domingo, 31 de outubro de 2010

Homens em Fúria

Tatiana Babadobulos

Homens em Fúria (Stone). Estados Unidos, 2010. Direção: John Curran. Roteiro: Angus MacLachlan. Com: Edward Norton, Robert De Niro, Milla Jovovich, Frances Conroy. 105 min.

Para contar a história de um presidiário que está tentando a sua condicional após cum­prir pena de 13 anos por encobrir o assassinato dos seus avós com um incêndio, o diretor John Curran (de “O Despertar de Uma Paixão”) escalou Edward Norton para viver o pri­meiro personagem, e Robert De Niro para ser o oficial escalado a conceder (ou não) a tal condicional. Só pela escalação do elenco, que inclui ainda Milla Jovovich e Frances Conroy, já vale o ingresso. No entanto, é um roteiro consistente e convincente (este escrito por Angus McLachlan) que faz falta no longa-metragem “Homens em Fú­ria” (“Stone”).

Na primeira sequência, o filme mostra imagens do passado e choca o espectador quando apresenta um rapaz e sua esposa que, cansada de viver no silêncio, pede o divórcio, mas ele ameaça matar a filha caso ela o deixe. Depois do chacoa­lhão inicial, porém, o espectador pode respirar aliviado, pois nada mais forte como aquilo será repetido ao longo dos pouco mais de 100 minutos de exibição.

Frequentador da igreja aos domingos, leitor diário da Bíblia e ouvinte de salmos no rádio, Jack (De Niro) é o policial que, embora seja devoto e que não tenha cometido nenhum crime, ainda não se convenceu que merece o “reino dos céus”. Ao contrário, porém, do prisio­neiro, Stone (personagem de Nor­ton e nome original do fil­me), que diz ter tido uma “epifania” e que se sente recuperado e pronto para voltar para casa e para os braços de sua esposa, a bela e sedutora Lucetta (Milla Jovovich).

A questão é que, depois da primeira entrevista entre policial e prisioneiro, os dois vão ter encontros cada vez mais frequentes e a esposa Stone será responsável por convencer Jack que seu marido está recuperado e em condições de receber sua liberdade condicional. Para tanto, como é possível de imaginar, uma vez que ela faz a típica mulher sexy e fatal, a moça vai usar de métodos, digamos, nada ortodoxos.

De acordo com as imagens, o espectador já sabe que marido e mulher estão tramando algo, ou seja, que o jeitinho meigo de Lucetta é, a princípio, arma­ção, e que ela está tentando enganar. Mas só não se sabe por quê. Ao final, o público irá cons­tatar que tudo foi em excesso, principalmente porque ela não é fiel nem ao marido nem ao policial.

A ideia do longa é boa e plausível. No entanto, um dos seus problemas é o excesso de clichês: o policial está prestes a se aposentar, mas prefere acompanhar alguns casos, incluindo, claro, o de Stone; tem extensa experiência no trabalho, mas vai cometer o deslize pouco antes de praticar, enfim, o golfe diário; ele é casado há mais de 40 anos, mas vai fazer besteira.

“Homens em Fúria” provoca o espetador o tempo inteiro e o faz pensar nas relações que uma cena tem com a outra. No entanto, ele não é bobo e, para ser enganado, precisa de justificativas plausíveis, e não de cenas soltas, que não se conectam e se mostram des-necessárias no decorrer da fita.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2


Tatiana Babadobulos

Tropa de Elite 2. Brasil, 2010. Direção: José Padilha. Roteiro: José Padilha e Bráulio Mantovani.  Com: Wagner Moura, André Ramiro, Maria Ribeiro, Pedro Van Held, Irandhir Santos. 116 min.


De cara, "Tropa de Elite 2 - O inimigo agora é outra", longa-metragem dirigido por José Padilha, já mostra a que veio. Tiroteio, perseguição e narrações em off de Nascimento (novamente vivido pelo ótimo Wagner Moura), que agora não é mais capitão do Bope, como era no filme anterior, mas sim coronel. É, ele, aliás, o alvo dos atiradores. Daí pra frente, ele mesmo vai contar ao espectador como foi parar lá e o que aconteceu no final desta história. É o momento de se acomodar na poltrona e se entregar às imagens da câmera de Lula Carvalho, novamente diretor de fotografia, e à montagem de Daniel Rezende.

