terça-feira, 31 de agosto de 2021

BAGDÁ VIVE EM MIM

Antonio Carlos Egypto

 




BAGDÁ VIVE EM MIM (Baghdad in my shadow).  Suíça, 2019.  Direção: Samir Jamal Al-Din.  Com Haytham Abdulrazaq, Zahraa Ghandour, Wassem Abbas, Shering Alenabi.  109 min.

 

A nossa origem faz parte de nossa identidade e será sempre elemento fundamental da vida de cada indivíduo.  O exílio costuma ser uma experiência sofrida, dolorosa.  Em muitos casos, porém, a escolha pelo exílio torna-se inevitável.  É o caso dos países em guerra, da fome, das perseguições, da violência, dos preconceitos.

 

“Bagdá Vive em Mim” fala disso, a respeito de personagens nascidos no Iraque e vivendo exilados em Londres.  O diretor e também corroteirista do filme se inspira em sua própria experiência de iraquiano vivendo na Suíça.  E constrói uma boa trama, que amarra diferentes tipos de exilados, que se encontram e ou trabalham num café londrino chamado Abu Nawas, em homenagem a um poeta árabe importante.

 

O elo desses personagens é a figura de Taufiq (Haytham Abdulrazaq), poeta maduro que sobrevive em Londres como vigilante noturno e que se envolverá com uma morte, uma tentativa de homicídio, e um confronto com o islamismo radical de um ex-colaborador de Saddam Hussein, que acaba de se tornar adido cultural do Iraque na cidade.  Entre outras questões políticas e comportamentais.  Embora faça parte de um ambiente muçulmano, ele não é religioso e, ideologicamente, é comunista.  Isso é um tanto complicado.

 



O contexto do exílio londrino, no entanto, dá margem a muito mais liberdade de ação e escolha, o que alguns iraquianos aprenderam a explorar muito bem.  O casal que comanda o café é liberal, tolerante e divertido, do tipo “viva e deixe viver”.  Já são pessoas sexagenárias, vividas e experientes.

 

Para os mais jovens, isso é bem mais difícil. Amal (Zahraa Ghandour), que saiu do Iraque para escapar de um marido violento, ainda teme se envolver com um rapaz inglês que a deseja e que não entende o que se passa na sua cabeça, já que ela é uma mulher livre e demonstra gostar dele.

Para Muhanad (Wassem Abbas), que saiu do Iraque para evitar as perseguições por ser gay, o clima desanuviou muito, mas ainda é difícil para ele demonstrar afeto a outro homem em público, mesmo sem restrições legais ou sociais.  Como diz o título do filme, Bagdá continua lá, na cabeça de todos, com seus valores, limites, restrições, com o que sua cultura traz de belo, mas também de opressor.

 

A barra pesa quando o jovem Naseer (Shering Alenabi) surpreende sua mãe, seu tio e a todos do café, por sua adesão ao islamismo radical, que interpreta a religião muçulmana como violência e guerra aos infiéis.  E por aí é que a aparente tranquilidade do exílio num país liberal se transforma num inferno particular para os iraquianos do local.  A polícia britânica é quem vai tratar de deslindar o caso.

 

“Bagdá Vive em Mim” prende a atenção, tem bom ritmo, boa estrutura narrativa e ensina muito sobre o jeito de viver, sentir e pensar, dos iraquianos.  Mostra que o processo de aculturação pode ser complicado e demorado.  Enquanto muitos alcançarão êxito em sua empreitada, outros patinarão sem conseguir a estabilidade necessária.  Além disso, o mundo é cada vez mais global e o que parecia bem distante pode estar ali ao lado.

 



Outro aspecto importante é a reflexão sobre as dificuldades para poder usufruir da liberdade.  Conquistá-la pode se tornar um processo complexo, mesmo que as condições externas e objetivas colaborem.  John Lennon disse, certa vez, algo assim: Quando você viaja, não adianta tentar escapar, porque você tem de levar a si mesmo junto.  Ou seja, tudo está na mente, não no lugar.  Determinantes culturais são muito fortes, não é fácil ressignificá-los, construir uma nova identidade, por mais acolhedor que seja o ambiente.

 

Um filme que, praticamente, começa com uma cena de  tortura e tem, quase ao final, uma cena de incêndio criminoso provocado por bombas, parece um filme atormentado.  Mas não.  O diretor de origem iraquiana, Samir, fez um filme suíço, ambientado em Londres, que soa libertador e universal.

