quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O PREÇO DA FAMA


Antonio Carlos Egypto




O PREÇO DA FAMA (La Rançon de la Gloire).  França, 2013.  Direção e roteiro: Xavier Beauvois.  Com Benoît Poelvoorde, Roschdy Zem, Etienne Comar, Chiara Mastroianni, Marie-Julie Maille, Peter Coyote, Nadine Labaki.  110 min.


Charles Chaplin (1889-1977) pode ser considerado o maior ícone da história do cinema mundial.  Por seu talento genial e pelo sucesso que obteve com seu personagem Carlitos em todas as partes do globo e que já dura um século.  Sua vida foi marcada por histórias incríveis, que vão da fome que chegou a passar na infância à conquista de ganhos tão polpudos que ele não poderia imaginar nem em seus melhores sonhos.  Mesmo após a morte, a figura de Chaplin ainda viveu uma grande aventura. O caixão com o corpo foi roubado de sua sepultura, na Suíça, poucos meses após o enterro, ocorrido no Natal de 1977.




A história desse sequestro, de um lado foi dramática, para a família e para a enorme legião de fãs, que ainda assimilava a perda do mito. De outro, tem lances cômicos.  O corpo sumiu, a notícia se espalhou e muita gente entrou na concorrência com os sequestradores reais, tentando extorquir grana da família, na base do trote.  E uma série de trapalhadas acabou acontecendo, até que o caso fosse resolvido.  Assim como nos maravilhosos filmes de Chaplin, também a realidade seria cômica e dramática, ao mesmo tempo.




A história real desse incrível e improvável sequestro do corpo de Chaplin inspirou o filme “O Preço da Fama”, de Xavier Beauvois, o mesmo cineasta que realizou “Homens e Deuses”, em 2010.

A trama mostra dois homens sem dinheiro, um, que acabou de sair da prisão, Eddy (Benoît Poelvoorde), e o outro, Osman (Roschdy Zem), com uma filha pequena e a mulher doente.  A ideia de desenterrar e roubar o caixão com o corpo de Charles Chaplin parece simples, de fácil realização, e que promete um lucro fabuloso.  Pode não ser bem assim, como se verá, mas outros casos similares andaram acontecendo e tinham dado certo.  Vai daí que vale a pena tentar, principalmente para quem não tem nada a perder.  Além do mais, a morte de Chaplin esteve diariamente no noticiário com destaque, seus filmes sendo reprisados.  O mundo lamentava a perda.  Que melhor momento para lucrar com isso?




“O Preço da Fama” é bem realizado, leve, engraçado, envolvente.  E coloca poesia na história, homenageando o grande palhaço que fez o mundo rir, na trajetória do ex-presidiário Eddy que encontra no circo, na função de palhaço e no riso, o amor e a ternura que lhe abrem caminhos.  Valoriza também a expiação da culpa e o perdão, como Carlitos certamente faria.

Uma direção segura, um bom roteiro, atores e atrizes muito bons, garantem um bom espetáculo.  A história, embora bem conhecida, pode interessar muito aos mais jovens que não souberam, não se informaram sobre ela, ou aos que se esqueceram do assunto.  Afinal, os fatos ocorreram em 1978, já se passaram 37 anos.


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

UM SENHOR ESTAGIÀRIO


Antonio Carlos Egypto




UM SENHOR ESTAGIÁRIO (The Intern).  Estados Unidos, 2015.  Direção: Nancy Meyers.  Com Robert De Niro, Anne Hathaway, Rene Russo, Anders Holm, Andrew Rannells.  121 min.


Cinema é fonte de informação, conhecimento, reflexão.  E, também, de diversidade cultural.  Mas não deixa de ser fonte de diversão e entretenimento.  Rir é bom e necessário.  Uma boa comédia é aquela que nos faz ver, às vezes sob um ângulo caricato ou exagerado, coisas importantes que estão à nossa volta.   É um jeito leve de abordar questões relevantes.