À frente do comando, Nascimento usa a estratégia para combater o tráfico das favelas, e os caveiras, entre eles o capitão Mathias (André Ramiro), sobem o morro dentro do Caveirão ou de helicóptero, também com o intuito de impedir, inclusive, que policiais militares corruptos negociem com os traficantes e recebam propina. É aí que conhecemos a origem das milícias.

Se "Tropa de Elite" se passava no final dos anos 1990, "Tropa 2" é contemporâneo, cobre o arco de 2006 a 2010 e cita, durante várias sequências, que trata-se de ano de eleição e, portanto, não será possível abrir uma CPI, por exemplo, pois é um procedimento considerado por muitos como eleitoreiro. (Em nota, Padilha informa que não pertence "a nenhum partido, grupo polí­tico, agremiação, sindicato ou lista de apoio a candidatos".)

Agora separado da mulher (Maria Ribeiro) e pai de Rafael (Pedro Van Held), Nascimento vive só e em guerra com Fraga (Irandhir Santos), professor de história e defensor dos direitos humanos e tenta negociação durante rebelião em Bangu I. Outro problema com Fraga é que ele se casou com sua ex-mulher e faz a cabeça do filho para ir contra o pai. No entanto, se aproveitando da reblião e quando ganhou notoriedade mundial, Fraga se elege deputado e compra a briga com o Bope. Nascimento, afastado do Batalhão, passa a trabalhar como subsecretário de Inteligência. É quando ocupa o cargo que começa a entender que o problema com os traficantes e a polícia do Rio de Janeiro é muito maior e muito mais próximo da política que podia imaginar. A partir daí, percebe que é preciso ir contra o sistema se quiser, de fato, encontrar a solução.

Usando a câmera na mão, Padilha apresenta ao espectador imagens quase documentais da sujeira que é escondida embaixo do tapete quando o assunto é política. Com muitos tiros, perseguições e, vá lá, menos torturas que o filme anterior (as sequências que mostram "o saco" no primeiro são mais sufocantes que nesta produção), "Tropa de Elite 2" é violento, sim, mas nada que não seja tal como a nossa realidade.

Padilha mostra, mais uma vez, depois de "Ônibus 174" e "Tropa de Elite", que é, além de um brilhante e competente cineasta, um homem corajoso, e, ele próprio enfrenta o sistema, traduzindo em imagens de ficção (como avisa na abertura da fita) o que é a dura (e conhecida) realidade brasileira, mas que poucas pessoas têm coragem para expor, denunciar ou seja lá que nome tenha isso.

Por conta da pirataria do primeiro filme, desta vez a equipe decidiu não fazer cópia digital e os sete rolos de filme ficaram trancados em um cofre de banco. Hoje, já existe o filme para download, mas é daqueles gravados diretamente no cinema.

Segundo o Filme B, o longa-metragem já faturou R$ 40 milhões e mais de 4 milhões de pessoas assistiram ao filme até o segundo final de semana em cartaz. Os números fazem de "Tropa de Elite 2" a produção nacional mais vista do ano, à frente de "Nosso Lar" e "Chico Xavier".

Além do ufanismo, sentimento que obriga todos a prestigiar o cinema nacional, "Tropa de Elite 2" é indicação obrigatória e deve estar no repertório não apenas dos cinéfilos, mas de cada cidadão brasileiro.


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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

CONTOS DA ERA DOURADA



Antonio Carlos Egypto


CONTOS DA ERA DOURADA (Tales from the Golden Age). Romênia, 2009. Roteiro: Cristian Mungiu. Direção: Ioana Uricaru, Hanno Hoffer, Razvam Márculescu, Constantin Popescu e Cristian Mungiu. Com: Alexandru Potocean, Avram Birau, Diana Cavallioti, Radu Iacoban, Romeu Tudor, Tania Popa. 155 min.



Regimes opressores costumam produzir grandes restrições à liberdade, controles, censura e, sobretudo, medo. Mas também produzem perseguições tão absurdas que acabam por gerar piadas históricas ou lendas que se propagam.

Na ditadura militar brasileira, foram muitos os fatos que viraram folclore, tanto que Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, cunhou a expressão “o festival de besteiras que assola o país”, naquele período. Uma dessas me vem à mente agora: no afã de encontrar material subversivo nas repúblicas estudantis da turma engajada na luta contra a ditadura, livros sobre a “resistência dos materiais”, utilizados por currículos de engenharia e arquitetura, eram apreendidos como se fossem obras de marxistas que resistiam ao regime. Imaginem o que não deve ter acontecido durante o longo período do ditador Nicolae Ceausescu, que chefiou o regime comunista da Romênia, de 1965 a 1989.

