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quinta-feira, 24 de abril de 2025

12:12:O DIA e FRANCESA NA COREIA

         Antonio Carlos Egypto 



12:12:O DIA (12.12:The Day).  Coreia do Sul, 2024.  Direção: Kim Sung-soo.  Elenco: Hwang-jung-min, Jung Woo-sung, Lee Sung-min, Park-Hae-joon, Kim Sung-kyun.  141 min.

 

Um filme que trata de golpe de Estado é o coreano “12:12: O Dia”, que estava previsto para chegar aos cinemas brasileiros em janeiro, não aconteceu, já foi objeto de uma postagem aqui naquele período, e agora finalmente chega às telonas. Portanto, reproduzo aqui o comentário que eu já havia postado anteriormente. É um filme que merece atenção, representou a Coreia do Sul no Oscar de filme internacional.

 

O dia 12 de dezembro de 1979 ficou marcado como aquele que deu início a um golpe militar, após muitos confrontos internos nas Forças Armadas e acabou pondo fim a uma “primavera” coreana, uma situação em que a abertura política e uma visão mais aberta e liberal do poder sucumbiu à força das armas.  Isso iria mudar ao longo dos anos 1980, mas o momento relatado no filme foi aquele que pôs em confronto as forças do Comandante Chum-Doo-gwang com as forças de resistência do Comandante Lee-Tae-shin, após o assassinato do presidente Park e da decretação da lei marcial.

 

O impressionante desse filme, dirigido por Kim-Sung-soo, é que ele reconstrói, passo a passo, com alguns elementos ficcionais, os eventos de ação e reação dentro das Forças Armadas que foram ocorrendo até a consumação do golpe de Estado.  Vemos as forças em ação, avanços e recuos, a incerteza de cada decisão, de lado a lado, os dilemas morais e os confrontos pessoais, no meio das ações políticas e, principalmente, das  militares.

 

Acaba sendo um belo filme de ação, que se vale do substrato de uma realidade política, que deixa muito claro que a democracia só sobrevive se for defendida e, ainda assim, qualquer percalço pode colocá-la em risco.

 

“12:12: O Dia” foi o filme de maior sucesso de público na Coreia do Sul no ano passado e chega em hora decisiva e oportuna, nos momentos em que, em dezembro de 2024, o presidente Yoon Suk-yeol tentou um golpe, ao declarar lei marcial, fechar o Parlamento e restringir a liberdade de imprensa.  Acabou sofrendo impeachment e foi preso.  Ou seja, a história se repete a todo instante.  Às vezes com sucesso, às vezes, sem.  É preciso estar atento, por isso filmes como esse são importantes de serem vistos e comentados.

  




Ainda está em cartaz nos cinemas um outro filme da Coreia do Sul, que prima pela simplicidade e pelo minimalismo.  É “As Aventuras de Uma Francesa na Coreia” (Yeohaengjaui Pilyo).  A direção e o roteiro são do já bastante conhecido do público cinéfilo Hong-Sang soo.  No elenco, Isabelle Hupert faz a francesa e interage com Hye-Yang lee e Hae-Hio kwon, entre outros.  Ali, uma vez mais, no cinema desse cineasta, o que está em questão é o relacionamento humano, o diálogo que se dá em volta da mesa com bebida e comida e as necessidades humanas das pessoas com alguma vulnerabilidade.  E também as saídas que as pessoas encontram para driblar os problemas, sejam eles de ordem econômica ou psicológica. Aqui, nesse cinema de encontros destaca-se o makgeolli, um vinho de arroz típico da Coreia que encanta a francesa e impulsiona as conversas.  Acaba levando a respostas que, tanto expõem os preconceitos, quanto acentuam os mistérios da situação mostrada.  90 min.



terça-feira, 4 de março de 2025

O OSCAR DO BRASIL

 Antonio Carlos Egypto




                                   

“AINDA ESTOU AQUI”, o filme de Walter Salles, faz história, quando conquista o primeiro Oscar para o cinema brasileiro, o de melhor filme internacional.  E o primeiro Oscar a gente nunca esquece, ou esquecerá.  Mais duas indicações ao Oscar: festejamos o de melhor atriz para Fernanda Torres e a inédita indicação entre os 10 melhores filmes do ano.  Antes disso, Fernanda Torres já tinha abocanhado o Globo de Ouro e o filme já teve cerca de 40 prêmios nos festivais mundo afora.  Lembrar que tudo começou no Festival de Veneza, uma consagração para o roteiro do filme e 10 minutos de aplausos efusivos (ou seriam 14 minutos, como diz a Fernandinha num comercial?).

 

Bem, o fato é que o filme encantou todo mundo, a começar pelo povo brasileiro, que se emocionou: riu, chorou, aplaudiu nas sessões de cinema, festejou nas ruas em pleno Carnaval e torceu pelo Oscar como se fosse uma final de Copa do Mundo disputada pelo Brasil.  O maior prêmio foi a afluência aos cinemas: mais de 5 milhões de pessoas viram o filme nas telonas, em todo o Brasil.  O sucesso de “Ainda Estou Aqui”, no entanto, é realmente amplo e internacional.  Já conquistou grandes plateias nas Américas e Europa, o reconhecimento da crítica e uma mensagem de liberdade e resiliência frente ao autoritarismo, representada pela figura de Eunice Paiva, símbolo da democracia, dos direitos humanos e da diversidade.