“Um Senhor Estagiário” parte de uma questão bem real.  Um homem bem sucedido na vida se aposenta, fica viúvo e chega aos 70 anos com saúde, sem saber direito o que fazer com o tempo e se sentindo solitário e inútil.  Como lidar com isso?  Um problema que afeta cada vez mais gente pelo mundo.  A questão agora não é mais sobreviver, fazer carreira, acumular coisas, é dar sentido à vida cotidiana.  Em uma palavra, se reinventar.




Cada um deve encontrar o seu caminho.  No caso de Ben (Robert De Niro), a escolha foi apresentar-se como candidato a estagiário senior numa empresa e voltar a trabalhar regularmente, levantando cedo, cumprindo horário.  E vestindo terno e gravata, ainda que isso não seja solicitado ou necessário; é a força do hábito.  Parece um tanto ridículo, mas é uma possibilidade que o filme vai explorar de um jeito interessante, reforçando o contraste entre o mundo do trabalho de alguns anos atrás e as novas tecnologias e processos de organização empresarial hoje vigentes.

Um roteiro bem construído vai apresentando situações que têm sua graça, mas que nos fazem pensar sobretudo na velocidade das transformações e no que isso traz de avanços, mas também de problemas e limitações.  Ganha-se em muitos aspectos, mas o desgaste é grande e as perdas, inevitáveis.  A formação pessoal, o estilo de viver e se comportar, refletem diferentes formas de educação.  Que, por seu turno, respondem a necessidades distintas que o tempo transforma.




Ben foi executivo de uma firma que produzia listas telefônicas, algo que os novos funcionários do site de moda em que ele foi ser estagiário mal sabem do que se trata.  Os mais jovens quase não conseguem imaginar o que possa ter sido o mundo antes do advento do computador e do celular.  Mas talvez Ben tenha muito a dar, como experiência de vida e equilíbrio, a esses novos colegas, especialmente à dona dessa empresa virtual, Jules (Anne Hathaway), a bem sucedida expressão de sucesso desse mundo frenético e avassalador de nossos dias.  É de paz e equilíbrio que ela mais precisa para administrar tanto seu negócio, como sua família.

Da relação de Ben e Jules a trama se alimenta e produz cenas interessantes.  Há boa dose de previsibilidade na história, mas tudo flui bem e o passatempo cumpre seu objetivo, sem ser inócuo. 




O talento de Robert De Niro carrega o filme e lhe dá um inegável charme.  Muito bem complementado por Anne Hathaway, uma atriz muito expressiva e que passa ao espectador a ansiedade que o personagem exige.  De Niro compõe um tipo adorável, bem centrado, diplomático, zen, o que se supõe ser uma conquista da maturidade.  Nem sempre, é claro.  Mas funciona nessa história. Os demais personagens são coadjuvantes, menos delineados, que entram para caracterizar, principalmente, as situações cômicas. O filme dispensa apelações, é simpático e divertido.  Entretenimento de boa qualidade.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA


Antonio Carlos Egypto


João Miguel como Matraga


A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA.  Brasil, 1965.  Direção: Roberto Santos.  Com Leonardo Villar, Jofre Soares, Maurício do Valle, Maria Ribeiro, Flávio Migliaccio.  109 min.

A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA.  Brasil, 2011. Direção: Vinícius Coimbra.  Com João Miguel, José Wilker, Vanessa Gerbelli, Irandhir Santos, Chico Anysio, José Dumont.  106 min. 


O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora.

“A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, baseado na obra de Guimarães Rosa, realizado em 1965 com a direção de Roberto Santos, é um dos maiores clássicos do cinema brasileiro.  Foi um dos filmes mais fortes e impactantes da minha juventude.  As interpretações de Leonardo Villar, Jofre Soares, Maurício do Valle, Maria Ribeiro e Flávio Migliaccio, inesquecíveis.  A música que Geraldo Vandré fez para o filme é espetacular, nunca poderia me esquecer dela porque a tenho em disco de vinil até hoje e ouço de quando em quando.


