quarta-feira, 31 de maio de 2023

EO

                                          Antonio Carlos Egypto

 



 


EO (Eo).  Polônia, 2022.  Direção: Jerzy Skolimowski.  Elenco: Sandra Drzymalska, Mateuz Koscivkiewicz, Lorenzo Zurzolo, Isabelle Hupert.  88 min.

 

“Eo”, novo filme do veterano cineasta polonês Jerzy Skolimowski, é uma homenagem a um clássico do diretor francês Robert Bresson (1901-1999) “A Grande Testemunha” (Au Hasard Balthazar), de 1966.  Nos dois casos, o protagonista dos filmes é um burro, ou jumento, e é por meio do que o animal vivencia que vemos o mundo, tanto o dos seres humanos como o dos animais.

 

No filme “Eo”, acompanhamos a vida errante e surpreendente do burro, que passa por todo tipo de experiência com os humanos, desde a sua dona, uma jovem que é afetiva, gosta dele e lhe dá carinho, até os que o tratam como burro de carga, com chicotadas e crueldade.  Resgatado, junto com outros animais de um circo, por um grupo de ativistas que defendem os bichos, sua vida, no entanto, não será de tranquilidade. 

 

Colocado marginalmente junto a outros animais, como cavalos de raça, representantes de uma outra classe, ou junto a porcos ou cachorros indo para o abate, sua vida não será fácil.  Diante do abandono ou da violência, Eo sai andando sem rumo, em busca de alguma outra coisa, o carinho da dona, por exemplo.  E testemunha todo tipo de eventos, como corridas, exibições e brigas de torcidas de futebol, que acabam por vitimá-lo.  Ele apanha sem motivo.  Por ter sido adotado como mascote por uma das torcidas, recebe o ódio da outra.  Sobrevive e segue em frente, até onde as circunstâncias permitirem.

 

Trata-se de um road movie animal, o burro percorre boa parte da Polônia e chega à Itália, passa por florestas, cidades, campos, sendo levado por humanos ou indo por conta própria.  Irrita-se, também, mas sua placidez e inocência são as marcas mais evidentes do animal.

 




Jerzy Skolimowski explora com muita beleza visual o mundo de Eo, seja o das árvores, da água, da lama, do sangue, do firmamento, ou dos estábulos, ruas e outras localidades da cidade.  É um filme a um tempo encantador, mas que também nos mostra o mundo tecnológico em que vivemos, que não tornou o ser humano melhor ou mais compreensivo, embora haja muita gente do bem por aí.  Destaque para o robô de quatro patas, que parece nos indicar um futuro estranho.  Distópico.  Assustador.  Ou atraente? 

 

Seja como for, “Eo” substitui o jumento Balthazar, do filme de Robert Bresson, que era realista e realizado com grande rigor formal, dando espaço para uma exploração visual mais livre e fantasiosa.  Com ótimo resultado, também.

 

“Eo” foi apresentado em Cannes, premiado pelo Júri e indicado pela Polônia para a disputa do Oscar de melhor filme internacional, ficando entre os finalistas.

 

Não deixe de ver (ou rever) também o filme original de Bresson.  Ele foi lançado em DVD pela Versátil, como “A Grande Testemunha”.  E você verá que o simpático burrinho, exposto a tanto que ele não pode controlar, é uma figura admirável, na sua simplicidade de um animal de menor porte e importância, que nos inspira não só a respeitar todos os animais, mas a incluir os excluídos nos direitos de todas as espécies.  Ou seja, valorizar a diversidade animal como se deve valorizar a diversidade humana.

 

 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

O ÚLTIMO ÔNIBUS

Antonio Carlos Egypto

 

 



O ÚLTIMO ÔNIBUS (The Last Bus).  Reino Unido, 2021.  Direção: Gilles MacKinnon.  Elenco: Timothy Spall, Phyllis Logan, Grace Calder, Brian Pettifer.  86 min.

 

Com o cinema, a gente viaja para todo canto, desde que se interesse pelo que se produz em escala global.  Afinal, faz-se bom cinema em todo o planeta. 

 

 

A viagem pode ser a razão de ser do próprio filme.  O cinema tem um gênero para isso: o road movie.  As paisagens, situações, relacionamentos, sensações e sentidos mudam enquanto a geografia se revela.  É um gênero, geralmente muito interessante e agradável de se ver.  Um bom filme também precisa muito de um bom personagem, ou vários.  Um bom personagem é o começo indispensável de um bom filme. 

 

Quando se alia uma viagem, uma verdadeira odisseia, a um bom personagem, vivido por um grande ator, o resultado entusiasma.  É o que acontece com “O Último Ônibus”, o filme britânico dirigido pelo escocês Gilles MacKinnon.