 

Um filme nunca é só um filme.  Ele reflete o seu tempo, reflete o momento, dialoga com a realidade, ainda que de modo fantástico.  Pode falar do passado, de um passado que não foi elaborado, superado.  De um passado que assombra e alimenta o presente.  De um passado que ameaça voltar, na forma de farsa ou não, mas ameaça.  De um passado tenebroso, que também se mostra no presente e precisa ser vencido.

 


“Ainda Estou Aqui” é uma pérola de concepção cinematográfica.  Exala verdade, sem se valer de artifícios, mostra o que foi, o que é, como lidar com a opressão, o desrespeito aos mais comezinhos valores civilizatórios.  Sequestro, prisão clandestina, tortura, morte, desaparecimento do corpo (ocultação de cadáver), ausência de informações, não-reconhecimento do assassinato por décadas, inviabilizando a existência civil do cidadão.  São tão graves esses crimes perpetrados pelo Estado durante a ditadura militar que um filme que trate disso pode se tornar algo intragável.  Absolutamente, não é o caso de “Ainda Estou Aqui”.  Pela via da pessoa de Eunice é a família que vive tudo isso no seu dia-a-dia, tentando sobreviver.  E com dignidade.

 

A tentativa de destruição de uma família e o modo como ela subsiste, ainda que perdendo seu vigor e alegria em algum nível, mas ainda assim sorrindo e acreditando que a vida vale a pena, é um trunfo narrativo do filme de Walter Salles, brilhantemente protagonizado por Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro.  Um filme que, mesmo com essa temática triste, consegue ter luminosidade, amor, humor.  É mesmo um filme excepcional, que até já provocou mudanças na sociedade brasileira, na política e nas leis.  O país não será mais o mesmo depois desse filme emblemático e monumental em sua aparente simplicidade.  O cinema brasileiro deu um passo gigantesco para o seu reconhecimento internacional.  Que já está acontecendo, no Oscar ou fora dele.  Viva nosso cinema!   



     

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

FLOW

Antonio Carlos Egypto

 


FLOW (Straume).  Letônia, 2024.  Direção: Gints Zilbalodis.  Roteiro do diretor e de Matiss Kaza.  Animação.  85 min.

 

Uma animação da Letônia vem se destacando no cenário cinematográfico, venceu o Globo de Ouro da categoria e está indicada para o Oscar não só como animação, mas também como filme internacional. “Flow” é um desenho fascinante, que deve encantar as crianças, mas se comunica bem com os adultos.

 

Trata-se de um pequeno gato preto, de fortes olhos de cor amarela e preta, que vê seu mundo, seu refúgio, destruído por uma grande inundação, que não para de crescer e vai cobrindo de água tudo o que vê.  Uma consequência do desequilíbrio climático e dos problemas com o meio ambiente, um tsunami?

 

Seja como for, o gato, isolado e independente como é, se vê acuado e posto em perigo a todo instante.  E os espectadores vivem a ansiedade e os riscos pelos quais o gato passa e acompanham toda sua aventura de sobrevivência tensos.

 


Não é comum que seres humanos se identifiquem, se projetem, num personagem felino, que emite sons, mas não fala.  No entanto, isso acontece.  O filme não tem diálogos, afinal, os animais soam, mas não falam.  E não há seres humanos entre os personagens de “Flow”.  Mas há, sim, outros personagens do reino animal que acabam reunidos pelas circunstâncias, tendo de conviver num barco e colaborar entre si, apesar das diferenças.  Unidade na diversidade, para sobreviver.  Amizades improváveis de espécies tão diferentes, que se expressam efusivamente nos sons, mas cada qual com o seu.  Há comunicação possível?  Parece que sim, nessa improvisada arca de Noé.

 

O barco segue à deriva, enquanto a água ocupa o cenário da natureza, até então exuberante, e inclusive com toques mágicos.  A fábula da comunicação entre as espécies, do valor da diversidade e da adaptação necessária às circunstâncias, como forma de sobrevivência diante do inesperado, se realiza, explorando cada um dos diversos personagens da história.

 

Se de início o gato corre, foge da perseguição dos cães e outros animais, agora o seu mundo se fará do convívio pacífico com os diferentes, que antes o assustavam.  A gente acaba se acostumando com o que é desconhecido.  E aprende a conviver com o que antes soava misterioso e perigoso.  O filme nos diz que com os animais e com os seres humanos pode ser assim.  Diante do mal maior, todos caminham juntos.  Uma boa proposta, muito bem realizada.




domingo, 23 de fevereiro de 2025

O BRUTALISTA

Antonio Carlos Egypto

 


 O BRUTALISTA (The Brutalist).  Estados Unidos, 2024.  Direção: Brady Corbet.  Elenco: Adrien Brody, Felicity Jones, Guy Pearce, Raffey Cassidy, Alessandro Nivola.  215 min. com intervalo.

 

“O Brutalista” é uma peça de ficção roteirizada pelo diretor Brady Corbet e por sua esposa Mona Fastvold.  O personagem central é László Tóth (Adrien Brody), um arquiteto judeu húngaro, que sobreviveu ao Holocausto nazista, escapou do domínio soviético em Budapeste, durante a Segunda Guerra Mundial e imigrou para os Estados Unidos, em busca do chamado sonho americano.