Leonardo Villar como Matraga


Só revi o filme há poucos meses, numa sessão da Cinemateca Brasileira, dentro da retrospectiva dedicada ao cineasta Roberto Santos, que o exibiu no telão em cópia restaurada.  O impacto foi o mesmo.  O filme é belíssimo.

Vencedor do Festival de Brasília de 1966, sua circulação obviamente sofreu muito com a ditadura militar/civil do período e muita gente não chegou a conhecê-lo.  Não houve lançamento em DVD.  Quem entrar no Google vai encontrar facilmente a cópia integral dele, mas não vale a pena ver.  A imagem é ruim e compromete essa obra-prima do cinema nacional.  Fiquem de olho em alguma outra exibição no cinema da cópia restaurada, que aí a história é outra.




Agora chega aos cinemas uma nova versão de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, sob a direção de Vinícius Coimbra.  O filme foi realizado em 2011, mas só em 2015 está sendo lançado em circuito regular. Ele foi premiado no Festival do Rio, em 2011, como melhor filme, pelo Júri Oficial e pelo Júri Popular.  Mesmo assim, questões de direitos e burocráticas o mantiveram fora de cartaz até hoje.

Nessa nova versão da obra de Guimarães Rosa, coube a João Miguel, grande ator, o papel de Augusto Matraga, que originalmente foi vivido pelo grande Leonardo Villar. Ele se sai muito bem na difícil empreitada de viver um personagem que se transforma de modo radical e tem agressividade e mansidão em proporções alternadas, crueldade e beatitude em escalas similares.




A nova versão traz também José Wilker, como Joãozinho Bem-Bem, e tem a participação especial de Chico Anysio, como o Major Consilva.  Dois grandes nomes que já se foram, figuras queridas e talentosas, que ver em cena é sempre muito bom. Vanessa Gerbelli e Irandhir Santos também compõem o ótimo elenco do filme, que ainda conta com participações especiais de José Dumont e Gorete Milagres.  Enfim, de grandes atores e atrizes o filme está cheio.

Para que possamos admitir a ausência da música de Geraldo Vandré, que dialogava tão diretamente com o texto e a história, na versão original, o novo Matraga põe a música sublime de Tom Jobim com grande orquestra, inundando a tela de um som magnífico.  Deu para compensar.




A versão atual de Matraga destaca e valoriza bem a prosa original de Guimarães Rosa e dá à saga do personagem uma dimensão de aventura ao estilo faroeste, capaz de envolver o público.  É um bom trabalho, que merece ser visto.

Quanto à inevitável comparação que farão todos os que conhecem o filme original, é preciso considerar que os tempos são outros, as intenções mudam, a própria tecnologia de filmar muda.  O Matraga original é um exemplar bem acabado do cinema novo brasileiro da época, que renovou a linguagem cinematográfica nessas plagas.  Para mim, incomparável.




O que não significa que não se possa revisitar essa obra tão importante da literatura, como é este conto de “Sagarana” e buscar uma nova forma de apresentá-la.  Seria preciso realizar esse trabalho com a competência e a dignidade que ele merece.  Isso, o filme de Vinícius Coimbra alcançou.




quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O CINEMA DE TRUFFAUT


Antonio Carlos Egypto




François Truffaut (1932-1984) foi um dos maiores cineastas de todos os tempos.  Deixou marcas profundas na mudança de rumos que o cinema conheceu, a partir de novas filmografias, como a nouvelle vague, de quem foi um dos expoentes.  Seu trabalho como crítico no Cahiers du Cinéma teve grande importância na revisão de conceitos a respeito do cinema na França e no mundo.  Foi grande responsável pelo reconhecimento artístico do cinema de Alfred Hitchcock.  O livro de entrevistas “Hitchcock/Truffaut” é um clássico, tanto quanto os filmes dos dois grandes diretores.




