sexta-feira, 31 de maio de 2019

O QUE HÁ PARA VER

Antonio Carlos Egypto


Os filmes não param de estrear nos cinemas.  No ano passado, foram mais de 400 lançados na programação regular (sem contar mostras e festivais), o que representa mais de um filme por dia.  Não dá para ver nem comentar tanta coisa.  Mas vou dar uma passada em alguns lançamentos que ainda não abordei por aqui, que já estão em cartaz, ou entram em seguida.

O filme goiano DIAS VAZIOS, de Robney Bruno Almeida, com base no romance “Hoje Está Um Dia Morto”, do também goiano André De Leones, coloca em evidência a vida dos jovens em pequenas cidades, onde eles não encontram perspectivas.  A partir de dois casais de namorados, um, do presente, outro, do passado, o motivo do suicídio de um jovem  e do desaparecimento de sua namorada trazem um mistério a ser desvendado e a certeza de que as coisas podem ser mais complexas do que parecem.  Produção de 2016, com um bom elenco predominantemente jovem.  103 minutos.



O filme mexicano COMPRA-ME UM REVÓLVER nos coloca num mundo hipotético futuro, em que o México estará tomado pelos grupos armados que imporão suas regras e sua violência a todos, sem critério ou contestação possível.  As mulheres estão desaparecendo, vivem escondidas como se fossem homens ou cobertas por máscaras.  Elas não têm cabida num mundo assim. Será, no entanto, uma menina que terá papel heróico numa trama estranha e sinistra, que pode ser uma premonição terrível do mundo que virá, de pura violência, embalado pelas armas.  Direção de Júlio Hernández Cordón, com Ángel Leonel Corral, Matilde Hernández, Rogelio Sosa.  Produção de 2018, 90 minutos.

Vem da Índia A COSTUREIRA DOS SONHOS, da diretora Rohena Gera, que é uma produção de 2018, bem realizada, que vai agradar especialmente aos que curtem um bom folhetim.  Uma daquelas histórias de amor impossível, em que o peso das castas indianas, com suas barreiras intransponíveis, impede que o afeto se converta em desejo e amor genuíno.  O elenco com Tillotama Shome e Vivek Gomber nos papéis principais mostra talento e dá bem conta do recado.  99 minutos.

O filme estadunidense MA, de 2018, traz Octavia Spencer como protagonista, o que já seria uma indicação para ver o terror dirigido por Tate Taylor.  Mas a personagem Maggie, a Ma do título, age com base numa psicologia de almanaque.  Sabe aquela história de trauma infantil, vingança com base em humilhação dos colegas e de garotos desejados, que deságua em matanças descontroladas, violência e maldades sem fim?  Pois é.  Tem um subtexto de discriminação racial, é verdade.  Mas não convence.  Trata-se de uma adulta que seduz adolescentes com bebidas grátis, espaço para festinhas, e os diverte com seu jeito maluco. Tudo termina espalhando um terror que é pura violência.  Quase não tem suspense.  Só para quem gosta do gênero, e olhe lá.  100 minutos.




Mais criativo e original é o filme do Reino Unido EU NÃO SOU UMA BRUXA, da diretora da Zâmbia, Rungano Nyoni.  Conhecemos um campo de bruxas no meio do deserto, todas com longas fitas acopladas ao corpo para não voarem, que recebem um novo membro, Sulha (Margaret Mulubwa), de apenas 8 anos de idade, acusada de ser bruxa.  Ela mesma tem de reconhecer isso, sabe-se lá como, ou vai virar cabra.  Ela passa, então, a ser controlada pelo Estado e obrigada a aprender e cumprir as regras da bruxaria.  Passa a sofrer as hostilidades dos habitantes da localidade, que a temem, esperam dela milagres (como fazer chover, por exemplo) e a rejeitam fortemente.  É surreal, mas traz um questionamento cultural de um modelo de crenças, valores, modos de exercer o poder e subjugar a mulher, que mexe com o espectador.  A produção, de 2018, é bem caprichada, com uma bela fotografia e um bom elenco.  94 minutos.




terça-feira, 28 de maio de 2019

ROCKETMAN

Antonio Carlos Egypto




ROCKETMAN (Rocketman).  Inglaterra, 2018.  Direção: Dexter Fletcher.  Com Targon Egerton, Jamie Bell, Richard Madden, John Reid, Brice Dallas Howard, Sheila Farebrothe.  121 min.