 

O filme explora, em toda sua longuíssima duração, uma série de questões ligadas à imigração: a difícil sobrevivência inicial, mesmo contando com um parente no local, a oportunidade que surge, sim, na figura de um mecenas que reconhece o talento do arquiteto e lhe oferece uma grande obra a ser feita, ao mesmo tempo em que desfila preconceitos diversos e desrespeitos flagrantes à figura de László. É o papel de Harrison Van Buren, vivido com brilhantismo por Guy Pearce.  A batalha para conseguir trazer para a América a mulher, Erzsébet (Felicity Jones), e a sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy), os problemas com as doenças e a dependência de drogas necessárias para aguentar o tranco.  Enfim, o sonho americano pode ser muito amargo e estranho, como a figura, óbvia, da Estátua da Liberdade de cabeça para baixo.

 

A questão do judaísmo e o então recém-fundado Estado de Israel visto como o lar “obrigatório” dos judeus cria conflitos familiares, que voltam a separar a família que acabara de se reunir nos Estados Unidos.  A religiosidade também se destaca na criação do arquiteto para uma capela em que uma cruz se forma, a partir dos reflexos do sol no teto da obra.  Judaísmo e cristianismo perpassam a vida e o trabalho do arquiteto, mesmo ele não sendo uma pessoa religiosa.

 


A arquitetura está no foco central de tudo, desde o primeiro trabalho de László na América, ao criar uma formidável biblioteca, de início rejeitada. Trata-se aqui da arquitetura brutalista, de formas geométricas gigantes, ousadas, de concreto bruto e aparente.  Uma estética crua e muito resistente, sobreviveu à própria guerra, conforme comenta o personagem do arquiteto.  É uma espécie de design para a reconstrução sólida da Europa do pós-guerra, de inspiração germânica, que remete ao passado, mas com toques modernistas.  Vem daí o nome do filme. Mas há um brutalismo simbólico fluindo também pelo filme.

 

Outro ponto de destaque é a relação entre o artista criador e seu mecenas, seus patrocinadores.  Essa relação é sempre marcada pelo choque de visões, pelo poder que tanto impulsiona quanto censura ou destrói a criação. As idas e vindas, negociações e concessões e até mesmo humilhações que daí resultam, são a base de um conflito permanente em que os sucessos e fracassos se alternam continuamente.  E os limites, tanto de um lado quanto do outro, são postos à prova.  Pesando mais contra o artista, evidentemente.

 

É, sem dúvida, um trabalho competente, uma história contada de uma forma adequada e envolvente, especialmente na primeira parte, onde o convívio ainda corre bem, apesar dos ruídos.  Na segunda parte, quando os conflitos se projetam, as coisas ameaçam passar um pouco do ponto, aproximando-se dos excessos tão característicos do cinema atual.  No entanto, a eficácia do discurso prevalece. 

 

A estupenda trilha sonora se destaca, assim como uma bela fotografia, dão a “O Brutalista” um salto de qualidade que valoriza ainda mais o excelente elenco, liderado por Adrien Brody, em grande desempenho, o que pode lhe valer o Oscar 2025 de ator.  Além dele, o filme concorre em outras 9 categorias: melhor filme, diretor, ator e atriz coadjuvantes, roteiro original, trilha sonora, fotografia, montagem e design de produção.




quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

ANORA e CALLAS

Antonio Carlos Egypto

 

 


ANORA, produção estadunidense, dirigida por Sean Baker, chegou à 48.a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com a chancela da Palma de Ouro no Festival de Cannes.  Mas a gente se surpreende com essa escolha.

 

A história envolve uma prostituta do Brooklin que vê a chance de mudar de vida ao se casar em Las Vegas com o filho de um oligarca russo, totalmente sem noção, que queima dinheiro nos Estados Unidos em sua temporada por lá, e se comporta como um tresloucado, obcecado pelos prazeres do sexo, recém descobertos.  Claro que seu “casamento” será posto à prova pela família do “noivo”.  E a profissional do sexo, naturalmente, lutará para mantê-lo.

 

  O filme é uma comédia amalucada, em que os excessos estão visíveis: quebradeiras, gritarias, xingamentos, vômitos, destruições.  Há que se reconhecer que a comédia funciona, produz risadas, tem sacadas interessantes aqui e ali, mas, no conjunto, beira o nada.  O que terá acontecido com o Festival de Cannes?  Não tinha nada melhor para premiar?

  

Acrescento agora minha surpresa ao ver que o filme também está bem cotado para melhor filme no Oscar 2025. Não o revi , nem teria interesse, mas começo a me questionar o que foi que eu não vi, ou não notei como mérito  em  “Anora”.

 

Bem, além de reconhecer que como comédia ele funciona, a atriz principal Mikey Madison é mesmo muito boa. Seu desempenho é forte e marcante. Mas o filme é um entretenimento que peca pelo excesso e não tem nada de importante a dizer. E, com certeza , há sim, filmes melhores do que esse na lista dos 10 indicados ao Oscar na categoria principal. A começar, é claro, pelo brasileiro “Ainda Estou Aqui”. Torcidas, à parte. 138 min.



 


 

MARIA CALLAS (Maria), produção internacional que envolve Itália, Alemanha e Estados Unidos, dirigido pelo conceituado diretor chileno Pablo Larraín, é um espetáculo cinematográfico/musical de peso.  Dá o devido e merecido destaque ao canto daquela que foi a maior na ópera em todo o mundo: Maria Callas (1923-1977).  O foco do filme, porém, é o período de decadência, de perda progressiva da voz de Callas, associado a seus problemas de saúde, em grande parte decorrentes do uso abusivo de remédios e, claro, dos excessos da profissão.  O brilhantismo vem dos flash-backs e das gravações.  Angelina Jolie vive muito convincentemente a diva do canto lírico, ao lado de outros colegas do elenco, como Pierfrancesco Favino e Alba Rohrwacher.  Foi o filme de abertura da Mostra 48. Concorre apenas ao Oscar 2025 de melhor fotografia.  123 min.