A obra de Truffaut é magnífica na concepção fílmica, na elaboração de personagens, sempre atraentes por sua humanidade, e na dedicação à questão do amor, sob as suas mais variadas formas, da mais banal à mais bizarra.  Ele jamais perdeu de vista a necessidade de se comunicar com o público, fazendo só o que acreditava, sem concessões comerciais, mas também sem hermetismo.  Um autor, na acepção completa do termo, que ele tanto cultivava. 




Quem não conhece bem a obra cinematográfica de François Truffaut tem agora uma boa oportunidade para fazê-lo.  De um lado, pela exposição “Truffaut – Um Cineasta Apaixonado”, no MIS – Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, onde seus filmes e objetos relacionados a eles estão sendo mostrados.  Há muito que ver lá para conhecer ou reconhecer o trabalho do grande cineasta francês, além de alguns aspectos de sua história pessoal.  De outro, porque o cine Belas Artes, também em São Paulo, está exibindo na tela do cinema 17 dos 21 longas do diretor, até o final do mês de setembro, em sessões da retrospectiva “A Nova Onda de François Truffaut”.  São filmes que existem em DVD/Blu-Ray ou podem ser vistos em outras mídias, mas que ganham muito com a exibição no telão.



Vale a pena ver, ou rever, a série de filmes que têm como personagem Antoine Doinel (vivido sempre pelo ator Jean-Pierre Léaud): “Os Incompreendidos” (1959), “Beijos Proibidos” (1968), “Domicílio Conjugal (1970), “O Amor em Fuga” (1978).  Grandes pedidas são: “Jules e Jim, uma Mulher Para Dois” (1961) e “O Último Metrô” (1980).  Vale ver também “O Garoto Selvagem” (1970) e “Na Idade da Inocência” (1976), que tratam de crianças em situações, digamos, de risco.  Os dois últimos trabalhos também estão lá: “A Mulher do Lado” (1981) e “De repente, num Domingo” (1983).  Não esquecer de “A História de Adèle H”, com grande desempenho de Isabelle Adjani (1975).  Quer saber, tudo vale a pena.  O que você não conhecer, aproveite para ver com prioridade, já que, mesmo os filmes considerados menores, são, inegavelmente, muito bons. 




Uma outra sugestão para os que se interessam pela obra do cineasta é o livro “O Cinema segundo François Truffaut”, uma reunião de entrevistas e textos coletados ao longo de muitos anos, reunidos e editados por Anne Gillain.  Aqui ele fala da construção fílmica, da sua visão do cinema e de cada filme que dirigiu.




terça-feira, 15 de setembro de 2015

FESTA DE DESPEDIDA


Antonio Carlos Egypto




FESTA DE DESPEDIDA (Mita Tova).  Israel, 2014.  Direção: Tal Granit e Shayron Maymon.  Com Ze’ev Revach, Levana Finkelstein, Aliza Rosen, Ilan Dar.  95 min.


O filme israelense (coprodução alemã) “Festa de Despedida” é mais um dos produtos que se ocupam da velhice como etapa de vida.  Oportuno isso, na medida em que a população mundial envelhece, especialmente onde há desenvolvimento econômico e os progressos da medicina estão disponíveis.  A redução das taxas de natalidade, típicas da modernidade, também contribui enormemente para isso.

Atualmente, personagens envelhecidos têm sido frequentes no cinema, dando oportunidade aos atores e atrizes que adentram a faixa dos 70 ou mesmo dos 80 anos de idade.  Outro ganho interessante para o público: poder rever grandes talentos em ação, que não deveriam mesmo estar fora das telas só porque agora têm a pele enrugada e perderam a beleza e o vigor da juventude.




Em “Festa de Despedida”, a maioria dos personagens já passou da barreira dos 80 anos.  Inevitável, portanto, que o tema da morte, agora já mais próximo, apareça.  Assim como as doenças mais sérias e incapacitadoras.  E, consequentemente, o genuíno desejo de morrer.  Para alguns, chegou a hora de parar de sofrer e o falecimento seria uma bênção.