O garoto Reginald Dwight (ou Reggie) tinha muitos problemas afetivos em família.  Um pai incapaz de abraçar e elogiar.  Uma mãe complicada e infiel.  Brigas em casa, posterior separação.  O elemento salvador seria a avó, que sempre pensou nele e o colocou para a frente, ajudando-o a vencer a timidez que seu corpo, algo rechonchudo, só complicava.  No entanto, esse garoto tinha ouvido absoluto, uma capacidade de captar e reproduzir instantaneamente as músicas, que logo descobriu como fazer no piano de casa.  Pô-lo para estudar música foi lapidar um diamante bruto.

Foi a partir daí, do encontro de um parceiro e de uma descoberta pessoal de como se libertar das amarras convencionais e lidar com a homossexualidade, que surgiu um grande astro pop: Elton John.  Uma virada impressionante, uma explosão no palco, a partir de um figurino excessivo, exagerado, muita fantasia e imaginação levaram o músico, cantor e compositor, de imenso talento, a um sucesso internacional retumbante.  Tudo muito turbinado. 

Quando uma trajetória assim se constrói, também cobra seu preço.  Geralmente alto.  A dependência de álcool, cocaína e outras drogas, de sexo, do próprio sucesso e da exposição pública.  Passando, ainda, pela aprendizagem em gerenciar e colocar limites na própria loucura em que se converte uma carreira tão vertiginosa.

Tudo isso está claramente contemplado no ótimo musical biográfico “Rocketman”, que leva o título de um de seus maiores sucessos musicais.  O trabalho cinematográfico de Dexter Fletcher faz jus à importância do astro e, sobretudo, à sua criação artística.  Targon Egerton vive Elton John de forma visceral, entregando-se plenamente ao papel e com perfornances  empolgantes.  E o que é melhor, cantando muito bem o repertório de Elton.  Com tanta música boa, acompanhada também de danças bem coreografadas e vozes complementares, o musical se enche de brilho e tende a conquistar o público.




Segundo o próprio biografado, o filme mostra os baixos bem baixos e os altos, bem altos e era assim mesmo que ele queria.  De fato, “Rocketman” passa longe de um produto chapa branca ou falseado.  Permite-se a fantasia, propõe-se épico, mas isso faz um retrato coerente e apropriado da figura de Elton John.

É da batalha dos anos de formação, progresso e comprometimento com as adições, não só das drogas, mas de tudo o mais, que trata a trama.  O sucesso já está todo lá, mas a decadência pessoal também.

Curiosamente, grandes contribuições de Elton John em questões como a prevenção da Aids, a oficialização do casamento gay e a adoção de crianças por casais homossexuais, só são citadas nos créditos finais.  Assim como o fato de que ele está há 28 anos sóbrio.  O título de Sir  que lhe foi outorgado pela rainha da Inglaterra, nem é lembrado, só o fato de que ela gosta de sua música é mencionado.  Até os lances da moda já encontraram caminhos mais equilibrados, não diria discretos, claro, mas um pouco mais suaves.  Maturidade, velhice?  A música de Elton John empolga, como sempre, sua presença no palco é muito forte.  Já há, no entanto, muito a comemorar e rememorar, talvez ressignificar. 

“Rocketman” cumpre bem esse objetivo, ao focalizar Elton John com realismo e profundo respeito á sua música e à sua trajetória artística e de ídolo pop.

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O CINEMA BRASILEIRO BRILHA EM CANNES

Parabéns a Karim Aïnouz pelo prêmio principal da Mostra “Um Certo Olhar” para A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO e para Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que dirigiram BACURAU e levaram o prêmio do Júri. O Festival de Cannes reconhece a qualidade do cinema brasileiro num momento infeliz, em que o atual governo desvaloriza e tenta controlar a cultura e impõe cortes de verbas, que podem dificultar muito ou mesmo inviabilizar a produção cinematográfica autoral nacional, que vinha a todo vapor.



quarta-feira, 22 de maio de 2019

CARAVAGGIO + AMAZÔNIA

Antonio Carlos Egypto

O CARAVAGGIO ROUBADO (Una Storia Senza Nome).  Itália, 2018.  Direção: Roberto Andò.  Com Micaela Ramazzotti, Renato Carpentieri, Alessandro Gassman, Laura Morante, Gaetano Bruno, Jerzy Skolimovski.  117 min.




