras históricas, vagando a esmo.  Ninguém menos do que Adolf Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin e Winston Churchill.

 


Surpreendentemente, também está por lá Cristo, deitado, amargando ainda as dores da crucificação, à espera do chamado do Pai.  Também aparece por lá Napoleão Bonaparte.  E muitos outros, soldados, o povo destroçado pelas guerras que esses senhores produziram ou que se fazem ainda em nome deles ou de suas ideias disruptivas. 

 

Eles convivem entre si, envergando suas roupas que remetem aos impérios e à militarização dos conflitos.  Observam-se, comentam as vestimentas, coisas pessoais, têm tiradas irônicas ou sarcásticas, uns em relação aos outros, pensam sobre a vida que levam agora e a que levaram antes.  Tudo de modo amistoso e sem pressa.  Afinal, tempo ali não vale mais nada.

 

Sokurov, muito ligado aos fatos históricos e aos personagens do poder que os encarnam, coloca-os num mundo de fantasia que, como eu disse antes, é um verdadeiro pesadelo.  Poderia ser insuportável se não fosse bonito, fotografado em preto e branco, mas contendo cores em algumas poucas cenas, projetado em tela quadrada, em enquadramentos maravilhosos.  E altamente expressivos.  Remetem ao momento de expectativa e frustração que se vive no purgatório, à espera de uma porta que parece não querer se abrir para ninguém, ao menos por muito tempo ainda. 

 


Acompanhamos essa aventura post mortem de personagens tão conhecidos quanto polêmicos (alguns claramente odiados).  Se podemos embarcar na fantasia absoluta de uma Mary Poppins, de um Batman ou de um Homem Aranha, por que não podemos embarcar nessa fantasia histórico-realista?  É original e artisticamente relevante.

 

Para quem não está se lembrando, Alexandr Sokurov é o diretor do brilhante “Fausto” (2011), do inovador “Arca Russa” (2002), filmado de uma só vez no Museu Hermitage para contar a história russa, e também de “Francofonia – Louvre Sob Ocupação” (2015), que mostra o museu como elemento vivo da civilização humana e do que a arte nos ensina sobre a história e o poder.


Em “Conto de Fadas”  Sokurov montou uma estrutura narrativa que envolve atores vivendo os personagens, que se multiplicam, e imagens originais dos citados, manipuladas para existir e interagir com os elementos oníricos do filme, com clareza cristalina.  Mas também em meio a brumas e distorções de imagens, sempre que é necessário enfatizar algo.  O início do filme informa que foram utilizadas imagens de arquivo, mas não recursos de inteligência artificial para essa criação.

 

 

 

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