 

Tomothy Spall, excelente ator inglês, de 66 anos, vive Tom, um homem de 90 anos, que encara uma enorme viagem, toda de ônibus, partindo de uma vila do nordeste da Escócia, onde mora, viúvo, em direção ao extremo sul da Inglaterra.  Com isso, refaz uma viagem realizada há 50 anos, marcada pela paixão pela mulher com quem viveu.  E meticulosamente procura refazer o percurso, em sentido contrário, pousando e passando pelos mesmos lugares da rota original.  O que não se revelará fácil.

 

A Grã-Bretanha mudou muito nesses 50 anos.  Em especial, pela diversidade cultural e humana que agregou ao longo desse tempo.  Os comportamentos, hábitos e linguagem são exemplos disso.  A capacidade de acolher, a educação, tudo soará para ele um pouco estranho e desafiador.  Mas muita coisa nova, e boa, ele encontrará pelo caminho.

 




De toda a forma, uma viagem como essa – aos 90 anos, de ônibus – é uma prova de resistência bastante dura, mesmo para um cidadão que goza de boa saúde.  Qualquer incidente pode ser sentido no corpo, com muito mais intensidade do que ele já experimentou ao longo de toda a vida. Ele nunca teve 90 anos antes.  Assim, sem alguma solidariedade, ele não conseguiria sobreviver nesse desafio que ele mesmo se impôs.

 

A odisseia de Tom acaba tomando proporções que ele não imaginava.  Mas sua resiliência é espantosa. E seu objetivo, muito forte.  O filme acompanha Tom em toda a sua jornada, realçando detalhes, sentimentos e a determinação férrea do personagem.  É bonito acompanhar todo esse processo, uma verdadeira ode à vida.  Que mostra também que um objetivo, uma razão de ser para viver, é fundamental para manter o corpo ativo e respondendo às necessidades da existência, ainda que bastante desgastado.

 

Outro aspecto importante: nos road movies a viagem costuma ser uma forma de aprendizado, de mudança de perspectiva e da maneira de encarar a vida.  Será que Tom nessa idade ainda tem o que aprender?  E se disporá à mudança, no ocaso de sua caminhada humana?

 

“O Último Ônibus” segue uma narrativa linear e cobrindo a evolução geográfica do trajeto.  Não tem grandes inovações formais a apresentar, mas é um filme cativante, que engrandece ainda mais esse magnífico ator que é Timothy Spall, pelo desempenho notável que nos apresenta.

 

O filme também tende a ficar na nossa mente e nos provocar em diversos aspectos.  Não é algo de que se esqueça quando termina a projeção.  Deixa uma marca indelével nos espectadores que tenham sensibilidade para as questões humanas, em especial, a do envelhecimento.;



 

terça-feira, 23 de maio de 2023

MEU VIZINHO ADOLF

                        Antonio Carlos Egypto

 




MEU VIZINHO ADOLF (My Neighbor Adolf).  Israel, Polônia, 2022.  Direção: Leon Prudovsky.  Elenco: David Hayman, Udo Kier, Olivia Silhavy, Danharry Colorado, Jaime Correia.  96 min.

 

Fake News sempre existiram.  Afinal, as pessoas querem acreditar naquilo que corresponde às suas opiniões e desejos, em que pese a evidência contrária dos fatos.  Adolf Hitler (1889-1945) continuou no imaginário de muitos como se tivesse sobrevivido à Segunda Guerra Mundial e não organizado um ritual de morte de sua família, incluído o próprio suicídio, quando a derrota já estava consumada, em Berlim.

 

Em 1960, Adolf Eichmann (1906-1962), um dos principais organizadores do Holocausto, seria capturado na Argentina pelo Serviço Secreto de Israel. Isso teve grande repercussão e consequências.  E gerou a busca por outros possíveis figurões nazistas na América do Sul.

 

A combinação dessas duas situações serviu de mote à comédia “Meu Vizinho Adolf”, dirigida por Leon Prudovsky, em que, em 1960, um vizinho recém-chegado a uma pequena localidade argentina produz sérias suspeitas em Polsky (David Hayman).  Seria seu novo vizinho o próprio Hitler?  Aí começa uma investigação com lances de “Janela Indiscreta”, de Hitchcock, e evidências que se acumulam, apesar da esperada descrença das autoridades locais.  Tal investigação acaba levando ao convívio do velho rabugento Polsky com seu vizinho, o velho rabugento Herzog (Udo Kier), o suposto Hitler.