Depois de “Viva a Liberdade”, em 2013, e “As Confissões”, em 2016, (ambos os filmes com críticas aqui no Cinema com Recheio), Roberto Andò vem com um suspense cheio de mistérios e coisas a serem descobertas pouco a pouco.  O fio condutor é um crime ocorrido há 50 anos, numa capela de Palermo, na Sicília, o roubo da pintura Nativitá, de Caravaggio, que segue sem solução.

Não seja por isso, a ficção se encarrega de criar uma história que envolve uma escritora fantasma de um roteirista bem sucedido, que aparece apenas como secretária de um produtor de cinema.  Ela tem acesso a uma oferta de uma história espetacular, mas muito perigosa.  Bingo!  Vai dar na máfia, claro.  Afinal, estamos em Palermo.

Uma trama intrincada vai se desenvolvendo.  Nada, ou pouco, se dá a conhecer à primeira vista.  O quebra-cabeças vai se formando, fazendo sentido, e trazendo muitos outros elementos à trama. Em especial, pelos relacionamentos que se estabelecem e se transformam, dando ritmo aos eventos.




O filme tem boas sequências, é visualmente bonito, tem ótimos desempenhos, mas não tem muita fluidez.  Há uma preocupação excessiva em permanecer num clima de mistério constante que, se estimula de um lado, cansa, de outro.  Tensão e enigma não faltarão aos espectadores que forem ver “O Caravaggio Roubado”, que poderia se chamar simplesmente Uma História Sem Nome, como o original italiano.  No entanto, ressaltar o quadro de Caravaggio no título, faz mais apelo ao público.

O grande destaque vai para a protagonista Valéria, desempenho excelente de Micaela Ramazzotti, e para o papel de Renato Carpentieri, muito bom.  Alessandro Gassman está num papel menor, mas central da trama, como o roteirista Alessandro Paes.  O filme conta, ainda, com a participação especial do grande cineasta polonês Jerzy Skolimovski.

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AMAZÕNIA GROOVE.  Brasil, 2018.  Direção: Bruno Murtinho.  Documentário.  85 min.


O documentário “Amazônia Groove”, de Bruno Murtinho, traz a beleza e o fascínio da floresta amazônica, um elemento sempre atraente, na medida em que ainda se conhece pouco dos seus mistérios e encantos.  Mas o foco do filme é a música.  Procura mostrar como é fascinante e diversificada a produção musical da região, com destaque para o Pará.  Carimbó, búfulo, bumbá, guitarrada, violão clássico amazônico, tecnobrega, com direito a um bolero tradicional, tem de tudo por lá.  E com grande qualidade.  Ficamos conhecendo figuras que tocam, cantam, se apresentam e dão pequenos depoimentos: Dona Onete, Manoel Cordeiro, Sebastião Tapajós, Mestre Damasceno, Paulo André Barata, Albery Albuquerque, Mg Calibre, Waldo Squash e Gina Lobrista.  Eu não conhecia nenhum deles.  Fiquei impressionado com o talento desse pessoal.  Pode-se gostar mais de uma tendência do que de outra, mas a música, como conjunto, pulsa bonita, revelando uma cultura rica, tradicional e moderna.  Faz parte do mundo musical brasileiro, com uma sonoridade própria, que merece ser muito mais conhecida e difundida para as demais regiões do país.  Verdade que vários deles já são bem conhecidos no exterior, mais do que aqui mesmo.  Ponto para “Amazônia Groove”. Aliás, por que não chamar o documentário de Ritmos da Amazônia?  Mais simples e mais direto, não é, não?