 

 

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

EMILIA PÉREZ

          

 Antonio Carlos Egypto

 



EMILIA PÉREZ.  França, 2024.  Direção: Jacques Audiard.  Elenco: Karla Sofia Gascón, Selena Gomez, Zoe Saldaña, Adriana Paz.  130 min.

 

“Emilia Pérez” é um filme ousado, que causa impacto, que tem uma forma moderna de expressão e que mescla e funde diferentes gêneros cinematográficos, com esmero visual.  Alguns o classificam como comédia musical de suspense e ação.  Tem humor, mas não é uma comédia, a meu ver.  E um thriller  que envolve crime e violência, drama e crítica social, onde cabe um inusitado musical.  Um filme em que todo cambia todo el tempo.  Mudança é o mote da empreitada francesa, dirigida por Jacques Audiard, cuja trama se passa no México, com o filme falado em espanhol.

 

“Emilia Pérez” me parece ser um representante da ideia de modernidade líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, na sociedade da pós-verdade, em que tudo se dissolve, se liquefaz: o trabalho, a família, o amor e a própria identidade.  E com a marca do medo de não pertencer, de não se encaixar num mundo de violência e terrorismo, que produz angústia e muda velozmente.  Todo cambia.

 

Os personagens mudam, de corpo, de gênero, de identidade, de comportamentos, de valores, de papéis familiares.  Nada permanece sólido.  Consequentemente, as instituições ruem também.  Desafiador, assustador, caótico? Não sei, cada um faça a sua aposta.  Perdemos o controle, isso já faz tempo e tudo, absolutamente tudo, está agora em questionamento.  Um filme que nos traz esse retrato do nosso tempo tem valor, ainda que também tenha problemas.


Uma produção francesa que aborda a guerra do narcotráfico no México, sem ser filmada lá e praticamente sem mexicanos na produção e elenco, está naturalmente sujeita aos tradicionais estereótipos que, nós latinos, conhecemos bem.

 


Por outro lado, valer-se de uma atriz trans como Karla Sofia Gascón para o papel central de Emilia dá força e credibilidade à incrível história que ela vive. Tudo nela se liquefaz, inclusive o modo de viver e de encarar o mundo, não só o gênero ou a identidade.  Com a personagem de Rita, da ótima Zoe Saldaña, passa-se o mesmo, sua capacidade e talento profissional mudam de vetor, de campo, se liquefazem.  A família de Emilia, ex-mulher e filhos, desfaz-se, embaralhando os papéis familiares.  Vira uma família líquida.  E por aí vai.

 

Enfim, é um filme que dá o que falar.  Tem um maravilhoso quarteto feminino: Gascón, Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz, e uma equipe de produção para lá de competente.  Do trabalho do diretor aos criadores das músicas, coreografias e danças bem atraentes, “Emilia Pérez” é  um produto cinematográfico respeitável.

 

Agora, algumas considerações extra-filme.  Ele concorre ao Oscar nas mesmas categorias em que o brasileiro “Ainda Estou Aqui” foi indicado: melhor filme, melhor filme internacional e atriz.  Só que tem ainda mais 10 indicações, alcançando 13 no total. Um evidente exagero.  Sinal de que é o grande favorito do Oscar do ano?  Ou corre o risco de flopar legal? Aí vai muito da campanha, do trabalho de divulgação.  Da briga midiática e das redes sociais que já, ao que parece, causaram danos a Karla Gascón por surpreendentes manifestações preconceituosas, em passado recente.  Logo ela, que representa pela primeira vez uma transexual com chances?

 

As disputas paralelas das redes sociais nada acrescentam ou significam às qualidades ou problemas dos filmes, mesmo que interfiram nas decisões finais dos votantes da Academia.  Não farão de “Emilia Pérez” uma obra-prima, o que ela não é, mas também não transformarão um filme relevante e significativo em algo a ser rechaçado ou ignorado.  Aliás, é muito difícil ignorar um filme como esse.




quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

CONCLAVE e KASA BRANCA

Antonio Carlos Egypto

 



CONCLAVE (Conclave).  Reino Unido/Estados Unidos, 2024.  Direção: Edward Berger.  Elenco: Ralph Fiennes, Isabella Rossellini, Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castelito, Carlos Diehz.  120 min.

 

