domingo, 30 de setembro de 2012

POLÍSSIA

 Antonio Carlos Egypto

POLÍSSIA (Polisse).  França, 2011.  Direção: Maïwenn.  Com Karin Viard, Joey Starr, Marina Foïs.  127 min.
“Políssia”, assim mesmo, com dois ss em lugar do c, talvez tenha esta escrita para significar polícia ma non troppo.  Pelo menos, é o meu palpite.  São policiais especiais os que são retratados aqui.
O filme mostra o cotidiano de uma unidade policial: a Brigada de Proteção ao Menor, de Paris.  O que eles mais lidam é com situações de abuso sexual, geralmente sob a forma de pedofilia.  O abuso de crianças, como se sabe, na grande maioria dos casos, se dá em família ou envolve pessoas muito conhecidas, tais como amigos, vizinhos, professores. Assim, se sucedem os depoimentos, tanto das crianças como dos adultos suspeitos.  Há outros casos também, os de maus-tratos e os de abandono de crianças e infrações cometidas pelos menores de idade, de um modo geral.

O modus operandi desses policiais é mostrado, assim como o envolvimento genuíno deles com temas tão tocantes e a importância que sabem que têm.  Eles são comprometidos com o que fazem.  Ainda que possamos estranhar alguns de seus métodos, o trabalho deles merece respeito.
O que se estranha, por exemplo, é a falta de um espaço de intimidade para lidar com uma questão tão delicada.  Depoimentos são tomados por vários deles ao mesmo tempo e as questões são sempre diretas demais.  Em relação às crianças, geralmente é preciso abordá-las de uma forma mais indireta e simbólica.  Muitos desses casos tratados no Brasil por instituições especializadas demandam o trabalho cuidadoso de psicólogos bem preparados para abordar o assunto.  Trabalha-se com bonecos e dramatização para se chegar aos fatos, procurando proteger a criança e lhe dando suporte para que possa reviver as situações traumáticas que cercam os casos de abuso sexual.

Aqui, não, eles são jovens policiais, escolados, vão direto ao assunto, brigam pela causa e acabam cometendo excessos ou fortes inadequações.  Como o ataque de riso que os acomete, quando interrogam uma garota que se submeteu a abuso para recuperar seu celular.  De qualquer modo, é muito interessante ver o trabalho deles e o quanto se envolvem com o que fazem.
O filme se bastaria se mostrasse esse cotidiano, focando no trabalho que realizam, mas, como vem acontecendo em vários títulos do cinema francês atual, inclui um monte de outros ingredientes desnecessários, que afrouxam o foco da trama.  Os muitos personagens, seus comportamentos, sentimentos e vínculos, servem para mostrar a humanidade e até a banalidade da vida desses policiais, que enfrentam uma barra social tão pesada como a temática que lhes concerne.  Mas, ao tentar desenvolver o que envolve a vida de cada um, o foco principal do filme acaba se dispersando e o que fica é um painel de situações em que nada se aprofunda ou se dá a conhecer por inteiro.

A personagem da fotógrafa que registra, aparentemente de forma impassível, o trabalho do grupo e acaba por se envolver com o mais passional dos policiais, com direito a explorar os conflitos familiares de ambos, nada acrescenta ao tema principal da trama.  Será que não há filme que se sustente sem que apareça um par romântico improvável? 
Como se não bastasse, o filme ainda pretende tratar das relações de poder entre esse núcleo policial e seus superiores, roçando no preconceito e desvalorização que essa unidade sofre.  E, ainda, expõe os conflitos internos entre alguns dos membros da Brigada de Proteção ao Menor.  Em que pese a motivação que os une, a coesão grupal muito positiva, há grandes tensões e dificuldades que acabam alimentando problemas entre os seus integrantes.  Mas é coisa demais.

O modelo de múltiplos personagens e situações, tudo posto no mesmo caldeirão para ser mexido, só complica o roteiro e a narrativa.  É uma pena esse excesso.  Perde-se uma oportunidade de realizar um filme mais denso e focado sobre uma temática extremamente importante e um trabalho que merece mesmo ser registrado por meio da ficção e discutido.  O filme foi vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2011 e teve 13 indicações ao César 2012, o Oscar francês.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Ted




Tatiana Babadobulos

Ted (Ted). Estados Unidos, 2012. Direção e roteiro: Seth MacFarlane. Com: Mark Wahlberg, Mila Kunis e Seth MacFarlane. 106 minutos





Que crianças têm amigos imaginários, todo mundo sabe. E aceita. O assunto, aliás, pode ser melhor discutido por psicólogos, que talvez abordem temas como solidão, insegurança e por aí afora. A partir da adolescência, porém, esse tipo de coisa já passa a se tornar algo um tanto bizarro. Se o tal amigo imaginário, que é um urso de pelúcia, ganhar vida, então, aí que a situação fica totalmente sem pé nem cabeça.