“Amazônia Groove” estreia em junho em sessões normais nos cinemas, mas é também o filme de abertura da 5ª. edição da Ciranda de Filmes, evento gratuito que terá exibição de filmes, oficinas e bate-papos no Espaço Itaú de Cinema Augusta, de 23 a 26 de maio, em São Paulo, e itinerância em Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Salvador e Porto Alegre, no próximo mês de agosto.  O tema do evento é Música, Linguagem da Vida.




domingo, 19 de maio de 2019

A GRANDE DAMA DO CINEMA

Antonio Carlos Egypto





A GRANDE DAMA DO CINEMA (El Cuento de Los Compadrejas).  Argentina, 2019.  Direção e roteiro: Juan José Campanella.  Com Graciela Borges, Oscar Martinez, Luis Brandoni, Marcos Mundstock, Clara Lago, Nicolás Francella.  123 min. 


“A Grande Dama do Cinema”, o título em português para o filme argentino “El Cuento de Los Compadrejas”, enfatiza uma das características do novo trabalho de Juan José Campanella: a homenagem ao clássico, de 1950, de Billy Wilder, “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard).  Esse filme seminal de Wilder é sempre lembrado como referência ou reencenado, como é o caso do musical teatral que está em cartaz em São Paulo.

“A Grande Dama do Cinema” retoma essa história, não só trazendo-a para a Argentina atual e seus personagens: a atriz, o diretor, o roteirista, agora envelhecidos, que perderam o sucesso nos anos 1970, quando vigorava a ditadura militar no país, como acrescenta inúmeros outros elementos e situações.  O marido aparece como ator e em cadeira de rodas, como um novo personagem, o quarto da trama.  E, para abordar a questão da diferença geracional, um casal de jovens entra nas relações, trazendo os conceitos capitalistas de lucro máximo e ética mínima, ou nenhuma, ao contexto.  Ou seja, o ponto de partida é claro, o de chegada, não.

O filme de Campanella surpreende em muitos aspectos.  Faz um passeio pelos gêneros cinematográficos, de forma muito competente e segura.  Com muito ritmo, passa da comédia ao drama e ao suspense, com um roteiro muito rico e bem engendrado.  Os diálogos, que compõem um relacionamento corrosivo, sarcástico e competitivo, entre os personagens, são admiráveis, inteligentes, divertidos, tocam nas feridas, provocam e, ao mesmo tempo, esclarecem os fatos.

As artimanhas dos personagens fazem jus ao seu passado glorioso, jogos exigem planejamento, ensaios e atuações para enfrentar a situação-problema que viviam no momento.  O final “natural” versus o final concebido para virar o jogo é um dos grandes trunfos do filme.

Há muitas sequências interessantes para se apreciar.  Em uma delas, Mara fala, enquanto um filme, com seu rosto jovem, aparece projetado, os rostos e lábios se superpõem e se descolam, unindo passado e presente.  A forma como se constrói a narrativa que resulta em um assassinato e a disputa por um antídoto para um veneno é realizada com perfeição.




O cineasta Juan José Campanella já é bem conhecido e faz sucesso no Brasil há um bom tempo.  Quem não viu “O Filho da Noiva”, de 2001, “Clube da Lua”, de 2004, e o fabuloso “O Segredo dos Seus Olhos”, de 2009?  Ele é um grande talento do cinema contemporâneo de nossos  hermanos,  com quem rivalizamos tanto no futebol, mas de quem gostamos muito no cinema.