 

 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

A 200 METROS_MOSTRA ÁRABE

Antonio Carlos Egypto

 

 A 16ª. Mostra Árabe de Cinema 2021 acontece de forma on line e gratuita no site do Sesc Digital.  Está apresentando produções recentes e inéditas marcadas pela diversidade dos países árabes. Ocorre de 20 de agosto a 16 de setembro.  A cada sexta-feira estreia um novo filme, que permanece disponível durante sete dias.  Para assisti-los, é só se inscrever no site e, a partir daí, acessar sescsp.org.br/cinemaemcasa.  Nesta semana, já está em cartaz, até quinta-feira, “A 200 Metros”, filme palestino, cujo comentário segue abaixo.

 

 



A 200 METROS (200 meters).  Palestina, 2020.  Direção: Ameen Nayfeh.  Com Ali Suliman, Anna Unterberger, Motaz Malhees, Mahmond Abu Aita, Lana Zreik.  97 min.

 

A trama de “A 200 Metros” envolve relações familiares, questões de saúde, dificuldades nos deslocamentos, aspectos pessoais que perpassam por desconfianças e preconceitos.  O eixo disso tudo, no entanto, é um só: as barreiras – controles, muros – que separam e que limitam os palestinos em seu próprio território, controlados por Israel.

 

Mustafá (o famoso ator palestino Ali Suliman) é um palestino casado com uma mulher israelense e com três filhos.  Nessa circunstância, ele teria o direito de adotar identidade israelense, o que lhe permitiria liberdade de movimentos.  Mas ele não quer abrir mão de sua origem palestina.  É, inclusive, criticado por isso.  Com essa decisão, ele fica dependente de um cartão de circulação, que deve ser constantemente renovado, e da autorização de entrada em Israel para trabalhar, por exemplo.

 

A mulher e as crianças podem circular mais facilmente, mas o trabalho dela implica viver em Israel.  Enquanto isso, ele permanece na Cisjordânia, com a mãe.  A família se comunica à distância, por luzes, na maior parte dos dias, quando ela e as crianças não vêm.  São só 200 metros de distância.  Entre eles, uma fronteira e um muro eletrificado.

 



Apesar de passar por controles diversos, digitais, detecção de metais, etc., ele pode ir a Israel desde que esteja com o cartão de passe em dia.  Mas o que pode acontecer diante de um imprevisto, se ocorrer um esquecimento?  Ou seja, se o cartão não tiver sido atualizado, como deve acontecer periodicamente?  Bem, será necessário, então, realizar uma aventura “ilegal” de 200 kms para chegar do lado de lá.

 

Com essa premissa, o filme acompanha a viagem de Mustafá em busca de sua família, especialmente de seu filho que precisa dele num momento crítico.  Além da mulher e das outras duas crianças, suas filhas, que o esperam ansiosamente.  A ansiedade dele também é grande, porque se trata de um pai presente e amoroso.

 

“A 200 Metros” se torna, assim, um drama familiar, com conotações políticas intensas, e é também um road-movie e uma aventura.  Elementos suficientes para interessar e envolver o espectador.  Além disso, entramos num contexto cultural bem diferente do nosso e aprendemos, convivendo com diversos personagens que circulam na região, reunidos num transporte “alternativo”, sujeito a todo tipo de dificuldades.  Por ali aparecem até mesmo uma cineasta e turista alemã e seu namorado de origem palestina, realizando filmagens.

 

A narrativa deixa algumas coisas no ar, não amarra tudo o que poderia e deveria, sendo linear, como é o caso.  Ainda assim, o conjunto é bem convincente, a produção é boa, a direção, segura, e o elenco, competente.  Vale a pena conhecer o filme, escolhido pela Jordânia para concorrer ao Oscar 2021 de filme internacional, e acompanhar a Mostra, que sempre traz produtos atraentes e variados sobre o mundo árabe, o que acrescenta bastante em termos de informação e de reflexão.  E em termos de diversão, também.

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

VALENTINA

Antonio Carlos Egypto

 



VALENTINA, Brasil. 2020.  Direção de Cássio Pereira dos Santos.  Com Thiessa Woinbackk, Guta Stresser, Rômulo Braga, Letícia Franco, Ronaldo Bonafrio.  95 min. 