“Contos da Era Dourada” apresenta seis histórias supostamente verídicas, que ilustram, na base do humor e do non-sense, o clima da chamada era dourada, ironicamente, o período dos últimos quinze anos do regime, que parecem ter sido os piores de toda a história do país.

Época em que a falta de comida e de dinheiro, aliada ao medo de serem flagrados por uma polícia que cumpria leis dracônicas sem pestanejar, produzia grandes absurdos, como tentar matar um porco num apartamento sem que ninguém notasse. Ou passar por fiscal de água e de ar para roubar garrafas vazias e, com elas, obter dinheiro para comprar um carro popular. Ou, ainda, roubar ovos de galinhas oficiais que eram transportadas por longas distâncias e cujo veículo não podia parar.

Seguir ordens irracionais de ativistas do partido ou representantes do governo à passagem de comitiva oficial por pequenos lugarejos, como arrebanhar ovelhas dos campos para expô-las na estrada ou pôr literalmente todos os habitantes da localidade a girar num tipo de roda gigante, são exemplos de situações que produzem comicidade um tanto involuntária. Há ainda o caso do excesso de zelo do fotógrafo oficial que acabou resultando numa foto de Ceausescu com um chapéu na mão e outro na cabeça.

O filme é muito simpático e divertido. Realizado a partir de roteiro de Cristian Mungiu, que é também produtor e diretor de um dos seis episódios da película. O seu talento já está comprovado nesta comédia e também no drama “4 meses, 3 semanas e 2 dias”, brilhante trabalho cinematográfico que capta esse medo produzido pelo regime de Ceausescu, na situação de um aborto clandestino. E faz o melhor filme que eu vi sobre a questão do aborto, em que a ilegalidade produz um mal-estar insuportável, mas a tragédia, solução óbvia e fácil para o tema, fica de fora. Lá na Romênia ditatorial ou aqui no Brasil democrático, as coisas são similares na clandestinidade. Um filme, premiado em Cannes, que veio para ficar.

“Contos da Era Dourada” é menos pretensioso ou profundo, mas é um registro muito competente do clima cômico/opressivo das ditaduras mundo afora. Desmoraliza todas elas, à direita ou à esquerda, apostando no ridículo das histórias que elas são capazes de criar. E tudo é mostrado em baixos tons de ação, expressão, cor e som, o que faz o clima do filme totalmente convincente e produz sorrisos que passam pela consciência e pela reflexão.

É mais um produto inteligente e bem acabado do cinema romeno da atualidade, em que o nome de Cristian Mungiu se destaca, mas vários outros novos nomes da direção cinematográfica do país aparecem para o público brasileiro e mundial, num desses raros filmes de episódios que têm unidade.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

DOIS IRMÃOS



 Antonio Carlos Egypto   
                                               
                                             
DOIS IRMÃOS (Dos Hermanos). Argentina, 2010. Direção: Daniel Burman. Roteiro: Daniel Burman e Sergio Dubcovsky. Com Antonio Gasala, Graciela Borges, Elena Lucena, Rita Cortese. 105 min.


Daniel Burman, jovem diretor argentino de 37 anos, já tem uma carreira de destaque e êxitos cinematográficos, ao quais se acrescenta agora “Dois Irmãos”. Conhecido do público brasileiro pelos filmes “El Abrazo Partido”, de 2004, “As Leis de Família”, de 2006, e “Ninho Vazio”, de 2008, Burman dedica seu cinema a tratar de relações pessoais, sempre fortemente marcadas por laços familiares.

As relações de adultos jovens com a figura paterna são determinantes nos dois primeiros filmes citados. Por sinal, dois ótimos trabalhos que combinam drama, humor e diálogos inteligentes, na dose certa e são capazes de explorar com consistência os vínculos tratados e questões relativas à identidade.

Em “Ninho Vazio”. foram o avançar da idade e os novos desafios que a maturidade traz o foco abordado. E é o ninho familiar que fica vazio e muda o rumo das vidas de um homem e uma mulher que envelhecem.