No caso deste filme, é importante destacar o incrível trabalho do elenco, brilhante, e de quem Campanella extraiu o melhor.  A grande atriz Graciela Borges vive Mara Ordóz, uma antiga diva das telas, que vive de lembranças e objetos de seu sucesso, em que se destaca um Oscar, pesado, a ponto de ser responsável por uma morte (lembremos que Campanella levou o Oscar de filme estrangeiro por “O Segredo dos Seus Olhos”).   A escadaria que notabilizou Gloria Swanson como Norma Desmond, em “Crepúsculo dos Deuses”, é coadjuvante do notável desempenho de Graciela.  Mas seus parceiros de cena alcançam também grandes performances: Luis Brandoni, como Pedro, o marido de Mara, Oscar Martinez, como Norberto, o diretor, com quem ela sempre trabalhou.  E o roteirista desta história passada de êxito, Martin, é vivido pelo grande Marcos Mundstock.  Talvez nem todo mundo saiba que Marcos é um multiartista, músico, escritor e comediante, um dos fundadores de um grupo extraordinário de música e humor, chamado  Les Luthiers, que encanta as plateias de língua espanhola, por toda a América e Espanha, há 40 anos.  Infelizmente, é pouco conhecido no Brasil.  Mas o humor sarcástico de Marcos Mundstock, muito característico no Les Luthiers, está magnificamente bem aproveitado em “A Grande Dama do Cinema”.  O casal de jovens atores, Clara Lago, como Bárbara, e Nicolás Francella, como Fernando, não se intimida diante dos veteranos talentos com quem contracenam, dão conta do recado muito bem.





quarta-feira, 15 de maio de 2019

A ESPIÃ VERMELHA

Antonio Carlos Egypto







A ESPIÃ VERMELHA (Red Joan).  Reino Unido, 2018.  Direção: Trevor Nunn.  Com Judi Dench, Sophie Cookson, Tom Hughes, Stephen Campbell Moore, Tereza Srbova, Ben Miles.  101 min.


Quando se fala de espionagem, a ideia imediatamente associada a ela é a de traição.  Traição a seu país, à sua causa política, aos seus companheiros de trabalho ou militância, a seus amores, amigos, familiares.  Mas o mundo é complexo e muitos elementos entram nessa equação.  Por exemplo, num tempo de guerra, há alianças. Será correto que um país aliado esconda informações essenciais do outro?  A lealdade a um país não poderia ser um entrave ao equilíbrio necessário para reconquistar a paz mundial? 

No terreno das relações pessoais, como amar e se dedicar a alguém que professa teses arriscadas, que soam parciais ou manipuladas?  Enfim, é possível e desejável dormir com o inimigo?  É justo excluir amigos e familiares de informações que podem colocá-los em risco?  Por outro lado, deixá-los na ignorância pode ser uma forma de protegê-los?  E aos companheiros de militância política ou científica é possível omitir ou compartilhar dados sigilosos?  Em que medida e com que objetivo?

Todas essas questões perpassam a leitura do romance “A Espiã Vermelha” (Red Joan), de Jennie Rooney, uma criação inspirada em fatos e personagens reais da história, no Reino Unido, no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, passou por toda a conflagração e continuou após a bomba atômica, em Hiroshima, e a vitória dos aliados ocidentais e da União Soviética. 

A personagem da espiã Joan Stanley é complexa e cheia de nuances, sentimentos, valores, lealdades pessoais e políticas.  Inspirada livremente numa espiã britânica, Melita Norwood, que agiu municiando a União Soviética de informações sigilosas.  Só foi descoberta 50 anos após, quando já contava com 87 anos de idade, levando uma vida calma e tranquila nos subúrbios londrinos, viúva e com um filho advogado.

O filme homônimo, de Trevor Nunn, adapta essa história surpreendente e atraente, respeitando a proposta do livro, mas reduzindo significativamente o impacto político e a força que esse envolvimento tem na vida da personagem principal e de seus contatos mais importantes: Max, Leo, Sonya, William, Nick. 






O comunismo como ideia força dessa juventude retratada, o papel heróico e ambíguo de Stalin na guerra (haja visto o pacto de não-agressão firmado com Hitler), a opressão que se seguiu, assim como o papel do Reino Unido como aliado preferencial dos norte-americanos, porém, reticente em relação aos soviéticos, o rompimento do que restava do pacto civilizatório com o ataque brutal da bomba em Hiroshima e Nagasaki e o desequilíbrio do mundo com a emergência da superpotência dos Estados Unidos, tiveram um papel de fundamental relevo na trama.  Que é claro no livro, mas tímido no filme.

Os elementos romãnticos da narrativa são mais explorados pelo filme do que talvez fosse necessário.  Parece que houve uma preocupação de tornar mais palatável ao grande público uma trama que deixasse a contextualização política num plano mais geral, sem entrar em muitos detalhes.  No entanto, a espionagem em si é apenas um elemento do sentimento político reinante nesse período da história.  Não é o centro dela, embora seja o elemento detonador que une o hoje ao passado.