 

O filme brasileiro “Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos, em seu primeiro longa-metragem, vem recebendo prêmios importantes em festivais.  Na 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo venceu o prêmio do público de melhor ficção nacional, além de receber menção honrosa pelo júri internacional para o desempenho da atriz principal, Thiessa Woinbackk.  Ela recebeu prêmio pela interpretação também no festival Outfest, de Los Angeles.  O filme foi, ainda, fartamente premiado no  Festival Mix Brasil 2020, pela interpretação da atriz, pelo melhor roteiro, melhor longa, pelo júri popular, e o prêmio Coelho de Ouro de melhor longa.  Grande reconhecimento para um trabalho que procurou mostrar o drama da identidade na vida de uma pessoa transexual.

 

A narrativa, bastante realista, enfatiza o quanto a identidade legal importa para que transexuais, como Valentina, possam ser quem são e serem reconhecidos pelos outros.  E quanto esse processo pode ser muito custoso, sofrido, extremamente dolorido.  Alguém que se sente mulher, se apresenta como mulher, é mulher, não pode mostrar um documento de identidade do sexo masculino, com nome masculino.  É possível corrigir isso, mas quando se tem, como ela, 17 anos, exige toda uma burocracia e a ativa participação dos pais.  Sem isso resolvido, como frequentar a escola?  Com que nome, registro oficial, diploma, etc.?  Diploma é modo de dizer, já que, conforme o filme nos informa ao final, 82% das transexuais abandonam a escola.  A documentação é o primeiro e relevante problema, o preconceito, a agressão inclusive física, o desrespeito e a humilhação completam o quadro desse absenteísmo. 

 

Sem educação formal, o próximo passo pode ser a pobreza e a exclusão na vida em sociedade.  É preciso impedir que o processo prossiga.  Uma família acolhedora poderia ajudar muito.  No caso de “Valentina”, a mãe cumpre muito bem esse papel.  Só que o casal está separado, o pai sumiu e até mudou de celular sem comunicar-lhes.  Poderá ser encontrado?  Pelo menos, para assinar os papéis? 

 




A escola, atualmente, no Brasil, é obrigada legalmente a aceitar o nome social em lugar do de nascimento, nesse caso.  A reação de uma comunidade pequena e religiosa, quanto a isso, já é outra história. A propósito, o enredo leva Valentina e sua mãe a sair da cidade grande e ir para uma localidade pequena, exatamente para tentar fugir das consequências decorrentes da condição da transexualidade que já se tornavam insuportáveis.  Aquela conhecida tentativa de recomeçar tudo do zero.

 

Onde há desinformação e preconceito também pode haver solidariedade.  Até porque, por trás das aparências, a vida segue com sua diversidade, tanto nos grandes como nos pequenos centros populacionais.  Há de tudo em todos os lugares, desde sempre. 

 

As locações de “Valentina” foram a pequena Estrela do Sul e Uberlândia, nas Minas Gerais.  O diretor e roteirista do filme, Cássio Pereira dos Santos, é da região.  Nasceu em Patos de Minas e estudou cinema em Brasília.  Começa muito bem, com conhecimento de causa.

 

É fácil entender por que o filme “Valentina” vem conquistando o público.  A personagem traz uma novidade.  Situações e problemas que o espectador por vezes desconhece totalmente.  Ou avalia de modo muito diverso.  Às vezes, até jocoso, sem conseguir uma empatia, um envolvimento com a situação da transexual.  Na medida em que os fatos vão se desenrolando, a identificação vai ocorrendo, ajudada pelo excelente desempenho da atriz tão merecidamente premiada e de nome difícil, Thiessa Woinbackk.  Que, além de atriz, é youtuber de sucesso.  Assim me informaram, pelo menos.  A atuação como atriz é ótima e tem muito peso no desenvolvimento da narrativa.  Mas todo o elenco é muito bom também.

 

A outra possível explicação para o interesse do público liga-se à atualidade do tema.  A quebra de um tabu que aparece, com certa surpresa, nas candidatas trans que lograram se eleger vereadoras, pelo Brasil afora.  Já houve até prefeita trans, se bem me lembro, mas era uma completa exceção.  Agora, o número parece ser representativo, indicando uma mudança importante.  Outros debates, livros, peças, filmes, estão aparecendo sobre o tema.  Como “Maria Luiza”, comentado aqui no cinema com recheio, documentário sobre a primeira trans nas Forças Armadas brasileiras.  A transexualidade vai conquistando o seu espaço e colocando as questões pertinentes à sua condição de vida para a reflexão da sociedade.  Muito justo e oportuno.

