A SEPARAÇÃO (Jodaeiye Nader Az Simin). Irã, 2010. Roteiro e direção: Asghar Farhadi. Com Leila Hatami, Peyman Moadi, Sarina Farhadi. 123 min.
“A Separação”, como indica o título brasileiro, é um filme iraniano que trata da separação de um casal: Nader (Peyman Moadi) e Simin (Leila Hatami) e das consequências que isso traz para a vida, não só dos dois, da filha de 11 anos e do pai dele, idoso, com mal de Alzheimer, como também para a empregada diarista, que Nader contrata, seu marido e a filha pequena. As duas famílias acabarão num julgamento, que envolverá aspectos culturais, morais e religiosos. E incluirá ainda outras pessoas que se relacionaram, de algum modo, com as duas famílias. Um belo imbróglio, cheio de novidades e reviravoltas, de que um roteiro muito bem construído dá conta com talento.
A primeira cena já surpreende: diante de um juiz, o casal tenta explicar por que quer se divorciar. Ela quer ir ao exterior, ele, não. Alega que tem de cuidar do pai e não entende a importância dessa viagem, de apenas uma ou duas semanas. Nem nós, nem o juiz, que alega motivo fútil para o pedido.
Considerando-se, porém, que o Irã atual é um regime fechado e que é difícil obter autorização para sair do país, mesmo por um prazo máximo limitado a duas semanas, cujo efeito tem prazo de validade, entende-se a ansiedade de Simin. Em quarenta dias, suas chances de viajar se evaporam. Mas será que ela quer, mesmo, fazer uma curta viagem de turismo, visita a familiares ou algo do gênero (não é explicado isso na cena) ou ela pretende evadir-se, abandonar o país e, talvez, a própria família?
Isso é só o começo da trama, que tratará de inúmeras questões-problema do país e do regime, como quem não quer nada. Aparentemente, está apenas contando um melodrama familiar, sem conotações políticas. Nem poderia ser diferente, não passaria na censura e, muito menos, seria o indicado oficial do Irã ao Oscar de filme estrangeiro, como é o caso. O roteiro, porém, é brilhante, ao contrário dos censores oficiais que, pelo jeito, ficaram na superfície do assunto.
Um homem que se separa, trabalha, e tem um pai incapacitado aos seus cuidados, precisa de uma mulher para ajudá-lo, além de sua filha, pré-adolescente. Mas uma mulher casada, com filha, pode trabalhar na casa de um homem descasado, sem comprometer sua honra? E pode limpar um velho incapacitado sem cometer pecado?
Uma mulher pode deixar seu marido e filha e viver sua vida sem a reprovação social e religiosa? Um homem pode permitir que sua mulher grávida trabalhe na casa de outro homem sem o seu consentimento, mesmo necessitando muito do dinheiro que ela pode obter com esse trabalho, sem reagir? Terá razão se agredir o patrão que, supostamente, empurrou sua mulher para que saísse da casa? Pode-se tocar numa mulher grávida? Mas pode-se saber se ela está grávida ou não, se o corpo está todo encoberto e, com isso, uma gravidez pode ser disfarçada por um bom tempo?
Questões triviais? Absolutamente. Questões que mostram a relatividade dos valores morais, o sofrimento que uma leitura inflexível de princípios produz e a fragilidade das noções de mentira e de verdade.
Diante do Corão, só se pode jurar em nome da verdade. Mas qual é a verdade? Algo que se sabe pode ser esquecido num momento de raiva e descontrole. Como assim? A pessoa sabia ou não?
O que acontece é que as decisões morais são tomadas em circunstâncias concretas, que envolvem interesses, pessoas e situações sobre as quais não se tem muito controle. E a dúvida pode pairar soberana. Em alguns casos, nunca se poderá saber o que é verdadeiro ou não.
Essas reflexões são extremamente importantes e válidas, enquanto considerações éticas, universalmente. Aplicadas a um regime político como o do Irã, revelam que, sob o tacão autoritário e religioso, vive uma sociedade que pulsa sua contemporaneidade. Sufocada, mas pronta para vir à tona. Quem sabe, veremos em breve uma primavera persa?
Asghar Farhadi, que já dirigiu o muito competente “Procurando Elly”, em 2009, mostra que está à altura dos grandes cineastas iranianos, que se mudaram do país ou estão impedidos de trabalhar. Consegue criar uma obra instigante e profunda que, no entanto, exige uma leitura subliminar. Não se revela à primeira vista. Mexe no vespeiro, sem despertar suspeitas. Excelente. Faz lembrar a arte brasileira, especialmente a música, durante a nossa ditadura militar. Que criatividade impressionante era preciso ter para driblar a censura e o regime e, ademais, fustigá-lo. É o que faz Asghar Farhadi, nos dias de hoje no Irã, conquistando merecidos prêmios internacionais, além do Oscar.
“A Separação” levou três Ursos no Festival de Berlim de 2011: dois de prata, para melhores ator e atriz, e o de ouro, de melhor filme, além do prêmio do júri ecumênico. Recebeu, ainda, o prêmio de melhor roteiro do American Film Institute (AFI), junto aos críticos de Los Angeles e Boston. Venceu o Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira, além de outros 17 prêmios em festivais de cinema pelo mundo. Merece tudo isso, sem sombra de dúvida.
Na sua aparente simplicidade de relatar um problema familiar, o filme, na realidade, é extremamente impactante e complexo nas filigranas dos acontecimentos. Como sempre, as análises do Egypto são minuciosas e esclarecedoras. Filme recomendável para todos os que gostam de Cinema com conteudo (ou recheio...), e que motivam discussões apos a seção.
ResponderExcluirFRANCISCO MONTEAGUDO