Em tiras de quadrinhos, os personagens Calvin e Haroldo, respectivamente uma criança de seis anos e um tigre de pelúcia, fazem sucesso, ainda que o autor, o norte-americano Bill Watterson, não desenhe um quadrinho desde 31 de dezembro de 1995. A perspicácia do garoto, juntamente com o seu amigo imaginário, mexe com a imaginação dos leitores que os acompanham desde 1985.

No ano passado, Mel Gibson estrelou filme dirigido por Jodie Foster, “Um Novo Despertar“, no qual assume nova identidade e passa a se comunicar apenas através do boneco que encontrou no lixo.



O longa-metragem “Ted”, que chega aos cinemas nesta sexta-feira, 21, trata sobre um urso de pelúcia que ganha vida. A comédia se passa a partir de 1985, quando o garoto John Bennett (Mark Wahlberg), de apenas oito anos, que não tinha amigos no bairro onde morava, ganha de presente de Natal um urso de pelúcia. De cara, ele promete ao bicho que será seu amigo para sempre. No dia seguinte, como se o seu desejo virasse realidade, o urso ganha vida. Fala, anda e pensa.

Então, o brinquedo vira celebridade, mas promete nunca abandonar o amigo. Mesmo que o tempo passe, e o garoto John cresça, os dois continuam amigos. John arruma uma namorada, Lori Collins (a bela Mila Kunis, de “Cisne Negro“), e passam os três a morar juntos.

Aos 35 anos (em 2012, portanto), John continua dividindo as suas alegrias e tristezas com o ursinho, continua com um emprego mais ou menos, enquanto a sua namorada espera o pedido de casamento e tem uma carreira bem sucedida.

Apesar do tema tolo, a comédia de live action com animação por computação gráfica funciona e o tema não é nada infantil – a censura é de 16 anos.

Os dois, urso e rapaz, passam horas se drogando, saindo com mulheres, falando palavrão e fazendo referências à cultura pop, principalmente a dos anos 1980 e 1990, ora positiva, ora negativamente – há referências grotescas a gays e judeus, por exemplo. E é justamente nessas passagens que o humor fala mais alto e arranca gargalhadas da plateia.

Destaque para a participação da cantora Norah Jones e do ator que viveu o personagem Flash Gordon na televisão, Sam Jones. Há ainda referências à “Star Wars”, entre outros.



Criador da série “Family Guy”, o diretor Seth MacFarlane, em sua estreia no cinema, é também responsável pela produção do filme, e assina como coroteirista da fita, além de fazer a voz do urso.

“Ted” é um filme divertido e chega a surpreender o espectador, que vai ao cinema esperando que trata-se de uma película tola. O bom humor da fita supera as típicas comédias de Hollywood que entraram recentemente em cartaz.

Em tempo: Depois de levar o filho de 11 anos para assistir ao filme cuja censura é 16 anos, o deputado federal Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) disse que pretendia recorrer ao Ministério da Justiça para alterar a classificação para 18 anos. O ministro Eduardo Cardoso, porém, afirmou que não vai censurar o filme. "Mesmo se a legislação permitisse a censura, seríamos contrários a isso", disse Cardoso.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

EU TAMBÉM

Antonio Carlos Egypto

EU TAMBÉM (Ja tozhe hochu).  Rússia, 2012.  Direção e roteiro: Aleksey Balabanov.  Com Yrii Matveev, Alexander Mosin, Oleg Garkusha, Alisa Shitikovaz.  89 min.


Começa em São Paulo, no Cinesesc e no cine Olido, com entrada franca, o ótimo Festival Indie 2012, com 60 filmes contemporâneos de 18 países, incluindo as retrospectivas dos cineastas Aleksey Balabanov, da Rússia, Charles Burnett, dos Estados Unidos, e Kazuyoshi Kumakiri, do Japão.  Destaque também para os novos filmes de Apichatpong Weerasethakul e Brillante Mendoza.




