sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

MURNAU, O EXPRESSIONISMO ALEMÃO E O CINEMA


Antonio Carlos Egypto


A aventura do cinema tem início em 28 de dezembro de 1895, com a primeira projeção pública, e paga, de filmes realizados pelos irmãos Lumière, no subsolo do Grand Café, Boulevard des Capucines, Paris. Essa primeira sessão do cinematógrafo Lumière coroava os esforços de um grande número de inventores e pesquisadores que, por séculos, buscaram o sonho de reproduzir o movimento por meio de imagens. Entre os muitos que criaram aparelhos que deram origem ao cinema está Thomas Edison, com seu cinetoscópio que, associado ao fonógrafo, quase criou o cinema falado, em 1892, só que isso se dirigia a apenas um espectador por vez.

Se foi difícil tecnicamente encontrar as soluções para criar a fotografia e depois animá-la, o fato é que o cinema uma vez descoberto teve uma evolução muito grande e rápida. Desde "A Chegada do Trem na Estação", de Louis Lumière, ao "Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene (e muitos outros criadores), em 1919, só se passaram vinte e quatro anos. Quando o expressionismo estava chegando, com sua originalidade e força criativa, o cinema já havia acumulado muitos trunfos em sua história.

Em 1902, Georges Méliès criava sua famosa "Viagem à Lua", no bojo de produções altamente inventivas e criativas onde a magia, o teatro e os cenários pintados compunham obras de inegável valor artístico. Méliès tinha estado presente à primeira sessão de cinema e incorporou esse invento ao seu teatro de mágicas, descobrindo novos caminhos para sua arte. Com Edwin Porter nos Estados Unidos e o seu "O Grande Roubo do Trem", de 1902, criou-se a história padrão que seria fortemente copiada até os dias atuais. Com Pathé e os filmes de Ferdinand Zecca, o cinema caminha para a indústria, conquistando mais público.

O cinema italiano faria a primeira superprodução histórica em 1914, com "Cabíria", de Giovanni Pastrone. No ano seguinte, nos Estados Unidos, David Wark Griffith sintetizaria a linguagem do cinema no épico "Nascimento de uma Nação", sobre a Guerra de Secessão norte-americana. Em que pese a apologia aberta do racismo que o filme faz, o êxito da empreitada foi total e praticamente criou a narrativa cinematográfica clássica, incluindo a montagem paralela. Em 1916, Griffith fará uma megaprodução de grandes ambições e agora pacifista, para compensar o belicismo anterior, "Intolerância". O filme é um dos grandes marcos da história do cinema, apesar do fracasso comercial e da extensa duração.

Na Suécia, desde 1912, Victor Sjöström já realizava belos filmes silenciosos, com base em adaptações literárias de Henrik Ibsen e Selma Lagerläf. e ao lado de Mauritz Stiller protagonizava a Era de Ouro do cinema sueco. "A Carruagem Fantasma", de Sjöström (1920), foi inspiração do maior cineasta sueco de todos os tempos, Ingmar Bergman, que confessava assistir ao filme pelo menos uma vez por ano.

Nessa mesma época, a comédia muda teve papel fundamental na difusão do cinema como entretenimento e arte. Max Linder, que trabalhava para Charles Pathé, e Mack Sennet, em Hollywood, são precursores do trabalho absolutamente genial que Charles Chaplin legou ao mundo. Os anos 1920 ainda não haviam chegado e Chaplin já havia feito maravilhas, como "O Vagabundo", "Rua da Paz", "Ombro, Armas" e "Vida de Cachorro", para citar só algumas das comédias curtas que estão na memória dos amantes de cinema. Não é pouco o que se pode registrar da história do cinema antes que os anos 1920 trouxessem um grande número de novidades e solidificassem a experiência cinematográfica.

É nesse período que se situa a escola do expressionismo alemão tão bem representada pelo "Gabinete do Dr. Caligari", e que produziu obras muito importantes, além de revelar realizadores do porte de Friedrich Wilhelm Murnau e Fritz Lang.

A Alemanha vivia uma humilhante derrota na Primeira Guerra Mundial, uma crise econômica sem precedentes e buscava reencontrar sua identidade e liderança perdidas. Nessa Alemanha inferiorizada e subjugada, as expressões artísticas teriam de ser intensas, algo lúgubres e inevitavelmente pessimistas. O expressionismo já existia na pintura, na música, na poesia e no teatro. Levado ao cinema, acabou por alcançar um alto grau de sofisticação, deixando uma marca permanente na chamada sétima arte, em seu período silencioso.

Formas pontiagudas, tortas, inclinadas, seres extraordinários, monstros à sombra, a visão deformada do real a partir da subjetividade, são alguns dos elementos constitutivos da arte cinematográfica expressionista. Tratava-se de uma ruptura estética, onde o fantástico assume o primeiro plano e simboliza uma realidade histórica, expressa de forma diferente do naturalismo, que vinha se impondo ao cinema mundial nesse período.

Na concepção nazista de arte que passaria a vigorar com a ascensão de Hitler ao poder, a partir de 1933, o expressionismo seria classificado como arte degenerada, ao lado de outras manifestações artísticas, e inteiramente desqualificado e rejeitado na Alemanha. O documentário de Peter Cohen, de 1992, "Arquitetura da destruição", mostra o processo de imposição da arte ariana, de características clássicas e naturalistas, em oposição aberta à chamada arte degenerada, atribuída principalmente aos judeus. Seres extraordinários, deformados, tortos ou distorcidos, como os utilizados pelo expressionismo, são abertamente condenados pelo Estado e pela figura que o representa naquele momento: Hitler, ele próprio, um artista plástico mediano, porém, cheio de certezas.