 



O filme, cujas locações se deram na Colômbia, em Medellín e Bogotá, explora essas situações com uma comicidade, sim, mas que não chega a ser muito engraçada.  Tempera a comicidade com o drama pessoal dos dois personagens centrais e o contexto que os envolve.  Trabalhando com o tema do Holocausto, nos remete à questão judaica e humana que o caracteriza, com sensibilidade.  Lida, também, com a ambiguidade dos sentimentos e das relações afetivas em um ambiente previamente conflagrado, o que leva inevitavelmente ao sofrimento no plano pessoal.

 

A proposta é boa, mas se perde ao longo da narrativa, especialmente quando tem de encaminhar a solução para a situação criada.  Ela não convence, nem é suficientemente explicada para ficar de pé.

 

De qualquer modo, temos dois bons atores, já veteranos, que seguram o filme e nos tocam com seus desempenhos.  A fotografia cria o clima mais adequado aos aspectos lúgubre e dramático da trama, do que aos quiproquós da “investigação”.  Pelo menos na cópia a que assisti, o filme é demasiadamente escuro, dificultando até a compreensão visual de algumas cenas noturnas.  Em que pese o tema bastante sério, embora já muito explorado, o que fica é um entretenimento agradável, nada mais do que isso.




sexta-feira, 12 de maio de 2023

SEM URSOS

 Antonio Carlos Egypto





SEM URSOS (Khers Nist), de Jafar Panahi, do Irã, nos remete ao cinema híbrido e inovador deste renomado diretor.  O que ele mostra, atuando no próprio filme, é o que acontece quando ele se decide a viver por um tempo numa cidade interiorana, bem provinciana, na fronteira com a Turquia.  O que poderia ser uma oportunidade de sossego e repouso se transforma numa complicação constante, dados os hábitos peculiares daquela comunidade.  O simples ato de fotografar ocasionalmente um casal prestes a se unir envolve tantas coisas que, em poucos dias, tudo se torna insuportável.  É melhor se mandar de lá, enquanto é tempo.  Os amantes terão de enfrentar fortes obstáculos que a superstição local alimenta e os jogos de poder aí envolvidos.  Documentário fortificado pela ficção?  História inteiramente inventada, ou parcialmente verdadeira?  Trama criada a partir da observação de elementos da comunidade?  Nunca saberemos.  O que é fato, imaginação, criação ou simples descrição, na verdade, não importa no cinema de Panahi.  O que vale é o seu talento para nos comunicar essa interessantíssima narrativa.  Com Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobaseri, Bakthian Panjel.  107 min.








 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O HOMEM CORDIAL

Antonio Carlos Egypto

 

 



O HOMEM CORDIAL.  Brasil, 2019.  Direção: Iberê Carvalho.  Elenco: Paulo Miklos, Dandara de Morais, Thaíde, Felipe Kenji, Thalles Cabral, Theo Werneck.  82 min.

 

Uma característica constante de narrativa de “O Homem Cordial”, de Iberê Camargo (“O Último Drive- In”, 2015), é a fragmentação, a incompletude, os aspectos misteriosos que estão presentes nas situações.  Como se dissesse: não sabemos bem o que está acontecendo e por que está acontecendo, mas experimente ir por aqui, que alguma coisa se esclarecerá.  Mas, mesmo ao final do filme, não vai ficar tudo compreensível, não.

 

Na verdade, a realidade, sobretudo a social, é apreendida assim.  Por elementos soltos, notícias que aparecem, julgamentos peremptórios a partir das redes sociais, gabinetes do ódio, cancelamentos, efeitos manada.  Que produzem injustiças brutais, destruição de biografias de um modo inaceitável, para um povo civilizado.  A barbárie entrando pelas frestas e ocupando a cena.  “O Homem Cordial” se nutre de questões como essas, que refletem o momento que se vivia no Brasil e que já, felizmente, está sendo superado.  Mas não está fácil reencontrar o que seria o sentido comum da cordialidade, ou seja, a amabilidade, a leveza e a gentileza, tão necessárias.  Todavia, o filme remete mais ao conceito de cordial de Sérgio Buarque de Holanda, que significa passional, do coração, que age pelo afeto.  E o afeto escamoteia, mascara, o conflito.

 

A verdade é que Aurélio, vocalista e líder da banda de rock fictícia Instinto Radical, vivido em belo desempenho de Paulo Miklos (já que tem bastante a ver com a sua própria vida artística), é uma mistura de passionalidade e amabilidade, amalgamando os dois sentidos que se pode dar à palavra cordial.