Evidentemente, o nome da grande atriz inglesa Judi Dench, que faz Joan idosa nos dias atuais, vai atrair o público aos cinemas.  Seu papel, porém, é relativamente pequeno, já que o maior tempo é dedicado ao relembrar do passado que está sub judice  da Joan jovem, papel de Sophie Cookson, que está bem, mas não passa a densidade política que a personagem precisaria ter.  O elenco como conjunto é muito bom, a produção é bem cuidada, a caracterização de época é ótima, oferecendo um programa cinematográfico de boa qualidade.  O livro que inspirou o filme, lançado pela editora Record, aprofunda questões que “A Espiã Vermelha”, no cinema, não conseguiu explorar suficientemente. 





terça-feira, 7 de maio de 2019

VARDA POR AGNÈS

Antonio Carlos Egypto







VARDA POR AGNÈS (Varda Par Agnès).  França, 2018.  Direção e roteiro: Agnès Varda.  Documentário.  115 min.


Agnès Varda (Bruxelas, 1928 – Paris, 2019) foi uma das maiores diretoras do cinema, em toda a sua história de mais de 120 anos.  Considerada precursora da  nouvelle vague, pelo filme “Le Pointe Courte”, em 1954, participou desse período muito especial do cinema francês, que deixou frutos permanentes até hoje, ao lado de seu marido, Jacques Demy (1931-1990), François Truffaut (1932-1984), Jean-Luc Godard (nascido em 1930), Alain Resnais (1922-2014), Eric Rohmer (1920-2010), Jacques Rivette (1928-2016), Claude Chabrol (1930-2010), Louis Malle (1932-1995) e outros.  Como se vê, um time de peso, que tem nessa mulher feminista, preocupada com as causas sociais, um de seus maiores destaques, como cineasta e multiartista.

Agnès realizou seu último filme, este “Varda Por Agnès”, pouco antes de falecer, aos 90 anos.  Está sendo lançado agora, postumamente.  Quando um cineasta importante morre, costumamos buscar na sua obra, sobretudo nas produções finais, um filme-testamento, aquele que serviria de síntese ou deixasse a marca definitiva de seu trabalho.  No caso de Varda, ela mesma se encarregou de fazer seu testamento artístico, por meio de um balanço pessoal de seu legado cinematográfico, ao abordar seus filmes que obtiveram maior destaque, já que sua obra é grande demais para ser toda lembrada.  Foram 64 anos de dedicação ao cinema.

 Em “Varda Por Agnès”, ela expõe os três pilares do seu fazer cinematográfico: a inspiração, a criação e o compartilhar.  E comenta o início de sua trajetória com “Le Pointe Courte”, fala de “Cleo das 5 às 7”, de 1962, que se detém em duas horas de relógio de perambulação de uma mulher jovem por Paris, enquanto aguarda o resultado de um exame para saber se tem ou não câncer.  Passa por “As Duas Faces da Felicidade” (Le Bonheur), de 1965, que mexeu com os valores da época de forma suave mas firme, ao questionar a possibilidade de amor simultâneo por duas pessoas.  Comenta os trabalhos dedicados a Demy, o grande amor de sua vida, com quem viveu de 1962 até sua morte, em 1990.  “Jacquot de Nantes” trata das recordações de infância, 1990, e “O Universo de Jacques Demy”,1993, da obra dele, que ela trabalhou bastante para restaurar e preservar.



Foto de Neusa Barbosa


 Trata também do belo filme de ficção que fez em 1985, “Os Rejeitados” ou “Sem Teto Nem Lei”, de “Jane B. por Agnès”, de 1987, dos magníficos documentários “Os Catadores e Eu”, de 2002, “As Praias de Agnès”, de 2008, e “Visages Villages”, de 2017, de outros trabalhos na fotografia, nas artes plásticas, com instalações muito criativas, inclusive uma casa feita de películas de filmes.  Enfim, ela expõe com simplicidade e consciência do que fez, uma obra artística monumental.  Não por acaso, ela recebeu, em 2015, a Palma de Ouro do Festival de Cannes, prêmio honorário, e também o Oscar honorário, em 2017, ambas premiações pelo conjunto da obra.