O trabalho mais recente do diretor russo Aleksey Balabanov, recém exibido no último Festival de Veneza, é “Eu Também”, uma espécie de roadmovie da morte.  Dois amigos, Bandit e Matei, partem em busca de uma tal Torre do Sino da Felicidade, escondida entre as cidades de São Petersburgo e Uglich, próxima a uma usina nuclear abandonada.  Pode ser alcançada por meio de estradas vazias.  Um lugar contaminado por radiação, onde pessoas desaparecem.  Levam com eles o velho pai músico de Matei, que já não fala nem se expressa de forma perceptível.  Encontram pelo caminho uma prostituta desencantada com sua vida e um jovem vidente. É desses encontros e desencontros, alegoricamente mostrados, e dessa caminhada rumo ao fim que se constrói um filme forte, belo e totalmente desesperançado.

“Eu Também” nos mostra um cineasta que consegue extrair beleza da tragédia iminente, mas não faz qualquer concessão ao cinema comercial.  Pelo pessimismo evidente de sua trama, pela dureza das interpretações, pela morte que se apresenta quase a cada plano, pela completa ausência de alternativas possíveis ou pela escolha de um caminho sem volta por parte dos personagens, tudo leva a um beco sem saída.  Sufocante, mas também instigante.

A obra de Balabanov, que começou em 1991, estará sendo exibida ao longo do Festival Indie até 04 de outubro de 2012 e inclui uma variedade de gêneros e propostas.  Aborda pornografia, vícios, gangsterismo, colapso da União Soviética, a história do passado russo.  Há lugar até para melodrama romântico e comédia.  Vale conferir, já que, a julgar por esse seu trabalho mais recente, não haveria espaço para brincadeira no seu cinema.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

TUDO O QUE DESEJAMOS

Antonio Carlos Egypto




TUDO O QUE DESEJAMOS (Toutes nos envies).  França, 2011.  Direção: Philippe Lioret.  Com Vincent Lindon, Marie Gillain, Amandine Dewasmes, Yannick Renier.  120 min.


“Tudo o que desejamos”, o novo filme de Philippe Lioret, confirma as preocupações do diretor com questões humanas e sociais e a importância da legislação quanto a elas.  Em “Bem-Vindo”, de 2009 (ver crítica no “cinema com recheio”), a questão dos imigrantes ilegais na França recebeu uma abordagem sensível e humanista por parte do cineasta. 

Agora, há outras duas situações muito importantes, que são abordadas na trama de “Tudo o que desejamos”.  A primeira é aquela conhecida prática de instituições financeiras de oferecerem empréstimos a juros escorchantes, vendendo a ideia de facilidades e “gratuidades”.  O custo real do dinheiro aparece nos contratos com letras minúsculas, quase ilegíveis, enquanto o que parece atraente, o dinheiro fácil e salvador, está em destaque e é objeto de propaganda enganosa.

Claire (Marie Gillain) é juíza e com seu amigo também juiz, Stéphane (Vincent Lindon), a partir do endividamento de uma pessoa conhecida, Céline (Amandine Dewasmes), resolvem lutar juridicamente contra as instituições financeiras que adotam esses procedimentos.  Evidentemente, vão encontrar muitas dificuldades e um sistema que sustenta, na prática, tais expedientes abusivos.

O outro problema é o direito do paciente que tem uma doença terminal de questionar os procedimentos médicos e escolher se quer se submeter a eles ou não, se deve informar a familiares que poderão decidir por ele, se pode assumir as possibilidades de morrer antes, por desejar viver sua vida e realizar projetos imediatos até o seu fim.  Ou seja, trata-se do direito que o paciente tem de querer prolongar sua própria vida ou não, submetendo-se aos tratamentos médicos disponíveis, muitas vezes com consequências agressivas para ele.  A escolha entre morrer ou prolongar por algum tempo mais a própria vida deve pertencer exclusivamente ao doente ou sua família também deve decidir?  E se a decisão familiar for no sentido contrário à do paciente, como fica?


Isso já é assunto mais do que suficiente para um filme só, mas a trama de “Tudo o que desejamos” tem muitos outros elementos, a meu ver, inteiramente dispensáveis.  Um mesmo personagem circula no campo do Direito e é treinador de rugby.  Só para que haja uma cena em que o personagem escapa do hospital em que está, para se expor à noite a um empolgante jogo daquele esporte e observar o comportamento dos jogadores.

As relações familiares dos personagens envolvem o relacionamento com crianças de duas famílias.  Duas figuras masculinas disputam o poder e o afeto em relação a uma mulher.  Ou, melhor dizendo, dois tipos diferentes de expressão do comportamento masculino atendem a aspectos diversos da figura feminina em destaque.  Há o convívio de duas mulheres de classes sociais diferentes com o mesmo homem.  E o comportamento das crianças provenientes dessas classes convivendo no mesmo ambiente.

