sábado, 31 de julho de 2021

MANGUEIRA EM 2 TEMPOS

Antonio Carlos Egypto

 

 



MANGUEIRA EM 2 TEMPOS.  Brasil, 2019.  Produção, direção e roteiro: Ana Maria Magalhães.  Documentário.  90 min.

 

 

Com o documentário “Mangueira em 2 Tempos”, a produtora, diretora, roteirista e atriz Ana Maria Magalhães nos leva ao mundo mágico da Estação Primeira de Mangueira, uma das mais importantes e tradicionais Escolas de Samba do Rio de Janeiro.  Ela nos põe em contato com personagens que nasceram naquele ambiente de samba, canto, dança, batucada, fantasias, e dos portentosos desfiles.  Um mundo encantador para uma criança.  Que ela registrou num curta-metragem de 1993, “Mangueira do Amanhã”

 

Naquela oportunidade, ela filmou a Escola de Samba Mirim da Mangueira, formada por amiguinhos de infância, nos anos 1990, fascinados e alimentando sonhos de muito brilho, na bateria nota 10, na porta-bandeira e sua glória, nas passistas de samba no pé, nas roupas deslumbrantes (de preferência, não as mais pesadas). 

 

Sequências desse curta são lembradas aqui, e exibidas para os mesmos personagens, vinte anos depois.  Eles se divertem com as imagens, as lembranças, a ingenuidade infantil que demonstravam, mas também reconhecem que aquele período foi muito feliz e marcante. Ana Maria irá retomar com eles o que se passou depois disso, que sonhos vingaram, que óbices surgiram para realizá-los ou desistir deles, o que a vida lhes trouxe e que construções eles puderam concretizar.

 

A principal figura dessa história é Wesley, atual mestre de bateria da Escola, um sonho que se realizou, da forma mais ampla, para aquele menino talentoso, que aparece no curta com um ritmo empolgante.  Segundo Alcione, ele era tão bom que não se viam suas mãos naquela atividade frenética.  Outro garoto, o Buí do Tamborim, vejam só, acabou arrumando trabalho como percussionista na China. Houve também quem, por suas escolhas, não sobreviveu para poder contar sua história.

 



As mulheres, Érika, Danielle, Michelle, Thathy, dividiram-se entre o mundo do samba, a gravidez, ainda na adolescência, o cuidado dos filhos e o risco da marginalização pelo crime, e houve quem se retraísse em público, por conta da religião que escolheu e que acabou funcionando como um freio.  Mas todas amam, ou amaram, desfilar na avenida.  Quem pôde, lá ficou.  Para as mulheres, porém, é sempre mais difícil essa coisa de dupla, tripla, jornada de trabalho.  Se bobear, o prazer sucumbe, até mesmo na passarela da alegria que é a Mangueira.

 

Nos últimos vinte anos, muita coisa mudou para todos, com a violência, o narcotráfico, as milícias, atingindo o Rio em cheio, complicando para todo mundo.  A Mangueira segue firme e vitoriosa, mas os tempos são mais difíceis e a Escola de Samba reflete isso nos seus enredos.

 

“Mangueira em 2 Tempos” sugere os dois tempos da filmagem.  Que não foram só dois, o das crianças e o atual, porque foram filmagens que aconteceram ao longo de vários anos.  Só que os dois tempos do título se referem a uma outra questão, também.  Aos 2 tempos de marcação do ritmo na música, comuns ao samba, ao funk e ao jazz, o que permite a integração  e viabilização de uma inovação rítmica.

 

Conhecer a história dessas pessoas e da sua Escola do coração, explicada por eles mesmos, alguns já famosos, como Wesley e o cantor Ivo Meirelles, além de Alcione, mangueirense por adoção, vendo e ouvindo a beleza do que eles são capazes de produzir artisticamente, é muito animador.  Em meio aos problemas, a arte popular aparece como esperança renovada de felicidade.

 

terça-feira, 27 de julho de 2021

CAROS CAMARADAS!

Antonio Carlos Egypto

 

 



CAROS CAMARADAS! (Dorogie Tovarischi).  Rússia, 2020.  Direção e roteiro de Andrei Konchalovsky.  Com Yuliya Vysotskaya, Vladislav Komarov, Andrey Gusev, Yuliya Burova.  121 min.

 

“Caros Camaradas!”, que representou a Rússia na disputa do Oscar de filme internacional 2021, põe no centro da sua narrativa um fato ocorrido na pequena cidade de Novocherkassk, em 1962.  Em pleno período de comando de Nikita Khrushchov (1894-1971), em que a opressão e os crimes de Josef Stalin (1878-1953) vieram à tona.  O grande herói da vitória contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial ainda era um paradoxo vivo na mente dos soviéticos.