 

                                                                                                                   

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

PIEDADE

Antonio Carlos Egypto

 

 


PIEDADE.  Brasil, 2019.  Direção: Cláudio de Assis.  Com Fernanda Montenegro, Irandhir Santos, Matheus Nachtergaele, Mariana Ruggiero, Cauã Reymond, Gabriel Leone.  99 min.

 

Quem vive numa comunidade ao lado do mar pode usufruir dele, nadar, mergulhar, pescar e comer peixe fresco.  E ainda tocar um bar para turistas que vão se deliciar com essas iguarias.  Não é mesmo?

 

Não é, não.  Em “Piedade”, isto tudo já foi verdade, mas antes da chegada da Petrogreen, empresa que explora o petróleo no mar e produziu alterações no meio ambiente que tornaram um simples banho de mar num perigo mortal, pela presença de tubarões em grande escala.  Já se fala que Piedade é uma praia, uma cidade, um tipo de tubarão característico.  Os peixes que eram pescados na hora sumiram e hoje o bar tem de comprar os peixes fora dali.  E nem é preciso comprar muito, não, porque os turistas também desapareceram.

 



Como se faz para resistir a tudo isso?  Na família de D. Carminha, interpretada por Fernanda Montenegro, o bar segue aberto e não está à venda, apesar da insistência de Aurélio (Mateus Nachtergaele), que aproveita a deterioração provocada pela Companhia que ele representa, a Petrogreen, para adquirir barato um belo terreno a ser explorado.  Omar (Irandhir Santos), um dos filhos de D. Carminha, luta como pode para permanecer por lá.  Já sua irmã Fátima (Mariana Ruggiero) tem outras preocupações e já não vive lá, mas seu filho, Ramsés, sim, e tem um grande desejo de mergulhar no mar.  Isso, Aurélio resolve virtualmente, um simulador de mergulhos no fundo do mar, com imagens belíssimas, acopla-se aos olhos e pronto.  O simulacro está dado. Todos esses elementos já dariam uma bela trama, mas há muito mais coisas pelo meio.  Histórias negadas, mal contadas, um personagem que figura como herdeiro de uma eventual transação imobiliária: Sandro (Cauã Reymond). O que estava represado tem de vir à tona.

 

Cláudio de Assis, diretor pernambucano dos já conceituados “Amarelo Manga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), “Febre do Rato” (2011) e “Big Jato” (2016), explora esse universo de forma alegórica, investindo nas figuras humanas sem escamotear a sordidez, a ilusão, a mentira, a manipulação, o medo e o desespero que estão aí presentes.  A estética não deixa de mostrar a beleza dessa natureza, mas destaca não só os gafanhotos de ferro, como uma ambientação suja e tensa, além do mau gosto.  Quem daria a seu filho um nome como Omar Shariff ou Marlon Brando, porque curte cinema?  E que cinema aparece na narrativa?  Um pornô, com cabines e tal, chamado Mercy (piedade, em inglês), devidamente fiscalizado por uma tela, até para que se possa devolver um celular roubado em meio à transa, flagrado por ela.  O que sobrou do cinema, afinal?  E da segurança?  Não se pode confiar em mais ninguém.  Fique alerta, é o recado.

 

Sempre alerta porque, de muitos modos, o mundo está prestes a ruir para as pessoas, para o ambiente de que elas dependem, para os mares, rios, espécies animais.  A sensação que o filme passa é que, a qualquer momento, tudo pode desabar.  E o que restará? Impossível desconsiderar também que “Piedade” passa a ideia de que realmente o ser humano não deu muito certo.  Cada um lida com a alteridade a partir de seu narcisismo, procurando cobrir suas fragilidades e lacunas do jeito que dá, como pode.

 



Até quem parece dispor de muito poder e forçar os outros a fazer o que não querem, não passa de um ser infantilizado, controlado pela mãe por chamadas de vídeo a qualquer hora.  Como o tal Aurélio. A matriarca Carminha segura uma família que não se sustenta em suas bases.  Sem negar a realidade, é impossível.  O charme da cidade, da moda, da beleza, de Fátima, é oco, destoa de tudo o que os outros membros da família vivem e de seu próprio filho.  O cinema pode servir meramente à sobrevivência, mas não à arte, pela ótica de Sandro.  O bar, “Paraíso do Mar”, vira uma ironia sem tamanho.  Como resistir e defender um paraíso que não existe mais?