Agnès Varda deixa um grande legado para a história do cinema, que merece ser visto e revisto, a começar, é claro, por esse trabalho-testamento, que chega em boa hora aos nossos cinemas.  “Varda Por Agnès” é um filme obrigatório para quem gosta de cinema e para quem quer conhecer mais dessa senhora cineasta, pequena no tamanho, imensa na arte.





sexta-feira, 3 de maio de 2019

AMANDA

Antonio Carlos Egypto



AMANDA (Amanda).  França, 2018.  Direção: Mikhäel Hers.  Com Vincent Lacoste, Isaure Multrier,  Stacy Martin, Ophélia Kolb. 107 min.


“Amanda” é o nome de uma garota de 7 anos de idade (Isaure Multrier), que terá de encarar uma mudança muito grande de vida, já tão cedo.  Elaborar uma grande perda, realizar novas adaptações e reconstruir a existência é algo exigente demais para uma criança dessa idade, por mais viva e inteligente que ela seja.

Na dimensão do adulto jovem, o filme trabalha a questão da identidade ainda em construção de David, 20 anos, (Vincent Lacoste), que terá de deixar um jeito blasé  de lidar com a vida, quando uma exigência incontornável o fará assumir alguma coisa para a qual decididamente não está preparado.  Seus modestos trabalhos como podador de árvores e entregador de apartamentos alugados para turistas, enquanto tenta conquistar a bela locadora Lena (Stacy Martin), serão atropelados pelo destino.

Destino não é bem a palavra.  O que abala sua vida é um atentado terrorista realizado por um atirador numa praça de Paris, sem motivação conhecida.  Dessas que têm, mesmo, acontecido por lá e em várias outras partes do mundo.  E que de maneira inesperada e violenta atingem a população civil, produzindo o caos na vida das pessoas e na sua comunidade mais próxima.  E gerando medo em todos.

No entanto, a vida sempre continua e, com os recursos que cada um já tem ou procura adquirir, ela se reorganiza, podendo gerar novas descobertas e impulsionar o crescimento das pessoas.  A crise pode realmente produzir novas e surpreendentes situações, que são transformadoras.

“Amanda” é um filme de afetos e de drama, com respiros de leveza, apesar do tema dolorido.  Sua narrativa é envolvente, realista, surpreendente.  Sem pieguismo, sem lições de moral, o que seriam iscas fáceis de serem perseguidas, num assunto como esse.

O elenco tem um ator extraordinariamente natural e convincente, Vincent Lacoste, a quem acompanhamos o tempo todo, vivendo suas aflições, mas também sua forma simples de se relacionar com os outros, numa interpretação em baixo tom, mas sem peso, até alegre.  Entre risonha e envergonhada, eu diria.

A menina Isaure Multrier é viva, exuberante, esperta, mas também capaz de nos transmitir a dor e o incômodo que sente nos momentos mais dramáticos do filme. O elenco é complementado por duas atrizes jovens muito expressivas e de interpretações firmes: Stacy Martin e Ophélia Kolb.  Ao vê-las, no auge da juventude, marcadas por momentos trágicos, o sentimento é de inconformidade com o mundo violento em que vivemos.  Afinal, o filme fala de hoje e da mítica cidade-luz, farol do mundo.





O tradicional cine Belas Artes, em São Paulo, na Rua da Consolação, quase esquina da Avenida Paulista, um dos mais amados cinemas de rua da cidade, já teve de fechar suas portas e precisou contar com um movimento popular e a ajuda dos governos municipal e federal da época, para reabrir.  Agora, que as novas políticas de corte dos órgãos e do governo federais começam a atingir em cheio a cultura, o cinema perdeu o patrocínio da Caixa e estava novamente ameaçado.