Conclave é o evento antigo e cheio de segredos que marca a escolha de um novo papa, pelos cardeais da Igreja Católica, após a morte do que estava em atividade (ou a sua renúncia, o que também pode acontecer).  O filme “Conclave”, baseado em livro de Robert Harris, é uma ficção, que incorpora fatos e situações possíveis, prováveis de ocorrer, numa situação de disputa de poder, frequentemente negada pelos envolvidos, e a escolha, que tem de ser por ampla maioria, quase unanimidade, atribuída à inspiração do Espírito Santo.  O filme explora esses meandros com foco totalmente na figura do cardeal decano do Vaticano, Lawrence (Ralph Fiennes), que tem a responsabilidade de conduzir o conclave. É ele quem, genuinamente, tem de administrar os problemas que surgem envolvendo os possíveis escolhidos, cujos erros e “pecados” do passado vêm à tona, sua avidez pelo poder se evidencia ou suas ideias preconceituosas e ultrapassadas incomodam seus pares.  As diversas votações e suas variações, às vezes enormes, vão acontecendo, sem que se esteja conseguindo chegar ao veredito final, marcado pela saída da fumaça branca.  “Conclave” é um filme bem realizado, na forma tradicional, com uma história contada linearmente no tempo, em que acompanhamos os passos, dúvidas, hesitações e decisões do decano, e que nos levará a surpresas muito eloquentes.  É um filme que mexe no vespeiro da Igreja Católica, com um roteiro muito bem concebido, que é um dos seus pontos altos.  O outro é o elenco, muito forte. E uma coisa importante: num filme tão marcado pelos homens, o papel da mulher na Igreja ganha relevo.  O diretor Edward Berger se concentra na história e no suspense do enredo, mas tem algumas sequências que inserem beleza e leveza no filme, em alguns momentos.  No geral, são os bastidores do poder da Igreja os elementos centrais e definidores da narrativa.  “Conclave” concorre ao Oscar de melhor filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, montagem, direção de arte, figurino e trilha sonora.

 




KASA BRANCA.  Brasil, 2024.  Direção: Luciano Vidigal.  Elenco: Big Jaum, Teca Pereira, Diego Francisco, Ramon Francisco, Babu Santana, Otávio Muller.  95 min.

 

“Kasa Branca”, dirigido por Luciano Vidigal, é o primeiro lançamento de 2025 da Seção Vitrine Petrobrás, a preços reduzidos.  O filme trata da cada vez mais frequente dificuldade da doença de Alzheimer na vida das famílias, em tempos de maior longevidade das pessoas.  Se essa doença causa tantos problemas a qualquer família, isso se torna muito mais dramático diante da pobreza.  No caso de “Kasa Branca”, o protagonista é o jovem negro Dé (Big Jaum), que mesmo sem recursos, com o pai ausente, dedica-se à sua avó, D. Almerinda (Teca Pereira) com muito afeto.  Mais do que isso: tentando aproveitar os poucos momentos que lhes restam juntos, já que ela vive em estado terminal da enfermidade.  Ele a leva a lugares que podem lhe ser estimulantes, trazerem elementos de memória e laivos de felicidade.  Para isso, conta com a ajuda de dois amigos, Adrianinho (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), que o acompanham em tudo, com muita solidariedade.  A pobreza, no entanto, é um drama.  Chega uma hora em que não há mais nenhuma condição de arcar com o custo dos medicamentos de D.Almerinda. A solução encontrada é assaltar a farmácia, quando fechada, para roubar o remédio.  Interessante notar que nada mais foi roubado pelos meninos, nenhum dinheiro do caixa. O que mostra a ação por desespero, de luta simplesmente pelo bem-estar no fim da vida.  O filme mostra não só essa relação de neto, avó e amigos, mas as dificuldades econômicas que são a regra da vida desse pessoal, as agruras por que têm de passar, a fragilidade e a vulnerabilidade aí envolvidas.  Enfim, um retrato da realidade da pobreza, que acaba tornando tudo mais difícil, mesmo contando com a solidariedade das pessoas em volta, da ajuda que sempre aparece, do espírito comunitário.  Por melhores que sejam as pessoas e as intenções, na pobreza a vida é sempre dura.  Mesmo assim, há os momentos de festa, de música, da dança, da celebração da vida.




segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

GOLPES DE ESTADO

 

                    Antonio Carlos Egypto

 



TRILHA SONORA PARA UM GOLPE DE ESTADO (Soundtrack to a Coup d’Etat). Bélgica, 2024.  Direção: Johan Grimonprez.  Documentário.  150 min.

 

O documentário “Trilha Sonora para um Golpe de Estado”, indicado ao Oscar 2025, é um trabalho cinematográfico de peso.  Manipula um número impressionante de imagens dos fatos, dos personagens, das situações e dos significados envolvidos numa história incrível.  A edição, extremamente ágil, trabalha um sem-número de questões, valendo-se de ironia, sarcasmo, humor e realidade factual, interagindo o tempo todo.  Acrescente-se, trazendo à baila expoentes do jazz norte-americano, utilizados pela CIA e pelo governo estadunidense, para ganhar corações e mentes dos congoleses, e africanos em geral, escondendo um golpe de Estado que estava em andamento. 

 

Vejam só quem chegou ao Congo recém-independente, para tocar por lá: Louis Armstrong.  Mas também passaram por lá Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, John Coltraine, Nina Simone e até Ella Fitzgerald.  Além deles, Abbey Lincoln e Max Roach, que invadiram o Conselho de Segurança da ONU, em 1961, para protestar pelo assassinato do líder Patrice Lumumba.

 

Esse foi o início e o coroamento da história, mas ao longo do filme são mostrados o processo de colonização do Congo Belga, a luta por sua independência, incrivelmente manipulada para torná–la sem efeito e minimizá-la desde os primeiros dias.  Doze semanas após ser eleito primeiro ministro, Patrice Lumumba foi deposto pelo Coronel Joseph Molutu.  Em resposta, Lumumba destituiu Molutu da presidência e acabou sendo sequestrado, preso e exilado dentro do próprio país, na região de Catanga, um enclave antirrevolucionário, dominado por belgas, norte-americanos e do Reino Unido. 