 




Aurélio é o protagonista de uma trama em que se sabe que um policial morreu (acidentalmente?).  Aurélio é acompanhado o tempo todo pela câmera, que nunca se desliga dele.  Com isso, acompanhamos o eventual que se liga ao trágico, o julgamento, o linchamento e a tentativa genuína de ajudar, em relação ao mesmo personagem.

 

Ele é um jovem branco, de classe média/média alta, que tem todas as condições de se expressar livremente, num período pós-ditadura que, no entanto, esbarra na barbárie saindo do armário, nostálgica, na polícia que garante o privilégio da branquitude, mas é implacável diante da negritude e da pobreza.  É aí que o garoto negro, que sumiu na confusão em que estava envolvido o roqueiro, ganha força e o filme busca o indispensável combate ao racismo estrutural.

 

É um filme que lança muitas questões, reflete com vigor a sociedade brasileira, seus caminhos, descaminhos e perplexidades, mas que não se peja em também se apresentar confuso, como todos nós.  Olhando pelas frestas para tentar ver o todo. E sem conseguir, naturalmente.

 

Em tempos de mudança, num momento pós-traumático, livrando-se de um golpe e da perspectiva de um fascismo rasteiro e incompetente, dá vontade de olhar para a frente e esquecer esse passado recente.  Mas é bom não minimizar o perigo, já que as chamadas elites, ainda nutridas de espírito escravista, parece que arriscam de tudo para salvar seus privilégios.  Como diria Mino Carta, dialogando com seus botões, casa grande e senzala continuam por aí, incólumes.  “O Homem Cordial” reafirma isso no cinema, embora menos convicto do que o texto jornalístico, com sua modernidade em fragmentos.




domingo, 7 de maio de 2023

RODEO

Antonio Carlos Egypto

 

 



RODEO (Rodeo), França, 2022.  Direção: Lola Quivoron.  Elenco: Julie Ledru, Yanis Lafki, Antonia Buresi, Cody Schroeder.  110 min.

 

O primeiro apelo que “Rodeo” tem é bem evidente.  Trata-se de um filme para quem gosta de motos, sabe valorizar os modelos e estilos delas e, principalmente, curte vê-las em ação, tomadas pela velocidade.  As disputas e exibições de manobras arriscadas com as motos, como equilibrá-las numa roda só em velocidade, ocupam várias sequências de “Rodeo” desde o seu início.

 

Entretanto, o filme vai se revelando bem mais interessante do que isso, à medida em que evolui sua narrativa.  A protagonista Júlia (Julie Ledru) é uma garota que quer entrar nesse mundo, dominantemente masculino.  Mais do que isso: machista e misógino.

 

Outro aspecto importante: estamos falando de um grupo social empobrecido e marginal.  Eles roubam motos, ou peças, montam e ganham dinheiro nessa atividade ilegal, coordenada por um presidiário, de dentro da cadeia, por meio de smartphones.

 

Esse caráter marginal do negócio torna bem mais sórdida a ilegalidade dos rachas e exibições de proeza dos encontros das motos. E vamos conhecendo as disputas internas, a agressividade, a violência e as vulnerabilidades desse grupo de rapazes.  O que, em princípio, deveria tornar mais difícil a entrada de Júlia, a única mulher no grupo.  As outras mulheres que aparecem são apenas companheiras, namoradas, andando na garupa das motos.  A única que se coloca como equiparação aos homens é Júlia.  E para ela isso não é difícil: além de dominar o manejo das motos, ela é uma exímia ladra de motos da burguesia, o que lhe abre um flanco importante de poder junto ao grupo e ao personagem encarcerado Domino (que só aparece como voz).

 




Ocorre que o preconceito é mais forte e fala mais alto do que a própria realidade, ali palpável.  Júlia será foco de rejeição, agressividade verbal, desrespeito ao seu corpo, ataques físicos e reações de inveja.  É bom que se diga que ela, como personagem, não é apenas uma vítima.  Ela joga o jogo e bebe a pinga, como se diz popularmente.  Equipara-se, em grande medida, às características do grupo em que se incluiu, mesmo que a contragosto de vários.  Sendo acolhida por alguém do grupo, como Kais (Yanis Lafki), ou por algumas pessoas, como Ofélia (Antonia Buresi), mulher de Domino, e seu filho, Kaylan (Cody Schroeder).

 

Resumo da ópera: o filme da diretora Lola Quivoron alcança uma visão feminista bem realista e escorada numa compreensão dos aspectos sociais muito clara.  Revela-se, assim, algo bem mais profundo do que aparentava ser.  O que pode interessar a muito mais gente do que só àqueles que amam e curtem motocicletas.