Felizmente, chegou-se a um final feliz. O cine Belas Artes recebe, por um período de cinco anos a partir de agora, o patrocínio da cervejaria Petrópolis e passa a incorporar o nome de um de seus principais produtos, a cerveja Petra.  O cinema que, em suas salas, possibilita que muitos filmes menos comerciais permaneçam mais tempo em cartaz e possam ser descobertos, seguirá firme.  Longa vida ao cine Petra Belas Artes!




quarta-feira, 1 de maio de 2019

TUDO...E MAIS

Antonio Carlos Egypto






TUDO O QUE TIVEMOS (What They Had).  Estados Unidos, 2018.  Direção: Elizabeth Chomko.  Com Hilary Swank, Michael Shannon, Robert Forster, Taissa Farmiga, Blythe Danner.  100 min.


Uma mulher idosa sai de casa a pé e caminha por uma nevasca.  O passo seguinte é a família, marido e dois filhos, um que vive próximo ao casal e outra, que vem de outra cidade, entrarem em pânico e fazerem buscas para encontrar a idosa desaparecida.  Claro, o que está em jogo aqui é um comportamento determinado pela doença de Alzheimer, que envolve conflitos e decisões difíceis a afetar toda a família.

Em “Tudo o Que Tivemos”, Blythe Danner é a idosa com Alzheimer.  Robert Forster é o marido com quem ela viveu 60 anos de amor e que crê que pode continuar cuidando dela e amando-a como sempre aconteceu, em casa, sem mudanças.  O filho que está sempre com eles, porque vive próximo, Michael Shannon, já encontrou a saída, um lugar muito apropriado para internar a mãe, enquanto o pai ficaria próximo, em outro local apropriado.  Será preciso vender a casa onde vivem.  Hilary Swank encarna o papel da filha mais distante, que pode se permitir parar para pensar e considerar todas as possibilidades.

O que mais interessa na trama do filme é esse conflito básico que hoje muitas famílias enfrentam, no mundo todo, e que não é nada fácil.

Não há muita novidade na narrativa, concebida e conduzida por Elizabeth Chomko, nem qualquer inovação a apontar.  O filme é uma boa produção independente, convencional na forma, que vale por um ótimo elenco e um tema cada vez mais presente e relevante nos dias atuais, em que a longevidade alcançada pela medicina exige novos approaches humanos.




MILOS FORMAN

MILOS FORMAN
De 02 a 15 de maio, acontece uma importante retrospectiva (completa) da obra do cineasta tcheco, naturalizado estadunidense, Milos Forman (1932-2018), no Cinesesc, São Paulo.

Será possível assistir na tela grande a sucessos do diretor, como “Um Estranho no Ninho”, de 1975, “Hair”, de 1979, “Na Época do Ragtime”, de 1981, “Amadeus”, de 1984.  E os últimos trabalhos dele: “Valmont”, de 1989, “O Povo Contra Larry Flint”, de 1996, “O Mundo de Andy”, de 1999, e “Sombras de Goya”, de 2006.  Mas também seus filmes anteriores, bem menos conhecidos, inclusive os da fase tcheca, como “Amores de uma Loira”, de 1965, “Pedro, o Negro”, de 1963, e “O Baile dos Bombeiros”, de 1967, entre outros.  Todos os filmes serão exibidos duas vezes, ao longo da programação.  Um catálogo com todos os filmes e fichas técnicas acompanha a Mostra.

É uma obra de peso, que merece ser vista ou revista, e uma retrospectiva assim faz jus à importância do cineasta.  Os ingressos, como de costume nessas mostras, é bem acessível.  Inteira, R$12,00, meia, R$6,00, comerciário, R$3,50.

VERA CHYTILOVÁ
Por falar em cinema tcheco, também está em cartaz, no Centro Cultural Banco do Brasil, até 13 de maio, a Mostra Vera Chytilová, a grande dama do cinema tcheco.  Aqui se trata, provavelmente, de conhecer, entrar em contato, com essa obra.  Serão apresentados 20 longas-metragens, a maioria inéditos, e 6 curtas.  No fim de semana de 03 e 04 de maio, serão realizados debates sobre a importância do trabalho da diretora Vera Chytilová (1929-2014), com a participação da curadora da Mostra, Rosa Monteiro.  Mas haverá muito a conhecer dessa filmografia, até 13 de maio, no CCBB de São Paulo e também do Rio, com ingressos a R$10,00 a inteira e R$5,00, a meia.