Hollywood, ao contrário do nazismo, buscou seus realizadores, recuperou e difundiu as obras do cinema expressionista alemão, prestando um inestimável serviço à arte cinematográfica. Hollywood também ganhou muito ao incorporar essa experiência. A estética do claro-escuro do cinema noir é um nítido exemplo disso, assim como a obra de Orson Welles e de muitos outros cineastas norte-americanos do cinema sonoro, em preto e branco. Fritz Lang, um dos mais destacados cineastas do período expressionista alemão, desenvolveria longa e brilhante carreira, tanto no cinema silencioso como no cinema falado, deixando filmes notáveis, como "Metrópolis", "M – O vampiro de Dusseldorf", "Fúria", "O diabo feito mulher" e a trilogia Mabuse.

Como em todas as escolas e tendências, há aqueles que as superam e as ultrapassam, colocando sua marca pessoal na produção artística. É o caso de Friedrich W. Murnau (1888-1931). Originário do teatro, onde foi assistente de Max Reinhardt, fez filmes como "Satanás" ou "Nosferatu", que se situam claramente na corrente do expressionismo alemão da época. Aliás, "Nosferatu" não só criou escola como permanece um clássico de grande beleza plástica, cujo fruir das imagens encanta em pleno século XXI. Não menos gratificante é a experiência de assistir hoje a "Fausto", uma adaptação do personagem mítico da literatura da obra de Goethe. O filme flui magnificamente, revelando uma tal beleza de imagens que encanta o espectador e nem exige que este tenha uma postura contemplativa, dado o dinamismo da narrativa.

O filme de Murnau da fase alemã que mais me entusiasma, no entanto, é "A Última Gargalhada". Aqui já estamos na concepção do Kammerspiel (peças de câmara), onde o intimismo, o simbolismo e o realismo têm lugar.
O esplendor visual de "A Última Gargalhada" é equivalente aos outros trabalhos de Murnau. Destaque-se a reconstituição em estúdio da rua do hotel, com pedestres na chuva, carros e até um trem passando. Há belas e significativas fusões de imagens. As imagens de sonho e fantasia que povoam a mente da personagem no momento da bebedeira, provocada pelo declínio, mas atribuível ao casamento que se está celebrando, são muito elaboradas. O jogo de luzes e sombras se destaca na caracterização das situações que estão sendo mostradas no filme. Um exemplo: quando ele volta para casa com o uniforme que já não lhe pertence, a sombra mostra antes o seu arquejamento, mas ele se recompõe e agora a sombra antecipa a postura empertigada que o caracterizava perante a sua comunidade.

A sensibilidade com que o filme expõe a decadência do orgulhoso porteiro do hotel e seu vistoso uniforme, que impressionava a comunidade onde ele vivia, é notável para um filme silencioso. Ainda mais se considerarmos que Emil Jannings, o protagonista da ação, se vale de uma interpretação de gestos e expressões exacerbadas que nos parece excessivamente teatral na atualidade. Ela nos leva, porém, ao âmago do sentimento. Expressa a dor da perda do lugar, do status, da respeitabilidade, ao mesmo tempo em que acentua a vergonha e a depressão da personagem. Igualmente importante é a expressão social de sua decadência, o pouco espaço que sobra para a pobreza, especialmente na velhice. O que seria um gesto de aparente solidariedade patronal ao inevitável declínio físico do empregado, que até pode manter seu emprego é, na verdade, uma sentença de morte psíquica. As profundas diferenças entre as classes sociais são expostas ao longo de todo o filme. A ausência de intertítulos integra o filme, tornando mais eficaz o envolvimento emocional com o espectador, num espetáculo que valoriza o aspecto intimista da história.

O final é irônico, ao redimir uma personagem que não teria mesmo nenhuma saída àquela altura. Hoje pode ser vista pelo ridículo dos finais felizes forçados, tal é o artificialismo da solução. Mas o diretor aproveita esse desfecho para revelar o mundo fútil dos ricos, enfatizando a gratidão e o desprendimento, tocantes apesar de ingênuos. Tocante, aliás, é uma boa definição para um filme que lida com o social e o emocional de forma tão simples e tão integrada. É dessa simplicidade com requintes técnicos de bom cinema que se compõe essa obra-prima de Murnau.

O diretor ainda faria quatro filmes nos Estados Unidos, entre eles "Aurora" e "Tabu". "Aurora" é considerado outra obra-prima, mas que não cabe comentar aqui e agora.

O cinema falado estava chegando e Murnau, um diretor extraordinário do cinema silencioso, poderia acrescentar novas e importantes obras ao cinema, não tivesse falecido tão precocemente aos 43 anos, num acidente automobilístico. O cinema deve ter perdido muito com isso.

FILMOGRAFIAA ÚLTIMA GARGALHADA (Der Letzte Mann), Alemanha, 1924.
Direção: Friedrich W. Murnau. Com Emil Jannings, Maly Delschaft, Emilie Kurz. 91 min.

NOSFERATU (Nosferatu), Alemanha, 1922.
Direção: Friedrich W. Murnau. Com Max Schreck, Gustav von Wangenheim, Greta Schroeder. 81 min.

FAUSTO (Faust), Alemanha, 1926.
Direção: Friedrich W. Murnau. Com Emil Jannings, Camilla Horn, Wilhelm Dieterle. 116 min.

O GABINETE DO DR. CALIGARI. (Das Kabinet des Dr. Caligari). Alemanha, 1919.
Direção: Robert Wiene. Com Werner Krauss, Conrad Veidt. 78 min.

O GOLEM (Der Golem), Alemanha, 1920.
Direção: Paul Wegener. Com Paul Wegener, Henrik Galeen. 88 min.

A ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO (Undergägens Arkitektur), Suécia, 1992.
Direção: Peter Cohen. Narração: Bruno Ganz. 121 min.