Ocorre que as circunstâncias da morte e o momento em que ela se dá escapam ao nosso controle.  Ninguém quer morrer de forma dolorosa, prolongada, sofrida.  Então, se coloca a questão: as pessoas têm o direito de optar por uma morte rápida, confortável, sem dor, a partir do momento em que a vida não faça mais sentido para ela, em função das agruras terminais que lhe traz? 




Sim, o assunto do filme é a eutanásia, um tabu raras vezes tratado no cinema.  Aqui, um grupo de amigos anciãos de Tel-Aviv tentam se ajudar e acabam produzindo uma  máquina de auto-eutanásia, como solidariedade a um grande amigo que deseja partir.  Pela lei brasileira, ainda que o paciente terminal manifeste seu expresso desejo de morrer e acione a alavanca voluntariamente, isso é homicídio.

O que pode ser entendido como suicídio assistido também gera polêmica, sobretudo no terreno religioso.  Para os personagens de “Festa de Despedida”, é pura solidariedade.  O filme coloca humor em muitas das sequências que mostra.  Não é exatamente uma comédia, nem daria para ser com um tema dessa importância e gravidade, mas a dupla de cineastas soube tratar do assunto com leveza e até alegria.  Como dizia a velha canção de Billy Blanco (1924-2011), “o que dá pra rir dá pra chorar”.  Pois é!




Os questionamentos que o filme levanta são muito bons, as atitudes dos personagens, muito dignas e realistas, mesmo quando um pouco atrapalhadas e, portanto, engraçadas. A máquina que soluciona o problema do amigo comum gera expectativas em outros.  Ao que parece bom, e funciona, outros também querem poder ter acesso.  Justo, mas complicado.  O filme não se exime das grandes questões.  Por exemplo, faz sentido realizar um grande empenho em salvar uma vida, utilizando toda a rapidez e recursos médicos possíveis, sendo que a pessoa atendida só está esperando que chegue a sua hora para poder descansar e morrer em paz?  Enfim, um filme inteligente e corajoso.




sábado, 5 de setembro de 2015

LOVE 3D


Antonio Carlos Egypto




LOVE 3D (Love).  França, 2015.  Direção, roteiro e edição: Gaspar Noé.  Com Karl Glusman, Aomi Muyock, Klara Kristin.  134 min.


Um drama de amor todo contado pela ótica do sexual foi o que pretendeu o cineasta de origem argentina, que vive na França, Gaspar Noé, em “Love”.  Mais ou menos assim: o sexo é o amor.  Com esse conceito, ignora-se o sexo sem amor e o amor sem sexo.  Tudo bem, não deixa de ser um recorte da realidade amorosa.  O problema é como mostrar isso.

Em “Love”, há uma abissal discrepância entre o que poderíamos chamar de cenas de amor e de cenas de sexo.  Ainda que a prevalência tivesse mesmo que recair nas cenas de sexo, dado o conceito proposto, a profusão de sexo explícito ao longo de todo o filme não tem qualquer justificativa plausível, que não seja o apelo comercial e o desejo de chocar.




O que mais se vê são várias formas de relações sexuais, em diferentes posições e apelos eróticos, envolvendo dois, três ou múltiplos parceiros.  Genitais em atividade são fartamente expostos.  Tudo isso em 3D, para acentuar os efeitos.  Assim se caracteriza um produto pornográfico, ou seja, que tem como principal função excitar os espectadores.

Acontece que Gaspar Noé tem outras pretensões.  Quer falar do amor como uma obsessão que leva ao descontrole, que retorna avassalador mesmo depois de um bom tempo passado, que envolve ciúme, frustração e angústia.  E assim levar a algo mais.  Mas o filme é longo demais e o desequilíbrio, tão flagrante, que essas intenções se dissolvem numa narrativa excessivamente sexualizada.




É mesmo de excesso que padece o cinema de Noé.  Em “Irreversível”, o superestimado filme dele de 2002, uma longuíssima cena de estupro se destaca da trama de modo altamente provocador.  Pode ter chacoalhado as pessoas, mas era demais, e desnecessário.  Aqui é a mesma coisa: o sexo explícito é tanto que o resto se perde.  Se o filme tivesse meia hora a menos, quem sabe?  Para além de um produto pornô chic, “Love” soa apenas pretensioso e raso.  E que não se leva muito a sério, mesmo.