 

Enquanto isso, a figura de Nikita Kruschev, líder da União Soviética, aparece ativo, falante, risonho, batendo punho na mesa, nas sessões da ONU, em apoio a Lumumba.  E, consequentemente, incomodando fortemente o outro lado e fortalecendo os motivos para a intervenção contra a independência do país. Malcolm X também tem presença marcante nessa história.

 

Enfim, toda essa barafunda que envolveu a República Democrática do Congo, a liderança ampla e determinante de Patrice Lumumba, que alcançou toda a África, acabou no assassinato dele.

 

O documentário joga esses elementos todos em cena, de tal forma que chega a aturdir o espectador não familiarizado com o período histórico abordado.  Mas, ao mesmo tempo, provoca tanto, deixa tudo claro e brinca com toda aquela situação, pelo seu despropósito, pelos seus jogos de cena e de poder, que nos mobiliza a pensar sobre o que significou e significa tudo isso para cada um de nós.  O filme é bem longo para um documentário histórico-político como ele é, mas vale cada minuto de projeção.

 




12.12: O DIA (12.12:The Day).  Coreia do Sul, 2024.  Direção: Kim Sung-soo.  Elenco: Hwang-jung-min, Jung Woo-sung, Lee Sung-min, Park-Hae-joon, Kim Sung-kyun.  141 min.

 

Outro filme que trata de golpe de Estado é o coreano “12.12: O Dia”, que está previsto para chegar aos cinemas brasileiros em breve e representou a Coreia do Sul no Oscar de filme internacional.

 

O dia 12 de dezembro de 1979 ficou marcado como aquele que deu início a um golpe militar, após muitos confrontos internos nas Forças Armadas e acabou pondo fim a uma “primavera” coreana, uma situação em que a abertura política e uma visão mais aberta e liberal do poder sucumbiu à força das armas.  Isso iria mudar ao longo dos anos 1980, mas o momento relatado no filme foi aquele que pôs em confronto as forças do Comandante Chum-Doo-gwang com as forças de resistência do Comandante Lee-Tae-shin, após o assassinato do presidente Park e da decretação da lei marcial.

 

O impressionante desse filme, dirigido por Kim-Sung-soo, é que ele reconstrói, passo a passo, com alguns elementos ficcionais, os eventos de ação e reação dentro das Forças Armadas que foram ocorrendo até a consumação do golpe de Estado.  Vemos as forças em ação, avanços e recuos, a incerteza de cada decisão, de lado a lado, os dilemas morais e os confrontos pessoais, no meio das ações políticas e, principalmente, das  militares.

 

Acaba sendo um belo filme de ação, que se vale do substrato de uma realidade política, que deixa muito claro que a democracia só sobrevive se for defendida e, ainda assim, qualquer percalço pode colocá-la em risco.

 

“12.12: O Dia” foi o filme de maior sucesso de público na Coreia do Sul no ano passado e chega em hora decisiva e oportuna, nos momentos em que, em dezembro de 2024, o presidente Yoon Suk-yeol tentou um golpe, ao declarar lei marcial, fechar o Parlamento e restringir a liberdade de imprensa.  Acabou sofrendo impeachment e foi preso.  Ou seja, a história se repete a todo instante.  Às vezes com sucesso, às vezes, sem.  É preciso estar atento, por isso filmes como esse são importantes de serem vistos e comentados.




quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

OLHA O OSCAR AÍ, GENTE!

       Antonio Carlos Egypto

 


Hoje pela manhã me deparei com a melhor notícia que poderia esperar.  Sim, AINDA ESTOU AQUI foi indicado entre os 5 como melhor filme internacional.  Foi também indicado entre os 10 como melhor filme, um fato inédito e consagrador.  E Fernanda Torres, entre as 5 indicadas como melhor atriz.  É o reconhecimento internacional a um grande filme brasileiro, já um dos mais importantes da nossa história.  E que vem na hora certa para celebrar a democracia, no mesmo momento em que o país investiga e pune uma tentativa de Golpe de Estado e de combate ao Estado Democrático de Direito.  É também um momento em que a memória da ditadura militar está menos presente e sua lembrança é distorcida pela extrema-direita, que chega ao disparate de louvá-la e defender a tortura e a morte como métodos políticos.

 

A família de Rubens Paiva, engenheiro e deputado cassado, viveu o que muitas famílias viveram no período ditatorial.  O sequestro, prisão sem reconhecimento, tortura, morte e ocultação do cadáver dos que eram chamados “subversivos”, simplesmente por discordarem ou lutarem contra aquela opressão toda, com as armas que pudessem. A ditadura não foi branda e não agia somente contra os que a enfrentaram por meio da luta armada, como algumas narrativas pretendem afirmar.

 

O caso do ex-deputado Rubens Paiva é emblemático por ser uma pessoa branca, de classe média alta, de pensamento progressista, com mulher e cinco filhos em sua família constituída, que tinha uma casa aberta aos amigos e familiares e que nenhum mal poderia causar à sociedade ou ao país.  Certamente, contribuiu para ajudar, proteger os perseguidos do regime, em atitude humana e digna.

 

Marcelo Rubens Paiva, ao escrever essa história terrível de sua família, no livro que inspirou o filme “Ainda Estou Aqui”, focalizou em sua mãe, Eunice. Ela é o centro da narrativa do belíssimo trabalho de Walter Salles, numa interpretação brilhante de Fernanda Torres, que já recebeu todo o reconhecimento internacional pelo seu desempenho no filme. Selton Mello foi seu grande parceiro, excelente na criação que fez de Rubens Paiva. Foi a perda progressiva de memória de Eunice, por conta do Alzheimer, que motivou Marcelo a recuperar as memórias do país, que não poderiam se perder. Os efeitos estão aí, visíveis, e ainda há muito o que contar e resgatar, papel que esse filme notável está desempenhando em nível mundial.