 

“Os tubarões ou a gente os come ou eles nos comem”.  É o que diz um dos frequentadores do bar que pede lá um dogfish.  É isso.  Mas essa escolha metafórica realmente existe? 

 

Como se vê, “Piedade” é um filme que provoca, faz pensar e não dá muita trégua, não.  Tem uma direção forte e firme e um elenco notável. Só pela presença de Fernanda Montenegro num papel relevante, a esta altura da vida, já vira referência.  E como ela brilha, como ela acentua as palavras e os sentimentos.  Uma beleza!  Tem o ator superlativo, que é Matheus Nachtergaele, o talento admirável de Irandhir Santos, além de Mariana Ruggiero, Cauã Reymond e outros.  Um time muito bom, que empresta muito vigor ao filme, como cúmplices do diretor. 

 

Imagens da cidade, com  seus edifícios engolindo o mar e deslocando as pessoas da terra para a janela do apartamento, completam a poesia de “Piedade”.




segunda-feira, 2 de agosto de 2021

ABE

Antonio Carlos Egypto

 

ABE.  Brasil, 2019.  Direção: Fernando Grostein Andrade.  Com Noah Schnapp, Seu Jorge, Dagmara Dominczyk, Arian Moayed, Gero Camilo.  86 min.

 

 “Abe”, filme brasileiro dirigido por Fernando Grostein Andrade, apresentado como comédia dramática, na realidade não é tão engraçado, nem tão dramático.  É um filme dirigido a adolescentes, a partir de seu protagonista: um garoto de 12 anos de idade, de classe alta, que vive no Brooklin, Estados Unidos.  Ele é um aficionado pela comida, gosta de cozinhar, testar sabores, ou seja, estamos falando de gastronomia.  Só que ele tem um talento especial para a coisa e é em torno disso que a narrativa segue.

 

Curiosamente, Abe (Noah Schnapp) não tem amigos, exceto virtualmente. Suas andanças são em busca de aperfeiçoar seu talento culinário e sua vida gira em torno da família.  Uma cena mostra seu aniversário com familiares dos dois lados, pai, mãe e avós, e só.

 

Pelo lado da mãe, ele é judeu e se chama Avraham (em hebraico) ou Abraham (em inglês).  Pelo lado do pai, é muçulmano e chamado de Ibrahim (em árabe), sendo que o pai, na verdade, não é religioso, é ateu.  Por tudo isso, ele escolheu ser chamado de Abe.  Pelo menos, é o que ele gosta.

 



Os problemas decorrentes dessas identidades diversas aparecem como conflitantes, a partir da própria comida.  Ele não sabe se pratica o jejum do Ramadan, come porco ou faz bar mitzvah.  As refeições, quando reúnem os dois lados da família, sempre acabam mal. Vai daí que Abe resolve se dedicar à fusão gastronômica, com a ajuda de um chef brasileiro, vivido por Seu Jorge, a partir da ideia de que misturar sabores pode unir as pessoas.  Será que funcionará?

 

Ideias como essa perpassam a trama, com frases do tipo autoajuda: “seja você mesmo”, “a família a gente não escolhe” e outras do gênero.  É raso, mas pode funcionar para os mais jovens.  O uso e abuso das mensagens de Internet, a colocação de palavras na tela, em ritmo acelerado, dialogam justamente com esse público.

Há um evidente bom gosto na trilha sonora que acompanha as peripécias de Abe e seus relacionamentos com adultos.  A música parece se dirigir mais aos adultos do que aos que têm doze anos.  Conta com o talento de Jacques Morelembaum, música até de Tom Jobim, e termina já nos créditos finais muito bem, com a milonga “Moro Judio”, de Jorge Drextler.

 

Que adolescentes se identificarão com um personagem como esse, num filme brasileiro, falado em inglês, eu não sei.  Parece muito distante de representar a realidade dos jovens brasileiros, mesmo dos que são ricos e vivem, ou viveram, no exterior. Embora o filme não deixe de mostrar que mesmo futuros chefs de cozinha bem aquinhoados de posses e talento culinário tenham que ralar, trabalhar muito e fazer coisas chatas, difíceis ou sem glamour.  Menos mal.