 

Nesse ano de 1962, uma crise fazia com que os alimentos e outros produtos subissem de preço e escasseassem.  Enquanto isso, na fábrica de Novocherkassk, os dirigentes decretaram redução dos salários. Isso deu margem a uma greve e a uma grande mobilização dos trabalhadores, que terminaram com o povo sendo baleado em plena praça.  Os mortos recolhidos, decretou-se um estado de silêncio sobre os fatos, com contratos de sigilo assinados sob a condição de punições severas, que incluíam até a morte.  Com tudo limpo, dois dias depois promoveu-se um baile no local, como se nada tivesse acontecido.  O stalinismo, afinal, parecia vivo, ao menos naquela localidade.  O pensamento dos dirigentes do partido não tinha mudado realmente.

 

Aí é que entra a personagem central de “Caros Camaradas!”, Lyuda, membro da executiva do Partido Comunista da cidade, orgulhosa da União Soviética e contrária aos críticos e dissidentes do regime.  Não só os que o criticavam agora, mas também quanto aos críticos de Stalin.  Militante convicta e dirigente, tinha suas vantagens no suprimento de alimentos e no acesso a lugares proibidos à população.  Sabia do que se passava, mas tomava posição sempre apoiando os dirigentes e as medidas adotadas.  Defendia punições aos supostos agitadores, aqui denominados hooligans, em caráter depreciativo.

 



No levante dos trabalhadores, nos primeiros dias de junho de 1962, porém, sua filha desapareceu.  Ela estava nas manifestações dos trabalhadores.  E o filme será o seu périplo em busca da filha perdida.  Ao percorrer esses caminhos, Lyuda terá de encarar os porões do poder local e descobrir muitas coisas novas ou que ela não supunha que fossem assim.  Uma jornada que, inevitavelmente, colocará em xeque suas convicções,  em alguma medida.

 

O filme, realizado em preto e branco, com a tela quadrada, nos remete àquele momento histórico, como se estivéssemos assistindo a um noticiário local ou à representação de fatos ficcionais encenados logo após o ocorrido.  Não parece um filme de 2020.  Se o cinema tem a capacidade de nos transportar no tempo e no espaço, sobretudo pela via da emoção, aqui temos um bom exemplo disso.  Uma narrativa clássica, porém, revestida de uma embalagem retrô, um diretor talentoso nos enquadramentos e movimentos de câmera, um elenco de grande qualidade, fazem do filme um produto bem competente. A atriz principal, Yuliya Vysotskaya, que faz Lyuda, sustenta o filme com brilhantismo.

 

O diretor Andrei Konchalovsky já tem uma longa trajetória no cinema, o que inclui sucessos em Hollywood, em filmes como “Tio Vânia” (1970), “Os Amores de Maria” (1984), “Expresso para o Inferno” (1985), “Tango & Cash” (1989), “O Círculo do Poder” (1991) e “Paraíso” (2016).

 

   

quinta-feira, 8 de julho de 2021

O CHARLATÃO

Antonio Carlos Egypto

 

 




O CHARLATÃO (Charlatan).  República Tcheca, 2020.  Direção: Agnieska Holland.  Com Jan Vlasák, Joachim Paul Assböck, Ivan Trojan, Juraj Loj, Martin Mysicka.  92 min.

 

“O Charlatão”, que concorreu como representante da República Tcheca ao Oscar de filme internacional, desenvolve sua história de modo clássico – narrativa linear mais flash backs -- mas inclui múltiplos elementos de interesse para o público.  O filme, dirigido pela realizadora polonesa Agnieska Holland, baseia-se em fatos reais que envolveram o curandeiro tcheco Jan Mikolásek, no período pós Segunda Guerra, em Praga.

 

Ele possuía um dom de diagnosticar e curar, a partir da observação da urina dos pacientes, colocada em vidro transparente, apenas com as informações de gênero e idade das pessoas.  Jardineiro na adolescência, acumulou um conhecimento do poder curativo das plantas, por meio de composições de chás.  Obteve grande êxito junto ao público, que formava filas diárias de uma centena de interessados nesse tratamento.   Chegou a atender figurões da república, tanto no período da ocupação nazista quanto no período comunista, pelo menos até a morte do presidente Antonin Zapotochý, que chegou a ser seu paciente.

 

Já se vê, portanto, que a sua saga vai trazer implicações políticas e dialogar com um período histórico de grandes mudanças para a humanidade.  Os fatos específicos que se passam na Tchecoslováquia de então envolvem alguns detalhes pouco conhecidos por nós.  Porém, o clima geral do contexto histórico-político é bastante claro, visto em seu conjunto.

 

O drama desse personagem passa, ainda, por uma questão pessoal, em função da relação homossexual que manteve com seu assistente, que, concomitantemente, vivia um casamento heterossexual.  Portanto, temos aí uma tensão no terreno amoroso, com a agravante de que a homossexualidade era crime no país, nessa época.

 

Todos esses elementos vão desaguar num filme de tribunal, em que Mikolásek será julgado pela morte de dois de seus pacientes, atendidos à distância (por meio do envio do vidro de urina identificado), que acabaram morrendo com uma dose de veneno, supostamente envolvida no medicamento.