 


Os prêmios que “Ainda Estou Aqui” vem acumulando nos festivais em todo o mundo, coroados pelo de atriz no Globo de Ouro, são importantes para o Brasil e para o cinema brasileiro.  O Oscar, tradicional prêmio da indústria do cinema norte-americano e, por extensão, da língua inglesa, tem papel muito relevante no mercado e na imagem e carreira dos artistas agraciados. Repara, de algum modo, a injustiça cometida com Fernanda Montenegro há 25 anos.  É entusiasmante ver que um grande filme brasileiro consegue alcançar essa meta também.

 

A conquista já se deu, é hora de comemorar.  Não custa torcer por uma vitória ainda maior, quando as estatuetas do Oscar estiverem sendo distribuídas em 02 de março de 2025, domingo de Carnaval.  Afinal, tudo é possível.  Por que não?



quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

2 FILMES DO IRÃ

              Antonio Carlos Egypto

 



A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO (Dãne-ye anjir-e ma’ãbed).  Irã/Alemanha, 2024.  Direção: Mohammad Rasoulof.  Elenco: Missagh Zareh, Mahsa Rostami, Soheila Golestani, Setareh Maleki, Niousha Akhshi.  166 min.

 

O título poético “A Semente do Fruto Sagrado” é uma metáfora para se referir àquilo que as pessoas internalizam, aderem, que as destrói e contamina o ambiente em que elas vivem.  E a referência ao sagrado não é aleatória.  É em nome de Deus que se cometem os crimes mais cruéis. Aqui, o contexto coletivo é o da teocracia que vigora no Irã.  O personagem central da trama é Iman (Missagh Zareh), que alcança a condição de Juiz de Instrução nos processos da Polícia da Moral, no mesmo momento em que pipocam manifestações populares nas ruas de Teerã e outras cidades do país, por conta da morte de uma jovem relacionada ao uso inadequado (ou ausente) do véu obrigatório.  E o filme se vale de imagens reais, captadas nas ruas.  A narrativa, então, focaliza a família de Iman, sua mulher e duas filhas, dentro de casa, oprimidas pela situação e tendo de se comportar estritamente segundo as regras do regime, para não prejudicar a carreira do pai.  Ocorre que a revolta invade a casa e atinge uma amiga das meninas, que é fortemente agredida pela polícia, o que era a regra das ruas.  Nesse momento, uma sequência longa e detalhada faz questão de mostrar os ferimentos que afetam seriamente o rosto da moça, sendo cuidada pela mãe das meninas, Najmeh (Soheila Golestani).  Não era necessário esse alongamento, não é isso que convence alguém de que o autoritarismo e a violência vigoram em regimes como esse.  Em seguida, a narrativa vai se concentrar na perda da arma de Iman e nas relações familiares que refletirão, reproduzirão, a opressão e as injustiças da teocracia dominante.  Aí também há um alongamento da situação, mas novos elementos serão revelados.  E sequências que exploram amplamente os espaços externos e os internos até chegar ao labiríntico final são recursos cinematográficos bem empregados.  Assim como a câmera explora o conjunto, também é bastante criativa nos detalhes, como os pingos de uma chuva ou objetos que têm significado na história.  O elenco formado pelas três mulheres da casa, pela amiga e por Iman é muito eficiente, e na contenção expressa o medo.   O medo é o grande mote de toda a ação do filme, na minha visão.  O que bloqueia, o que paralisa, o que move, o que oprime e o que destrói é o medo.  “A Semente do Fruto Sagrado” é a denúncia da opressão pelo medo.  Não surpreende que o cineasta Mohammad Rasoulof tenha fugido do Irã e o filme esteja proibido de ser exibido no país.  Da mesma forma, não chega a ser estranho que esse filme tenha sido o escolhido pela Alemanha para representá–la no Oscar de filme internacional.  O Irã jamais o indicaria.  É um filme corajoso, que toca na ferida, o que nenhum regime opressor pode admitir.  Uma boa razão para que a gente continue cultivando a nossa democracia.

 



MEU BOLO FAVORITO (Keyke Mahboobe Man).  Irã, 2024.  Direção: Maryam Moghadam e Behtash Sangeeha.  Elenco: Lili Farhadpour, Esmaeel Mehrabi, Mansore Ilkani.  96 min.

 

Um filme iraniano simples, de baixo orçamento, consegue alcançar um alto grau de sensibilidade ao tratar de solidão e velhice.  A rotina da solidão pode ser muito cruel, na ausência do ser amado, que se foi, ou de um passado que já ficou para trás, das amigas, amigos ou colegas de trabalho, que envelhecem, perdem força e vigor.  Mas os sonhos e os desejos continuam lá.  A cabeça sonha coisas que o corpo já não dá conta.  O espectro da doença e da morte é um desafio real e concreto.  Acomodar-se ou desistir desses sonhos gera frustração, amargura.  E nem o recurso à ironia alivia o problema.  As respostas individuais, no entanto, variam muito.  Às vezes, um gesto ousado pode gerar esperança, amor.  A repressão e o controle do comportamento feminino são fatores complicadores.  Em especial, numa sociedade autoritária, que controla do uso correto do véu às pessoas que são recebidas em casa.  É contra a lei de Deus, por exemplo, uma mulher receber um homem em casa.  Por qualquer que seja o motivo. Uma sociedade que pulsa e clama por liberdade, mas que está presa a valores arcaicos, sujeita à Polícia da Moral, torna radical a experiência do envelhecer e da solidão.  No filme “Meu Bolo Favorito”, todas essas questões se fazem presentes, bem como o revigorar da vida pela emergência do afeto, do amor e do companheirismo.  Diálogos surpreendentemente claros e diretos revelam o que está envolvido nessa temática. A personagem central da trama, Mahin, papel vivido brilhantemente por Lili Farhadpour, explora uma série de nuances da situação feminina, que remetem ao país, mas vão além dele, com certeza.  Faramarz, papel também de ótimo desempenho de Esmaeel Mehrabi, nos mostra que o poder masculino se esvai, desaparece no viver solitário.  O grupo de homens idosos do bar também remete à perda dessa força, em que pese o modelo social privilegiar tão claramente o homem, frente à liberdade e à capacidade de decidir a própria existência.  O fato é que a vida pulsa na tela com muita verdade nesse simpático “Meu Bolo Favorito”.  O bolo é aquele que é feito na espera de alguém para comer e compartilhar.

 

FILMES EM CARTAZ

Já comentei por aqui vários filmes que estão entrando na programação dos cinemas, quando da 48ª. Mostra Internacional de São Paulo: MARIA CALLAS, TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ, SOL DE INVERNO, BABY, MALU e LUÍS MELODIA, NO CORAÇÃO DO BRASIL.  Quem não viu e quiser conferir entre nas postagens da Mostra em outubro e começo de novembro por aqui:  https://cinemacomrecheio.blogspot.com 





quinta-feira, 25 de abril de 2024

PLANO 75

 

   Antonio Carlos Egypto

 

 


PLANO 75 (Plan 75), de Chie Hayakawa, indicado pelo Japão ao Oscar de filme internacional, trata de um programa governamental de eutanásia voluntária, dirigida a cidadãos idosos, a partir de 75 anos.  Uma coisa complicada porque, se se pode admirar o programa suíço de morte assistida como algo generoso e humanitário, o mesmo não se dá aqui.  Na Suíça, o programa é particular, tem alto custo e, em princípio, se dirige a cidadãos e cidadãs que optem por abreviar a existência, em função de sofrimentos físicos ou psíquicos ou por desalento com a vida.  É algo cercado de muitos cuidados. 

 

No caso do suposto programa japonês abordado no filme, há a ideia de que os idosos, ou boa parte deles, são um peso para a sociedade, para os mais jovens.  E, apelando para o espírito de sacrifício japonês (kamikazes, haraquiri, por exemplo), de o Estado incentivar as pessoas a voluntariamente aderirem à eutanásia, com algumas vantagens e sem custos.  Embora haja também pacotes luxuosos em resorts para as últimas noites da vida, para os abonados.  Quando se estabelece um programa oficial, e se divulga amplamente isso, pressupõem-se ações em larga escala, para atender a todos os possíveis interessados, e um esquema em que tudo precisa funcionar perfeitamente.  O que é um desafio complicado. 

 

Vamos fazer um paralelo entre o planejamento familiar e o controle de natalidade.  Uma coisa é orientar e oferecer recursos para aqueles que desejarem limitar o número de filhos aos que efetivamente quiserem e puderem criar.  Outra, é realizar um programa oficial para a redução do número de filhos por família, a partir do Estado, com leis, punições ou incentivos, ainda que tudo permaneça “voluntário”.  A motivação que vem das pessoas ou das famílias é muito distinta da motivação do Estado, dos governantes e dos planos econômicos.  Nesse último caso, é inevitável uma coerção, até pelo poder da propaganda oficial, com seus meios e recursos financeiros, quando há um interesse coletivo (ou governamental, pelo menos) na história.  Um programa de massa, que atinja muita gente, tem maior probabilidade de falhar.  E trata-se de um assunto com a seriedade da morte, da própria morte do indivíduo que adere ao plano.

 

O filme PLANO 75 mostra essas coisas, a partir de uma narrativa que se concentra, principalmente, em dois casos, em que o desalento em viver está acompanhado de dificuldades ou problemas pessoais, mas que também refletem o abandono a que a sociedade e o Estado relegam os idosos.  Basta lembrar das dificuldades de uma pessoa idosa de encontrar moradia para alugar, diante de um despejo inevitável, quando se exigem, ironicamente, dois anos de antecipação do aluguel para alguém que já beira os 80 anos e que não dispõe de recursos para tal.  Nesse caso, é o lugar que a pessoa ocupa na sociedade que está marcado.  Marcado para morrer, se pode dizer.  A opção do indivíduo está, portanto, bastante limitada.

 

Quando a narrativa se ocupa das falhas que podem ocorrer, a situação é de chorar, alarmante.  Não que o filme seja de emocionar, na sua concepção.  Mas é algo tão grave, que não dá para brincar.  Como, de algum modo, o filme faz, tentando desanuviar as coisas.  É um produto bem feito, tem seus defeitos, mas é um bom trabalho sobre um tema cada vez mais sério num mundo cada vez mais povoado por pessoas idosas.  No caso, o Japão é campeão nisso.  De todo modo, essa eutanásia oficial não pode ser a solução, como o filme mostra.

 

Elenco: Chieko Baishô, Hayato Isomura, Yusumi Kawai, Taka Takao.  105 min.