Antonio Carlos Egypto
PIEDADE. Brasil, 2019.
Direção: Cláudio de Assis. Com
Fernanda Montenegro, Irandhir Santos, Matheus Nachtergaele, Mariana Ruggiero,
Cauã Reymond, Gabriel Leone. 99 min.
Quem vive numa comunidade ao lado do
mar pode usufruir dele, nadar, mergulhar, pescar e comer peixe fresco. E ainda tocar um bar para turistas que vão se
deliciar com essas iguarias. Não é
mesmo?
Não é, não. Em “Piedade”, isto tudo já foi verdade, mas
antes da chegada da Petrogreen, empresa que explora o petróleo no mar e
produziu alterações no meio ambiente que tornaram um simples banho de mar num
perigo mortal, pela presença de tubarões em grande escala. Já se fala que Piedade é uma praia, uma cidade,
um tipo de tubarão característico. Os
peixes que eram pescados na hora sumiram e hoje o bar tem de comprar os peixes
fora dali. E nem é preciso comprar
muito, não, porque os turistas também desapareceram.
Como se faz para resistir a tudo
isso? Na família de D. Carminha,
interpretada por Fernanda Montenegro, o bar segue aberto e não está à venda,
apesar da insistência de Aurélio (Mateus Nachtergaele), que aproveita a
deterioração provocada pela Companhia que ele representa, a Petrogreen, para adquirir barato um belo
terreno a ser explorado. Omar (Irandhir
Santos), um dos filhos de D. Carminha, luta como pode para permanecer por
lá. Já sua irmã Fátima (Mariana
Ruggiero) tem outras preocupações e já não vive lá, mas seu filho, Ramsés, sim,
e tem um grande desejo de mergulhar no mar.
Isso, Aurélio resolve virtualmente, um simulador de mergulhos no fundo
do mar, com imagens belíssimas, acopla-se aos olhos e pronto. O simulacro está dado. Todos esses elementos
já dariam uma bela trama, mas há muito mais coisas pelo meio. Histórias negadas, mal contadas, um
personagem que figura como herdeiro de uma eventual transação imobiliária:
Sandro (Cauã Reymond). O que estava represado tem de vir à tona.
Cláudio de Assis, diretor pernambucano
dos já conceituados “Amarelo Manga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), “Febre
do Rato” (2011) e “Big Jato” (2016), explora esse universo de forma alegórica,
investindo nas figuras humanas sem escamotear a sordidez, a ilusão, a mentira,
a manipulação, o medo e o desespero que estão aí presentes. A estética não deixa de mostrar a beleza
dessa natureza, mas destaca não só os gafanhotos de ferro, como uma ambientação
suja e tensa, além do mau gosto. Quem
daria a seu filho um nome como Omar Shariff ou Marlon Brando, porque curte
cinema? E que cinema aparece na
narrativa? Um pornô, com cabines e tal,
chamado Mercy (piedade, em inglês),
devidamente fiscalizado por uma tela, até para que se possa devolver um celular
roubado em meio à transa, flagrado por ela.
O que sobrou do cinema, afinal? E
da segurança? Não se pode confiar em
mais ninguém. Fique alerta, é o recado.
Sempre alerta porque, de muitos modos,
o mundo está prestes a ruir para as pessoas, para o ambiente de que elas
dependem, para os mares, rios, espécies animais. A sensação que o filme passa é que, a qualquer
momento, tudo pode desabar. E o que
restará? Impossível desconsiderar também que “Piedade” passa a ideia de que
realmente o ser humano não deu muito certo.
Cada um lida com a alteridade a partir de seu narcisismo, procurando
cobrir suas fragilidades e lacunas do jeito que dá, como pode.
Até quem parece dispor de muito poder
e forçar os outros a fazer o que não querem, não passa de um ser infantilizado,
controlado pela mãe por chamadas de vídeo a qualquer hora. Como o tal Aurélio. A matriarca Carminha
segura uma família que não se sustenta em suas bases. Sem negar a realidade, é impossível. O charme da cidade, da moda, da beleza, de
Fátima, é oco, destoa de tudo o que os outros membros da família vivem e de seu
próprio filho. O cinema pode servir
meramente à sobrevivência, mas não à arte, pela ótica de Sandro. O bar, “Paraíso do Mar”, vira uma ironia sem
tamanho. Como resistir e defender um
paraíso que não existe mais?
“Os tubarões ou a gente os come ou
eles nos comem”. É o que diz um dos
frequentadores do bar que pede lá um dogfish. É isso.
Mas essa escolha metafórica realmente existe?
Como se vê, “Piedade” é um filme que
provoca, faz pensar e não dá muita trégua, não.
Tem uma direção forte e firme e um elenco notável. Só pela presença de
Fernanda Montenegro num papel relevante, a esta altura da vida, já vira
referência. E como ela brilha, como ela
acentua as palavras e os sentimentos.
Uma beleza! Tem o ator
superlativo, que é Matheus Nachtergaele, o talento admirável de Irandhir
Santos, além de Mariana Ruggiero, Cauã Reymond e outros. Um time muito bom, que empresta muito vigor ao
filme, como cúmplices do diretor.
Imagens da cidade, com seus edifícios engolindo o mar e deslocando
as pessoas da terra para a janela do apartamento, completam a poesia de
“Piedade”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário