terça-feira, 27 de agosto de 2019

BACURAU

Antonio Carlos Egypto






BACURAU.  Brasil, 2018.  Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.  Com Sonia Braga, Udo Kier, Bárbara Colen, Thomás Aquino, Silvero Pereira, Karine Teles, Antonio Saboia.  132 min.


“Bacurau”, o novo filme de Kleber Mendonça Filho (de “O Som ao Redor”, 2013, e “Aquarius”, 2015) e Juliano Dornelles é um western  brasileiro.  Segue a trilha dos históricos “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1963, e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, 1969, de Glauber Rocha (1938-1981).  Filmes que já se pautavam por grande força política e preocupação social, tentando desvendar um universo nordestino, marcado pela violência opressora, de um lado, e resistente, de outro.  Dialoga também com a produção nacional que sempre teve nos cangaceiros uma fonte de inspiração permanente e oportunidade de pensar e de criar a partir da realidade do nordeste brasileiro, para alcançar o país.

“Bacurau” incorpora novos elementos a tudo isso.  Tem invasores agressores e poderosos.  Que chegam a tirar o povoado do mapa e produzem assassinatos aparentemente inexplicáveis, se valendo até de drones com aspecto de disco voador.  Falam inglês, seu comandante é um alemão com pinta e comportamento de nazista, e os colaboradores que atuam com eles falando português, além do inglês, são desprezados e descartados na primeira oportunidade.  Ou seja, estamos no terreno da alegoria política, que soa tão atual, mas talvez seja mesmo uma constante da nossa história.  Até porque nada se nutre do momento atual, embora pareça inspirado nele.  Percepção acurada?  Premonição?   Visão apurada do processo histórico, vista da relação entre a casa- grande e a senzala e na dimensão internacional que as envolve.




“Bacurau” mistura ação e reflexão no mesmo produto.  É um filme forte, intrigante, provocador, mas é também uma aventura, muito envolvente.  Por isso, pode ser visto como um filme de gênero, embora não esteja preocupado em seguir cartilhas ou convenções.  Fala ao sentimento do público, mostra uma violência que tem de ser decifrada e que, afinal, nos leva a algumas conclusões.  Talvez distintas, para cada grupo de espectadores.  Mas que deve mexer com todo mundo, de um  jeito ou de outro.

Um elenco enorme e dedicadíssimo a seus personagens passa uma sensação de grande veracidade e nos remete a um mundo tão familiar quanto parece distante.  Sonia Braga, como a dra. Domingas, reúne as dimensões da solidariedade e do descontrole, a nos indicar a profunda humanidade da figura que encarna.  Udo Kier é a maldade forasteira, mas também o impasse e a solidão.  Bárbara Colen faz Teresa, mulher forte e lutadora. Os forasteiros colaboracionistas são patéticos, mas a gente até se esquece disso porque Karine Teles e Antonio Saboia nos conquistam pela qualidade de seus desempenhos.  Thomás Aquino, como Pacote, e o inusitado bandido local Lunga, papel de Silvero Pereira, nos mostram como é estar no fio da navalha entre a fome e o crime.  Todos os personagens são bem construídos e têm um ator ou atriz à sua altura.

A trilha sonora é também bem marcante, vai de Gal Costa e o objeto voador não-identificado a Geraldo Vandré, passando por Sérgio Ricardo. Marcos reconhecíveis da resistência que marcou a nossa música e o nosso cinema, que combinam bem com a temática tratada no filme.




A comunidade do povoado da Barra, no Rio Grande do Norte, divisa com a Paraíba, onde a maior parte do filme foi gravada, participou ativamente dos trabalhos de apoio à produção e como figurantes, contribuindo para a autenticidade das situações mostradas.

“Bacurau” é um filme de peso da produção brasileira recente, que já vem recebendo o maior reconhecimento internacional, na forma de convites para mais de 100 festivais e mostras de cinema pelo mundo e já com prêmios conquistados nos festivais de cinema de Munique, na Alemanha, em Lima, no Peru, e o importante prêmio do Júri, do Festival de Cannes.

“BACURAU” ENTRA, EU SAIO
“Bacurau” entra nos cinemas na próxima 5ª., dia 29 de agosto, e eu saio em viagem por algumas semanas, dando uma folga para vocês dos meus textos.  Até breve!


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

EM CARTAZ

Antonio Carlos Egypto


Entre os filmes que já estão em cartaz nos cinemas, ou estão entrando agora, gostaria de chamar a atenção, rapidamente, para alguns deles.


ENTRE TEMPOS

O italiano ENTRE TEMPOS (Ricordi?), de Valerio Mieli, com Luca Marinelli e Linda Caridi, é uma história de amor com seus encontros e desencontros, marcados no tempo por questões ligadas a lembranças, memórias e à interpretação dos fatos.  A oposição otimismo versus pessimismo também é uma questão do filme.  Num vai e vem que lembra o funcionamento da mente que recorda, o filme se constrói como um caleidoscópio.  Estiloso, moderno na forma.  Mas a edição deve ter dado um trabalhão enorme.  Pelo jeito, o diretor filmou demais e acabou perdendo um pouco o foco.  106 min.

Filme novo de Quentin Tarantino atrai uma turma grande de aficionados.  Para esse pessoal, ERA UMA VEZ... EM HOLLYWOOD (Once Upon a Time... in Hollywood) não decepciona.  Com Leonardo Di Caprio, Brad Pitt e Margot Robbie.  A trama, envolvendo um ator de pouco sucesso e seu dublê, traz, como de costume, o cinema para o centro da conversa.  Hollywood especificamente, conforme o título pouco criativo já diz.  Porém, Tarantino gosta de reinventar a história.  Neste caso, a de Sharon Tate e a tragédia que a acometeu e abalou Roman Polanski.  Imaginem se aqueles assassinos tivessem entrado na casa ao lado, o que teria acontecido?  Não sou fã, mas aprecio o talento do diretor.  O final, para variar, é um espetáculo de violência explícita.  161 min.



YESTERDAY

 YESTERDAY, do britânico Danny Boile, tem uma curiosa história.  Imaginem que, por um apagão mundial, de repente, os Beatles tivessem sumido do mapa, suas músicas não existiriam, ninguém se lembraria delas.  O mundo seria muito mais triste, com certeza.  Mas e se uma única pessoa, um músico, fosse capaz de se lembrar, cantar e tocar as canções deles?  É por aí que vai o musical que homenageia os 4 de Liverpool, com Himesh Patel, no papel de Jack Malik, o único no mundo que ainda conhece a obra dos Beatles.  O roteiro não chega a ser brilhante, apesar da boa ideia, mas o filme vale pelas boas interpretações musicais de Patel e pela brincadeira.  Algumas outras coisas também sofreram com o apagão: Harry Potter, a coca-cola e o cigarro.  O que vocês acham que isso significa?  117 min.




quinta-feira, 22 de agosto de 2019

PÁSSAROS DE VERÃO

Antonio Carlos Egypto





PÁSSAROS DE VERÃO (Pájaros de Verano).  Colômbia, 2018.  Direção: Cristina Gallego e Ciro Guerra.  Com Carmiña Martínez, José Acosta, Natalia Reys, Jhon Narvaez, Greider Meza, Jose Vicente Cotes.  125 min.


Assim como em “O Abraço da Serpente”, de 2015, dirigido por Ciro Guerra, o novo filme dele, codirigido por Cristina Gallego, nos põe em contato com uma cultura colombiana indígena.  No caso deste “Pássaros de Verão”, é da comunidade Wayuú que se trata, mostrada por meio de uma aldeia a partir da família wayuunaiki, em cujo idioma o filme é falado, além do espanhol e do inglês.  O inglês, por conta dos turistas norte-americanos que aparecem por lá, em busca de maconha.

O que se vê, então, é um choque cultural que põe em guerra a própria família, com o que ficou conhecido como la bonanza marimbera, o lucrativo comércio da maconha para os Estados Unidos, no decorrer dos anos 1970, que tem a ver com um ciclo que colocou a droga no centro das questões políticas do próprio país.  O que seria uma questão local, de pequena dimensão, está na base de uma guerra que alcançou grandes proporções, como nos mostra a história recente da Colômbia.

O filme tem um enfoque diferente para a questão das drogas e dos crimes que a acompanham: a descoberta de um caminho produtivo, relativamente fácil e altamente lucrativo, que poderia ser a redenção econômica daquela comunidade, se transformando numa guerra familiar muito sangrenta.

A ambição e a tradicional defesa da honra e dos hábitos ancestrais da comunidade convivem com o mercado que se conduz por outros padrões, o das economias capitalistas, em que oferta e procura determinam ações, preços, e trazem consequências que escapam inteiramente ao controle da cultura local, acabando por praticamente destruí-la, descaracterizando-a, gerando a cizânia.




“Pássaros de Verão” nos põe em contato com essa riqueza cultural tradicional do povo Waiuú, seus rituais religiosos e de acasalamento, suas danças, oferendas, princípios de relacionamento e inserção familiar.  As drogas até fazem parte da comunidade, como costuma acontecer com quem está mais próximo das plantas e do uso medicinal delas.  Mas se torna mais difícil de compreender e lidar, quando o produto assume a condição de mercadoria, reverenciada e consumida com avidez e a preços vantajosos pelos forasteiros.  Elas são fontes de riqueza, por um lado, e uma espécie de força do demônio, por outro. 

O filme é muito bem feito, instigante, original na abordagem, reafirmando os realizadores colombianos como cineastas de peso, o que está sendo reconhecido em festivais importantes, como o de Cannes.

Ciro Guerra como diretor, com produção da atual codiretora Cristina Gallego, concorreram ao Oscar de filme estrangeiro pela Colômbia com “O Abraço da Serpente”, em 2016.  Aquele filme foi também um dos grandes destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e foi exibido no circuito comercial.  “Pássaros de Verão” está seguindo trilha semelhante, incluindo a indicação ao Oscar, e mostrando um caminho exploratório muito interessante, com base na Antropologia: a identificação dos elementos culturais ancestrais postos em contato com elementos contemporâneos que os modificam e transformam, mas também podem ser passíveis de serem transformados, de algum modo.  Por uma consciência ecológica, por exemplo, que tem muito a aprender com as culturas mais tradicionais.  Também é muito relevante o papel histórico desses encontros e desencontros culturais, de diferentes mundos que coexistem.





segunda-feira, 19 de agosto de 2019

FESTIVAL INTERNACIONAL DE CURTAS

Antonio Carlos Egypto






Evento cinematográfico de grande importância para São Paulo, é o 30º. Festival Internacional de Curtas-Metragens, que ocorre de 22 de agosto a 1º. de setembro de 2019.  Serão 324 filmes e 4 games, de 53 países, que serão exibidos em diversas salas da cidade: Cinesesc, Cinemateca Brasileira, Museu da Imagem e do Som, Centro Cultural São Paulo, Cinusp, Cine Olido e os CEUs de Perus, Caminho do Mar e Vila Atlântica.

A programação inclui as mostras internacional, latino-americana, programas brasileiros, infanto-juvenis, programas imersivos, mostra limite e atividades paralelas, na forma de debates, workshops, masterclasses.

Além da programação inédita, que inclui uma mostra competitiva de brasileiros com 14 títulos pré-selecionados, haverá uma homenagem a Jorge Furtado.  Seu premiadíssimo “Ilha das Flores”, melhor curta brasileiro de todos os tempos, segundo a Abraccine, também completa 30 anos, como o Festival.  Uma seleção de curtas dele estará na programação.  A mostra Coreia em Foco marca o 60º. aniversário de relações diplomáticas entre Brasil e Coreia, com uma mostra do diretor Bong Joon-Ho.  Essas são apenas algumas dentre a grande variedade de atrações do Festival.

Enfim, o evento criado e promovido por Zita Carvalhosa e a Associação Cultural Kinoforum merece toda a atenção do público paulistano.  Sempre lembrando que o curta-metragem é a forma por excelência para a revelação de novos talentos do cinema, em todo o mundo.  E um formato bem utilizado também por grandes realizadores que já venceram no longa, mas cultivam o curta para realizar experimentações, expressar ideias urgentes, documentar momentos e situações históricos.  Entre os curtas desta edição estão, por exemplo, “Blue”, do grande cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, e o vencedor do Oscar de curtas, o estadunidense “Pele” (Skin), filme forte e politicamente marcante sobre o racismo, que é de não se esquecer.  O brasileiro “Swinguerra”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, é outro destaque da seleção.  Aliás, o que não faltam são destaques de qualidade.

E não se esqueçam de que o Festival Internacional de Curtas só tem sessões gratuitas, em todos os cinemas.  Dá para querer mais?  Dá, sim.  Queremos que o Festival prossiga existindo no ano que vem, que receba o apoio necessário para continuar se viabilizando, em tempos em que a cultura está sendo asfixiada por falta de verbas governamentais, além da tentativa de lhe impor “filtros”, ou seja, a inconstitucional censura.  Que tempos!


sábado, 17 de agosto de 2019

CLAIRE DARLING

Antonio Carlos Egypto





 A ÚLTIMA LOUCURA DE CLAIRE DARLING (Le Derniére Folie de Claire Darling).  França, 2018.  Direção: Julie Bertuccelli.  Com Catherine Deneuve, Chiara Mastroianni, Samir Guesmi, Alice Taglioni. 94 min. 


Ver Catherine Deneuve e Chiara Mastroianni, mãe e filha na vida real, e grandes atrizes da telona, atuando juntas no mesmo filme, já é um bom motivo para ir ao cinema. 

“A Última Loucura de Claire Darling”, porém, tem algo mais a oferecer.  A história de Claire, que decide que sua vida chegou ao fim e resolve se desfazer de todos os seus ricos, artísticos e sofisticados pertences, a preços meramente simbólicos, tratada aqui como loucura, pode trazer algumas reflexões interessantes.

Sabe-se que, com o avanço da idade, ocorrem algumas perdas mentais, lapsos de memória, esquecimentos, o presente fugidio, aspectos do passado que se borram, coisas assim.  Não se trata de diagnóstico de Alzheimer ou similar.  É a perda natural da vida, que o passar do tempo cobra.  No entanto, trata-se de pessoa lúcida, mais do que isso, inteligente, instruída, de gostos altamente sofisticados. 

O que ocorre é que essa lucidez acaba sendo parcial.  Ou seja, parte dela se perde nesse processo de deterioração natural.  O uso inadequado e a percepção do valor do dinheiro é um bom exemplo.  Coisas são supervalorizadas e pagas regiamente.  Ou bens e valores são esbanjados sem motivo, ou a partir de uma avaliação precária e imediata, ou, ainda, por adesão a uma causa, por exemplo, religiosa, discutível. 




No caso do filme da diretora Julie Bertuccelli, é a ideia de que se possa conhecer o dia ou o momento da própria morte.  Antevê-lo sem estar vivendo nenhuma situação de doença ou dor extremas, é, evidentemente, um delírio, que gera comportamentos extravagantes, capazes de trazer de volta à pequena aldeia, onde vive a mãe, uma filha distante, um vínculo complicado.  Mãe e filha, belas mulheres, grandes atrizes, que encarnam com brilho esses papéis.




quinta-feira, 15 de agosto de 2019

RAFIKI

Antonio Carlos Egypto






RAFIKI (Rafiki).  Quênia, 2018.  Direção: Wanuri Kahiu.  Com Samantha Mugatsia, Sheila Munyiva, Jimmi Gathu, Nini Wacera.  82 min.


Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) se sentem atraídas uma pela outra e se tornam as “amigas” do título original.  São filhas de dois políticos locais, de uma região de Nairobi, no Quênia, que estão em disputa na eleição municipal, com posicionamentos políticos diferentes.  Só por isso, já não seria muito adequada essa aproximação.

Fica mais complicada a situação, considerando-se que, apesar de o casamento gay entrar nas cogitações políticas, no Quênia a homossexualidade é ilegal e pode ser penalizada com prisão.  Além disso, é fortemente rejeitada e hostilizada pela religião.  Não há garantia dos direitos dos LGBTs.

Tudo isso faz com que o amor entre Kena e Ziki, que se dá de forma quase instantânea – amor à primeira vista? – se torne um drama, impedindo que elas possam experimentar um envolvimento amoroso que escapa dos padrões e expectativas dessa sociedade muito conservadora.




“Rafiki” trabalha essas questões com sutileza, numa produção bem cuidada, e escorando-se no admirável talento da jovem atriz Samantha Mugatsia, que nos conquista desde os primeiros planos do filme.  Sua parceira explora mais a aparência e a feminilidade, mas não tem o mesmo carisma.  O resultado geral é muito bom.  O filme da diretora Wanuri Kahiu merece ser conhecido e apreciado. 


Não precisa nem dizer que a exibição de “Rafiki”, que tem coprodução da África do Sul e França e foi bem recebida nos festivais internacionais de cinema, teve sua exibição proibida no Quênia, por supostamente promover o lesbianismo.  Em pleno século XXI, há países e governos que querem impedir que a diversidade humana exista.  Mostrá-la se confunde com propagá-la.  Temos muito ainda para evoluir, até que o mundo como um todo possa ser um lugar habitável para todos os humanos.


domingo, 11 de agosto de 2019

SIMONAL

Antonio Carlos Egypto






SIMONAL.  Brasil, 2018.  Direção: Leonardo Domingues.  Com Fabrício Boliveira, Ísis Valverde, Caco Ciocler, Leandro Hassum, Mariana Lima.  105 min.


A história, fabulosa e complicada, da carreira de Wilson Simonal (1938-2000) tinha se tornado um tabu, do qual ninguém mais tratava, até que o documentário “Simonal, Ninguém Sabe o Duro que Dei”, de 2009, corajosamente enfrentou a questão.  Seus diretores, Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, foram capazes de lançar luz sobre o paradoxo de um dos maiores cantores da história da MPB,  e de um domínio de palco absoluto, ter sumido do mapa, por conta de suas ligações com órgãos de repressão da ditadura militar.  Simonal se valeu de ligações com o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) para pressionar e, ao que tudo indica, torturar seu contador, acusado de roubá-lo.  Injustamente, porém.  Foi também acusado de dedo-duro  junto a colegas artistas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que teriam sido apontados como subversivos, ou comunistas, algo jamais provado, diga-se.  Ao tratar daquele filme, procurei fazer uma síntese sobre o assunto, que pode ser acessada aqui: https://cinemacomrecheio.blogspot.com/2009/05/simonal-o-documentario.html

Agora, chega aos cinemas a produção ficcional “Simonal”, de Leonardo Domingues, tratando a rigor das mesmas coisas, acrescentando alguns detalhes do caso, que podem ser importantes.  Mas tudo já parecia estar razoavelmente esclarecido.  Então, o destaque vai para os êxitos de sua carreira, interpretações e desempenhos marcantes nos palcos, e para a rejeição que se seguiu.




Um bom musical para vender novamente os grandes sucessos do cantor.  Quem acompanhou aquela escalada vai se lembrar, com certeza, de “Sá Marina”, “Nem Vem, que Nâo Tem”, “Mamãe Passou Açúcar Ni Mim”, “Vesti Azul”, “Aqui é o País do Futebol”, “Carango”, “Tributo a Martin Luther King”, o grande “País Tropical”, de Jorge Ben, e o clássico “Meu Limão, Meu Limoeiro”, de 1937, de José Carlos Queiroz Burle (1910-1983), que Carlos Imperial (1935-1992) registrou como se fosse composição dele.  E o nome disso, na época, não era roubo, desonestidade, era pilantragem.  Fácil assim, não é?

Constam da trilha sonora também músicas do que seria a primeira fase de sucesso de Simonal, inspirada na bossa-nova, jazz, blues.  A mais marcante, “Balanço Zona Sul”, está lá.  Outras que aparecem são, porém, inadequadas.  “Lobo Bobo”, todo mundo sabe que é uma das mais marcantes interpretações de João Gilberto, e “De Manhã”, um baita sucesso de Caetano, na voz de Maria Bethânia. Simonal também as gravou, assim como gravou, por exemplo, “Disparada” e “A Banda”, mas são apenas regravações à sua moda.  Só isso.  Não são sucessos dele.

Outra coisa que me incomodou foi uma sequência em que Simonal ensina a Jorge Ben (ou Benjor, como ficou depois) o suíngue de “País Tropical”, com a novidade do corte das últimas sílabas.  Pouca gente na MPB tem mais ritmo, balanço e humor, do que Jorge Benjor.  É muita pretensão achar que Simonal foi quem ensinou isso a ele.  Que é o criador, o compositor da música.

Enfim, recuperar os méritos, o talento de Wilson Simonal, tudo bem.  Mas não é aceitável exagerar dessa forma.  A MPB da época dele era, e ainda é, uma geração brilhante, além de comprometida com a luta pela liberdade e pela democracia.  Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius, Edu Lobo, Jorge Benjor, Caetano, Gil, Milton Nascimento, Vandré, Tom Zé, tanta gente.  Simonal fazia o lado mais comercial e divertido da história.  Descompromissado, na base da alegria, alegria, em tempos de opressão.  É válido, mas devagar com o andor que, na real, o santo se mostrou mesmo de barro.




A produção do filme “Simonal” é boa, bem cuidada.  Fabrício Boliveira, que interpreta o cantor, consegue passar o pique e a força do Simonal dos tempos de glória e da fase de derrocada.  Ísis Valverde tem destaque na trama, no papel da esposa Tereza.  O elenco, como um todo, é muito bom.

A forma como a história é contada foca demais em Simonal, deixando toda a brilhante MPB da época na sombra.  É um erro, dá uma dimensão excessiva ao personagem, em prejuízo do contexto que o envolvia, que não era só o da ditadura militar, mas a da resistência a ela, brava e poderosa, por parte dos artistas do período com quem Simonal convivia.  E dos que compartilharam de seu tempo, em paralelo à sua carreira.  Fica muito mais fácil entender a rejeição que ele sofreu no contexto mais amplo de onde ela se deu.  Fica mais claro, politicamente, e bem menos paradoxal.



terça-feira, 6 de agosto de 2019

FESTA DO CINEMA ITALIANO

Antonio Carlos Egypto


De 08 a 14 de agosto aporta em São Paulo, no Espaço Itaú Augusta, a já tradicional “8 ½ Festa do Cinema Italiano”.  Muita coisa boa no cardápio dessa festa.  A começar pela apresentação em duas partes do grande filme de Marco Tullio Giordana, de 2003, “O Melhor da Juventude”.  (La Meglio Giuventú).  Uma família em que dois irmãos vivem juntos e separados em momentos da história recente da Itália, dos anos 1960 aos 2000.  Vão a Roma, passam pelas origens em Ravena, estudam em Bolonha, se encontram em Florença em plena cheia que castigou a cidade, em eventos de radicalismo político e repressão em Turim, nos julgamentos de Milão, na máfia siciliana, em Palermo, onde também se dá o assassinato do juiz Giovanni Falcone e outros, no tempo da Brigada Vermelha, e por todos os cantos, ao longo desse período contemporâneo italiano. Uma jovem com problemas mentais compõe o trio de protagonistas, o que permite discutir o descalabro dos hospitais psiquiátricos e a revolução promovida por Basaglia no mundo, a partir da Itália.




A costura dos fatos e personagens é muito bem feita, a filmagem exala humanidade, afeto e compreensão, em meio aos inevitáveis conflitos da vida, desencontros amorosos e familiares.  Recheada por ótimos atores de um elenco jovem e música da mais alta qualidade, e não só italiana.  Vai de Dinah Washington a Cesária Évora.  Todos perseguem seus sonhos, se iludem, se magoam e seguem em frente, na busca incessante por uma vida que possa ser melhor.

É um dos grandes filmes do cinema italiano de todos os tempos.  Grande na qualidade, mas também no tamanho.  São 6 horas de duração, por isso as sessões são divididas em dois dias, de 3 horas cada um.  Talvez você diga: nem pensar!  E não tente.  Se você disser: vou ver só a primeira parte para conferir como é, eu lhe garanto, você não vai querer perder a segunda parte, por nada desse mundo.  E se chegar ao final da saga vai sentir um gosto de que ainda queria mais.

Mas além de “O Melhor da Juventude”, a mostra tem filmes que abordam a grande arte italiana: “Michelangelo Infinito” e “Caravaggio, a Alma e o Sangue”, em dois documentários que ainda pretendo ver.  Tem o novo filme de Paolo Sorrentino, que trata do personagem político Silvio Berlusconi e sua trupe corrupta de direita, em “Silvio e os outros”, e muito mais.


NOITE MÀGICA

“Noite Mágica”, o novo filme de Paolo Virzì, que já vi, é outra bela opção.  A partir de uma morte acidental, ou intencional, num carro que mergulha no rio Tibre, os personagens desta investigação penetram no universo cinematográfico da grande fase italiana dos anos 1960 e 1970.  Para quem acompanhou e conhece esse período do cinema italiano, há um sem-número de citações e insinuações reconhecíveis e divertidas.  O espectador comum pode não percebê-las, mas ainda assim acompanhará o ritmo feérico do filme, os bastidores do cinema e seus tipos característicos, a partir de três jovens talentosos roteiristas, que são os suspeitos investigados, em sua tumultuada jornada pelas ruas de Roma, o epicentro desse fenômeno cinematográfico tão marcante que a Itália legou ao mundo e à história.

Mas se você preferir conferir outras cinematografias que não a italiana e quiser dispensar os filmes estadunidenses e franceses que ocupam o circuito, nos mesmos dias da mostra italiana, o Cinesesc tem a mostra “Mundo Árabe”, com produções recentes que merecem ser conhecidas.  E está em cartaz também, até 14 de agosto, distribuído em diversos locais, o “23º. Festival do Cinema Judaico”.   Esse acontece na Hebraica, no Museu da Imagem e do Som, no Instituto Moreira Salles e no Sesc Bom Retiro.  Por falta de opção é que você não vai deixar de ir ao cinema.  Até porque os preços dessas mostras são inferiores aos dos bilhetes de cinema convencionais.  E esse frio que está fazendo em São Paulo não convida para um cineminha também, num ar condicionado mais quentinho?  




quinta-feira, 1 de agosto de 2019

MISTÉRIOS + CORAÇÃO DO MUNDO

Antonio Carlos Egypto



O MISTÉRIO DO GATO CHINÊS

O MISTÉRIO DO GATO CHINÊS  (Kûkai).  China, 2017.  Direção: Chen Kaige.  Com Huang Xuan, Shôta Sometani, Kitty Zang Yugi.  129 min.


O filme “O Mistério do Gato Chinês” é uma produção chinesa de luxo, de alto padrão e beleza visual.  Não só pelos palácios suntuosos, figurino exuberante e exotismo histórico, mas pela profusão de sofisticados efeitos especiais.  É, por esse aspecto, um espetáculo deslumbrante.

A trama, porém, é apresentada de um modo complicado, confuso, de difícil entendimento.  Mostra um monge e um poeta que buscam pistas misteriosas, envolvendo uma morte.  Que remete a um gato preto demoníaco a quem se atribuem crimes no período da China medieval, após a reunificação do país, durante a dinastia Tang (618 a 906 d.C.).  Coisa de mais de mil anos, portanto.

A verdade é que a história importa menos do que a criação visual, no caso.  No entanto, quando a técnica fica muito evidente e é usada em demasia, como acontece aqui, algo sai do tom.

O cineasta Chen Kaige, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 1993, por “Adeus, Minha Concubina”,  parecia caminhar para uma carreira de sólido sucesso, que acabou não acontecendo.  Ele não conseguiu repetir o feito de então, mesmo tendo realizado bons filmes.  Faltou maior elaboração ou um roteiro mais consistente e empolgante.  Em “O Mistério do Gato Chinês”, o espetáculo visual está garantido, mas passou um pouco do ponto e deixou o espectador imerso no mistério.
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O MISTÉRIO DE HENRI PICK

O MISTÉRIO DE HENRI PICK (Le Mystère Henri Pick).  França, 2019.  Direção: Rémi Bezançon.  Com Fabrice Luchini, Camille Cottin, Alice Isaaz, Bastien Bouillon, Hanna Schygulla. 100 min.

O filme “O Mistério de Henri Pick” começa com um programa da TV, supostamente aberta, pela repercussão, em que se discutem lançamentos literários, com debates e análises críticas das obras comentadas.  Algo que parece tão distante do nosso dia-a-dia, que dá inveja.  A importância e a dimensão do livro na vida das pessoas na França parece exponencialmente superior a qualquer coisa que observemos por aqui.  Esse preâmbulo é importante para marcar a diferença de contextos, porque a própria trama tende a ser estratosférica para nós, se não atentarmos para essas diferenças.

Numa cidade do interior da França, uma biblioteca bretã cria uma inacreditável sala de manuscritos rejeitados pelas editoras para publicação.  E é lá que uma jovem profissional editora acaba por encontrar uma joia preciosa, que deve ter passado despercebida pelos editores que a leram.  Era um texto tão talentoso que, ao ser publicado, se torna um imenso sucesso editorial.

O autor já morreu há dois anos e é desconhecido.  Ou melhor, descobre-se que ele era um pizzaiolo que, ao que se sabe, jamais teria lido um livro.  Quanto mais escrever um.   Desse mistério é que se faz o filme.

Fabrice Luchini, grande ator, faz o papel de crítico literário, Jean-Michel Rouche, da TV, que questiona e investiga os fatos, ao lado da filha do autor Henri Pick, Joséphine, vivida por Camille Cottin.  Alice Isaaz faz a editora Daphné Despero e Bastien Bouillon, o autor Frédéric Kostas.  E nesse belo elenco ainda cabe uma ponta para a grande Hanna Schygulla.  O filme de Rémi Bezançon é divertido e bom de se ver, apesar de se valer de reviravoltas demais, até chegar ao desvendar do mistério.
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NO CORAÇÃO DO MUNDO

NO CORAÇÃO DO MUNDO.  Brasil, 2019.  Direção: Gabriel Martins e Maurílio Martins.  Com Kelly Crifer, Leo Pyrata, Grace Passô, Bárbara Colen, Robert Frank.  120 min.


Contagem, Minas Gerais, pode ser vista como o coração do mundo, por algum dos personagens do filme de Gabriel e Maurílio Martins.  Na realidade, é um contexto de periferia bastante sofrido, com poucas possibilidades de sobrevivência digna e tranquila.  Há o desemprego, hoje já uma característica marcante do momento nacional atual, mas também os trabalhos intermitentes, mal remunerados, que não abrem perspectivas para que algum tipo de sonho pareça viável.   E o filme pega esse veio documental por meio de personagens colados a esse contexto social empobrecido.

Na ausência de saídas, a transgressão se oferece como caminho, para alcançar o impossível, nas circunstâncias dadas.  Mais do que transgressão, crime, mesmo.  E “No Coração do Mundo” muda o registro para entrar num mundo hollywoodiano de filme policial, de suspense e ação, fazendo assim uma combinação de realismo e espetáculo de gênero, que surpreende, mas funciona.  Não chega a ser água e óleo, não, embora corra o risco de desagradar, pelo menos em parte, tanto os que buscam a reflexão sobre a realidade social, quanto os que esperam pelo entretenimento.

O desempenho do elenco é bastante desigual.  Traz Grace Massô, uma atriz de forte presença, inflexão e dicção perfeitas, mas traz também, em papel central, Leo Pyrata, que tem problemas de dicção que acabam comprometendo a compreensão de parte de seus diálogos.  Não é um problema só dele, quando se combinam dicção imperfeita com linguagem regional e gíria específica, fica complicado.  Várias sequências do filme exigem atenção redobrada do espectador para ouvir e entender as falas.  Talvez uma legendagem possa ser recomendada em alguns locais de exibição, também no Brasil.