No atual “Dois Irmãos”, o título já informa que ele permanece fiel à temática familiar. Marcos (Antonio Gasala) atinge a terceira idade com uma vida limitada, sem grandes realizações ou amores, à exceção da mãe, a quem dedicou fidelidade absoluta até o leito de morte. Sua irmã, Susana (Graciela Borges), é muito ativa, ocupada e agitada, sempre metida em negócios. Na verdade, é uma trambiqueira, que ganha dinheiro em operações de reserva de compra e venda de apartamentos de alto padrão, que ela sistematicamente despreza, para conseguir os melhores preços e os menores sinais possíveis. Sua relação com o irmão é de dominação e manipulação.

A relação entre ambos, como seria de se esperar, é de amor e ódio recíprocos. As cenas do filme vão esquadrinhando essa relação e explicitando com muita eficiência essa mescla de sentimentos que, na verdade, são as faces inevitáveis de um vínculo obrigatoriamente forte, como costuma ser o de irmãos.

Se ela acha que pode tudo junto ao irmão, ele precisaria do sonho para adquirir a coragem necessária para se expressar e se contrapor a ela. Mas tudo tem o seu limite e é aí que o conflito se acirra e se faz possível uma grande mudança. A humanidade dos personagens se amplia e as coisas se tornam mais complexas e muito mais interessantes. Estereótipos e preconceitos são superados e a realidade que emerge é muito mais rica, valorizando a diversidade humana, a busca da autonomia e o valor do desejo e dos sonhos na vida das pessoas.

O filme se baseia no romance de Sergio Dubcovsky, “Vila Laura”, em referência a um lugar no Uruguai, onde a maior parte da trama acontece. Diego é também roteirista do filme, em conjunto com o diretor.

Os dois atores principais são ótimos, realizam de forma efetiva personagens muito bem construídos do ponto de vista psicológico, com quem a gente se envolve e compreende suas ações, mesmo aquelas que nos parecem toscas ou cruéis. A trama é muito boa, as cenas contêm ótimos diálogos, mas a atuação dos protagonistas é excepcional, principalmente na capacidade de transmitir expressões e sentimentos muito claros, na ausência de qualquer palavra ou junto com elas.

sábado, 2 de outubro de 2010

TERRA DEU, TERRA COME

                         Antonio Carlos Egypto


TERRA DEU, TERRA COME. Brasil, 2009. Direção: Rodrigo Siqueira. Colaborou na direção: Pedro de Alexina. Com: Pedro de Alexina, Dona Lúcia, João Batista, Dolores, seu Pidrim Peçanha, Admilson, Geovani, Adilson, Nei, Edinho, Sineca e familiares do seu Pedro. 88 min.


Ao assistir um documentário, o que é que se busca? Conhecer ou refletir sobre uma dada realidade, atual ou histórica, próxima ou distante. Mas, em todo caso, aproximar-se de alguma forma da verdade. Aí é que é está o problema: o que é mesmo essa verdade documental?

“Terra Deu, Terra Come” é o vencedor do Festival Internacional de Documentários “É Tudo Verdade”, 2010. Pois é, está aí a “verdade”, de novo. Será que é mesmo tudo verdade?

O diretor mineiro Rodrigo Siqueira estava envolvido com o universo de Guimarães Rosa e foi em busca do sertão mítico e profundo do autor. Encontrou o senhor Pedro Vieira, conhecido como Pedro de Alexina, de 81 anos, um dos últimos guardiães de tradições africanas e mineiras da região de Diamantina, vivendo em Quartel do Indaiá, comunidade remanescente de um quilombo, e partiu para a realização do filme.

Capaz de entoar os cantos conhecidos como vissungos, outrora ouvidos dos africanos nos trabalhos dos garimpos de Diamantina e utilizados em rituais fúnebres, coube a Pedro de Alexina dar o tom do que fazer e dizer e ciceronear o espectador, para fazê-lo imergir nesse mundo à parte.

O fio condutor principal era o cortejo fúnebre e enterro de João Batista, que teria vivido 120 anos. O sepultamento se dá após dezessete horas de velório, choro, riso, farra, reza, silêncios e tristeza. Com direito a gotas de cachaça, do gênero daquelas que o povo costuma dar para o santo.

Garimpeiro, descendente de escravos, conhecedor dos mitos e lendas da região, além dos vissungos, Pedro vai desfilando e encenando suas histórias, algumas do tempo em que “Cristo mais São Pedro andavam pelo mundo”. Nos ensina o que a morte é e as desculpas que arranjamos para entendê-la. E é claro que não poderiam faltar as histórias mais extravagantes dos diamantes enormes sumidos ou enterrados por aí, não se sabe onde.