 




A trama é hábil em combinar todos os elementos na resolução dos conflitos na parte final do filme.  E também em não tomar partido com relação aos atos que definem o personagem, especialmente suas supostas atividades curativas.

 

Para nós, que por aqui acompanhamos o tal João de Deus, curandeiro que praticava reiteradamente abuso sexual em mulheres, o charlatanismo dos kits da covid-19 e a insistência em empurrar cloroquina a pacientes, fica difícil ser tolerante com essas práticas.  O fato é que curandeiros têm seu charme, muito apelo popular e há tantas coisas mal explicadas ou inexplicadas que nem mesmo os próprios envolvidos entendem, que fica difícil cravar uma verdade.  Como diria Shakespeare, “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”.  E acrescento uma ideia que ouvi do dr. Dráuzio Varella, uma vez.  Quer tomar passe, se benzer, usar florais, terapias alternativas ou simplesmente rezar, faça isso, mas nunca deixe de seguir as orientações da medicina, da ciência,.e fazer os tratamentos devidos.  As palavras não seriam exatamente essas, mas o sentido sim.  A propósito: não deixe de tomar vacina, incluindo a segunda dose, certo?



  

terça-feira, 6 de julho de 2021

MIGLIACCIO, O BRASILEIRO EM CENA

Antonio Carlos Egypto

 

 



MIGLIACCIO, O BRASILEIRO EM CENA.  Brasil, 2021. Direção: Alexandre Rocha, Marcelo Pedrozzi e João Mariano ( Tuco).  Documentário.  86 min.

 

 

O filme “Migliaccio, o Brasileiro em Cena” é uma homenagem declarada ao grande ator Flávio Migliaccio (1935-2020), que também atuou como produtor, roteirista, diretor e até como desenhista, cartunista.  Uma figura humana marcada pela humildade e dignidade, em meio a tanto talento.

 

Ele mesmo se definia como um ser humano amador, aquele que está sempre em busca de aprender, de viver melhor, de experimentar modos de ser.  Como ele procurou, ao se isolar num belo espaço de natureza, construindo coisas e vivendo uma solidão que não o incomodava.  Ao contrário, ele a buscava em meio a tanto burburinho do sucesso, do assédio dos fãs, da figura pública tão conhecida da TV.  Profissional dedicado, empenhava-se para fazer o melhor trabalho e evoluir nos diversos aspectos do seu métier,  ainda assim se sentia um amador na vida. 

 

São os pensamentos e reflexões de Flávio Migliaccio, ao completar 80 anos de idade, o foco do documentário.  Numa conversa informal, enquanto come alguma coisa, à beira da praia ou do seu sítio, ele vai discorrendo sobre a sua profissão, a sua visão da arte como ofício.  E o faz com profundidade.

 

A figura simpática e alegre que sempre cativou os telespectadores, inclusive os mirins, tem na verdade uma larga trajetória artística por trás de si.  No teatro e no cinema, ele encarnou o homem do povo, o brasileiro.  Do famoso e lutador Teatro de Arena, com gente como Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, desenvolveu um senso das questões sociais e políticas agudo.  No cinema, por exemplo, esteve em “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, representando justamente o povo.  Enfim, um artista de esquerda, que se formou a partir de suas origens populares, vindo de uma família pobre, com 16 irmãos, em que o pai aspirava que ele viesse a se tornar barbeiro.  E que, já idoso, pediu ao filho que fizesse sua barba, com uma navalha, em pleno sucesso televisivo global.  Fiel a suas origens, alegre e divertido, Flávio encantou, vivendo personagens diversos, que ele fazia sem esforço, com muita naturalidade.

 



Aos 80 anos, com os cabelos brancos a se desprender da cabeça e mais sério, devido à abordagem do documentário, ele encanta pela pessoa que é, com seu jeito simples e ao mesmo tempo sofisticado de ser.  Alguém que pensa o mundo e a própria vida com intensidade.  O filme não trata do suicídio que ele cometeria cinco anos depois, já desencantado pelo declínio da velhice e pelo avanço da extrema direita fascista, que ele desprezava e temia.

 

No filme, ele se pergunta o que significa chegar aos 80 anos, com uma longa vida vivida, reafirmando a descrença em Deus, que já vem de longe.  Um ato de coragem e despreendimento, não é?

 

Sobre a carreira artística brilhante, não é preciso dizer muita coisa, os fragmentos do trabalho de Flávio Migliaccio, inseridos entre as suas reflexões, falam por si.   Ao que parece, no final de seus dias, ele sentia que a sua existência não tinha servido para muita coisa, ou para nada, mesmo.  Grande engano.  A obra de Migliaccio é soberba, ficará para sempre nos registros mais expressivos da cultura brasileira.

 

“Migliaccio, o Brasileiro em Cena” entra em cartaz nos cinemas em 08 de julho de 2021, mas como o filme tem coprodução da Globo News, do Canal Brasil e da Rede Globo, onde ele atuou de 1972 a 2019, chegará posteriormente à TV, também.