O personagem principal masculino é Murphy (Karl Glusman).  Mas por quê?  O filme explica.  Trata-se da lei de Murphy, aquela que diz que se algo pode dar errado, com certeza dará mesmo.  Electra (Aomi Muyock), o grande amor de Murphy, tem um complexo em relação ao pai, diz-se a certa altura.  O filhinho de Murphy se chama Gaspar, como o diretor.  E há um outro personagem chamado Noé, o sobrenome do diretor.  De que modo deveríamos interpretar coisas como essas?    Melhor deixar para lá.


sexta-feira, 4 de setembro de 2015

DIÁRIO DE UMA CAMAREIRA


Antonio Carlos Egypto




DIÁRIO DE UMA CAMAREIRA (Journal de Une Femme de Chambre).  França, 2015.  Direção: Benoît Jacquot.  Com Léa Seydoux, Vincent Lindon, Clotilde Mollet, Hervé Pierre.  96 min.


“Diário de Uma Camareira” é um filme de Benoît Jacquot, com base em livro de Octave Mirbeau, publicado em 1900.  É uma boa história, um tanto datada, mas sempre interessante de se ver.  E o diretor é corajoso, a mesma trama já foi filmada por Jean-Renoir e Luís Buñuel.  Na versão de Buñuel, de 1964, o papel principal coube simplesmente a Jeanne Moureau.  Comparações complicadas de se fazer.  Fica sempre a questão: precisava refazer o que já foi bem feito? 

Na versão atual, de 2015, o papel de Célestine, a camareira, coube a Léa Seydoux, que põe sua beleza e seu estilo blasé a serviço de um personagem ambíguo: de um lado, subserviente, demonstrando aceitar a condição de empregada doméstica que se permite deixar escravizar.  De outro, com uma revolta latente e a busca pelo momento de virar o jogo.  No filme, falas sussurradas (a la Collor, xingando Janot no Congresso Nacional, num dia desses) tentam explicitar esses sentimentos e essa ambiguidade.  Não gostei do recurso, desnecessário. Isso tem de vir dos gestos, olhares, postura.  E a atriz consegue transmitir isso bem.




A trama se concentra no trabalho de Célestine, que vem de Paris para a família Lanlaire, na região de Provence.  A camareira, além de bonita e vistosa, se veste muito bem com as roupas da época (fim do século XIX, início do XX). 

Maltratada pela patroa, assediada pelo patrão, tentando se entender com os outros empregados da casa, ela vai sondando o ambiente, em busca de alcançar seus objetivos.  Encontrará em Joseph (Vincent Lindon), o jardineiro e faz-tudo, empregado de absoluta confiança da casa, um parceiro potencial.  O problema é que ele manifesta um antissemitismo radical: tudo o que há de mal é atribuído aos judeus, a origem do que virá algumas décadas depois a produzir o Holocausto.  Célestine não vê diferença entre as patroas judias e as demais, mas nem por isso desiste dessa parceria.




O enredo vai tomando rumos que surpreendem e conseguem envolver o espectador. Em que pese o diversionismo da direção, que, abruptamente, intercala cenas de flash back que, na verdade, não precisariam existir. As experiências passadas da camareira, apesar de fortes, não alavancam a narrativa, na verdade a dispersam. Caberiam em poucos diálogos, alguns até já estão no filme.  E outros poderiam ser acrescidos.  Bastaria isso.

A questão da confiança na relação patrão-empregados e os conflitos de classe inevitáveis estão bem expostos no filme, o elenco é de primeira, trata-se de uma boa produção, mas não basta, faltam brilho e inventividade.  A nova versão de “Diário de Uma Camareira” é apenas mediana.



terça-feira, 1 de setembro de 2015

NUMA ESCOLA DE HAVANA


Antonio Carlos Egypto




NUMA ESCOLA DE HAVANA (Conducta).  Cuba, 2014.  Direção e roteiro: Ernesto Daranas.  Com Alina Rodríguez, Armando Valdéz Freire, Silvia Águila, Yuliet Cruz.   108 min.