Um mergulho no universo etnológico do garimpo de Diamantina, que remonta aos séculos XVIII e XIX. A essa altura, vocês podem estar perguntando: Mas será que isso segura um filme? Ou é coisa que possa interessar a alguém mais do que antropólogos ou historiadores? Foi algo semelhante o que pensou o diretor de fotografia, Pierre de Kerchove, inicialmente. Mas o filme vai muito além disso.

O que é e onde está a verdade? Mitos, contos e lendas são verdades, por certo. Contados ou encenados, nos remetem a dimensões de realidade distintas da experiência cotidiana. Mas até onde isso pode ir? Como se dá essa experiência? Como ela pode ser vivida e que relação tem com a ficção?

“Terra Deu, Terra Come”, o documentário, embaralha tudo e também pode ser visto como ficção ou até mesmo como farsa ou, ainda, como disse João Moreira Salles: “É uma trapaça maravilhosa”. De fato.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O SOL DO MEIO DIA

                     
        Antonio Carlos Egypto

O SOL DO MEIO DIA. Brasil, 2009. Direção: Eliane Caffé.  Com Luiz Carlos Vasconcelos, Chico Diaz, Cláudia Assunção, Ary Fontoura.  106 min.


“O Sol do Meio Dia” é a jornada de três personagens em busca de sua própria identidade e de um mundo para viver em paz.  Artur (Luiz Carlos Vasconcelos) procura se reinventar, após cometer um crime passional.  As profundezas do Brasil amazônico servem de cenário para sua viagem de reconstrução e redenção ao encontro de si mesmo e da superação da angústia em que vive, mascarada por um misto de gentileza, rudeza e destemor.

Matuim (Chico Diaz) é um barqueiro que transporta pelos rios amazônicos o que pode lhe valer alguns trocados, quando não está metido em confusões, pequenos negócios escusos ou tentando sobreviver de forma bufa. É cômico e trágico seu esforço para simplesmente continuar existindo.  Sua identidade parece estar na peruca que o provê de longos cabelos e que vive expondo suas vergonhas.  Uma espécie de Sansão atrapalhado, de cabelos postiços e poucas habilidades.

O que Artur e Matuim podem ter em comum, que os possa unir, ao menos temporariamente? A perda de referência e o caminho anárquico que percorrerão juntos, inicialmente na velha embarcação de Matuim, depois, em terra firme.

Ciara (Cláudia Assunção) é a terceira personagem da trama.  Frustrada pela “escolha” da filha pela prostituição, caminho de resto bastante comum em terras onde a pobreza e o machismo imperam, também erra pelo ambiente amazônico, em busca do seu espaço e do necessário afeto para viver.  É ainda relativamente jovem e bonita, pode reconstituir sua história a partir do ponto em que a filha a afasta de si e de sua atividade.

Esses três personagens vão percorrendo seus caminhos erráticos, em direção à cidade grande, Belém, no caso.  E acabarão por viver um estranho e desengonçado triângulo amoroso, cheio de idas e vindas, daqueles que se perdem mais do que se encontram.  Há drama e humor, mas tudo é seco, contido, até que venha a explodir.

Grandes atores dão contornos firmes e fortes a esses personagens e mantêm a atenção e o interesse pela trama.  Mas o que mais se destacou, para mim, foi a belíssima fotografia de Pedro Farkas, a utilização do claro escuro, das sombras, e o enquadramento das imagens.  É um trabalho a se apreciar com atenção

A diretora Eliane Caffé faz um filme poético, valendo-se dos cenários e paisagens da região amazônica e realçando os sons no tratamento dramático das situações, dispensando a música.  É uma película esteticamente superior à sua “Narradores de Javé”, de 2002, em que pese aquela história ser mais original e envolvente do que esta.

“O Sol do Meio Dia” foi rodado integralmente no estado do Pará, nos municípios de Belém, Castanhal, Vila Trindade, Vila Pernambuco e Rios.  Foi escolhido pela crítica da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, de 2009, como o melhor longa-metragem brasileiro ali apresentado.  E os atores Chico Diaz e Luiz Carlos Vasconcelos receberam prêmio conjunto de atuação masculina no Festival do Rio, de 2009.