O filme cubano “Numa Escola de Havana” vai sensibilizar e interessar a todos os que acreditam no processo educacional realizado com afeto, dedicação e respeito pelos alunos.  Quem crê na educação como fonte de crescimento e desenvolvimento humanos, não deixará de se comover com a complicada trajetória do garoto Chala (Armando Valdéz Freire) e sua professora, uma educadora de mão cheia, Carmela (Alina Rodríguez), que parece ser a única pessoa capaz de compreendê-lo.




Não é mesmo uma tarefa fácil acolher Chala.  Ele, aos 11 anos de idade, já é bem escolado nas malandragens da vida.  Treina cães de briga e pega pombos no ar, para conseguir alguns trocados para sobreviver.  Sua mãe, viciada em drogas, não é capaz de se sustentar, muito menos de cuidar do filho, de quem não sabe ao certo quem seja o pai.

Num quadro assim, se a escola se omitir, uma vida estará irremediavelmente comprometida, perdida para o crime e a violência, o que já se anuncia.  Mas a professora Carmela, já há cinquenta anos em atividade, tanto quanto os dirigentes cubanos, como ela cita no filme, conhece bem seu trabalho e sua responsabilidade social.  Não abre mão deles, nem de sua autoridade em sala de aula.  Mesmo quando o conflito se agrava e ela tem de enfrentar a supervisão, que exerce controle sobre a escola pública, com a recomendação de enviar Chala a uma escola de conduta, ou seja, uma espécie de internato correcional.  Ou quando uma bobagem, como um santinho colocado por uma aluna no quadro de avisos da classe, pode se tornar um problema para os conceitos de educação leiga cultivados pelo Estado cubano.




A educadora Carmela faz do respeito profundo pelo outro sua razão de vida, para além de qualquer burocracia ou regulamento que, por definição, invertem os valores das coisas e podem produzir muita injustiça e sofrimento às pessoas.  Quem trabalha em educação sabe que, muitas vezes, esses entraves podem ser fatais para o processo de educar.  E se não forem enfrentados, de tanto perder batalhas, perde-se a própria guerra.

“Numa Escola de Havana”, por meio da figura da personagem Carmela, celebra o processo educacional como meio de libertação.  A exemplo das pombas que anseiam por voar nas mãos do garoto Chala. A grande atriz Alina Rodríguez, que dá vida à educadora Carmela, faz um belo trabalho que, infelizmente, foi o seu derradeiro.  Ela faleceu em julho último.  Vale a pena vê-la na tela.



O garoto Armando Valdéz Freire, que faz Chala, é muito expressivo e convincente, num papel que, ao que parece, tem muito a ver com a sua própria história de vida.  E, naturalmente, com as questões sociais que, na pequena ilha de Cuba ou no nosso grande Brasil, parecem sempre se aproximar.

“Conducta”, o título original do filme, já foi exibido em muitos festivais pelo mundo e recebeu prêmios importantes, além de ser indicado para representar Cuba junto ao Oscar 2015 e ao prêmio Goya espanhol.  Ganhou o de melhor filme no festival de cinema de Havana 2014.




O filme está sendo apresentado como “Os Incompreendidos” cubano, com referência ao clássico da nouvelle vague de François Truffaut, de 1959, pela similaridade da história que é contada.  Há muitos pontos em comum, mas não dá para fazer uma comparação dessas.  Se for por aí, “Numa Escola de Havana” também dialoga com filmes brasileiros de peso, como “Central do Brasil”, de Walter Salles, de 1998, ou “Pixote”, de Héctor Babenco, de 1980.  Mas se o filme de Ernesto Daranas não chega a esses patamares de excelência, nem por isso deixa de ser um belo produto atual, que recicla o papel humanista e reparador da educação com talento e beleza.