É muita coisa para ser explorada em tão pouco tempo.  Acaba atrapalhando mais do que ajudando a problemática principal abordada pelo filme: aquelas duas grandes questões que ele se propôs a mostrar e discutir.  Um filme com menos elementos narrativos, mais limpo e direto, teria sido mais eficiente para tratar daqueles temas.  Mas o diretor parece ter optado por um esquema novelesco para tentar atrair mais público ao cinema.


Apesar desse excesso de elementos, as questões principais são bem mostradas e seu tratamento dramático, apropriado.  Nem tudo convence, há coincidências e simultaneidades que poderiam ter sido evitadas, mas o bom desempenho dos atores chega a compensar isso.  E, principalmente, a abordagem sensível e humanista, que, a esta altura, já é uma marca de Philippe Lioret.  Essa contribuição que ele dá ao cinema contemporâneo é digna de elogios.  Colabora, de forma efetiva, para que questões sociais e seus correspondentes legais sejam postos em debate e enfrentados.





quinta-feira, 13 de setembro de 2012

TROPICÁLIA

  Antonio Carlos Egypto

TROPICÁLIA. Brasil, 2011.  Direção: Marcelo Machado.  Documentário.  82 min.
O movimento denominado Tropicalismo, na Música Popular Brasileira, foi uma explosão de talento, criatividade e contestação, como não se via há pelo menos 10 anos, ou seja, desde a Bossa Nova.  Marcado agora por um contexto político altamente repressor, que suprimia não só as liberdades democráticas, mas também o direito dos jovens de usufruir dos ventos de mudança nos comportamentos, que o mundo ocidental compartilhava.
Um movimento que reúne criadores do porte de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Tom Zé, Gal Costa, os Mutantes, Jorge Benjor e Nara Leão, entre outros, não poderia mesmo ser menos do que revolucionário.  Ainda mais se considerarmos que essa trupe toda estava no auge da juventude e acuada por um regime político que não lhe possibilitava viver o desbunde que marcava o seu tempo.

Era hora de sacudir a poeira, mudar o rumo das coisas.  Repensar a estética, a política, a cultura, a história.  Não era um movimento só musical, como procura demonstrar o documentário “Tropicália”, de Marcelo Machado.  Começa por mostrar que Tropicália tem origem na instalação do arquiteto Hélio Oiticica.  Destaca a poesia concreta, o cinema de Glauber Rocha, Cacá Diegues, Rogério Sganzerla, de “O Bandido da Luz Vermelha”, e outros, o teatro Oficina, de Zé Celso e “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade.  Tinha também Chacrinha “balançando a pança e dominando a massa”, na TV.  Tropicália era uma grande ideia, maior do que o movimento tropicalista na música. 
O Tropicalismo mexeu com o país num período curto, que começa no Festival da  Record, em 1967, com “Domingo no Parque”, de Gil, e “Alegria, Alegria”, de Caetano, se firma no disco-manifesto, de produção coletiva, “Tropicália ou Panis et Circenses”, em 1968, e acaba no fim desse mesmo ano, quando Gil e Caetano são presos, confinados em Salvador e, então, forçados a deixar o país.  Ou, como avaliam outros, indo até 1972.  Ou, ainda, fincando bases de criação e avaliação artística que permanecem até hoje.

Emblemática é a gravação feita por Caetano Veloso de “Coração Materno”, ultracafona e escancaradamente dramática e apelativa canção lançada por Vicente Celestino, seu autor, em 1951.  Símbolo do mau gosto, virou cult, na impecável interpretação de Caetano.  Depois disso, não havia mais nada a questionar.  Tudo era possível, aceitável, e podia ter valor artístico.  Era uma forma de resgatar a história da música brasileira, que ficara no limbo desde a Bossa Nova, com exceção de compositores como Ary Barroso e Dorival Caymmi.  E integrar a música latino-americana cantada em espanhol ao rock dos Beatles e Rolling Stones e à música norte-americana.  Onde tudo era proibido, foi uma forma de seguir o lema geral da era hippie “É Proibido Proibir”, ao som das guitarras, roupas extravagantes e multicoloridas, cabelos longos e enormes, drogas e liberação sexual, sempre que possível.  Além de uma investida na rigidez dos padrões de gênero, embaralhando o que é coisa de homem ou de mulher, tanto na aparência quanto nas atitudes.  Não era pouca coisa.

O resgate da Tropicália que o filme faz por meio de farto, e até inédito, material de arquivo, da música e das artes do período, inclui imagens que surpreendem até Gil e Caetano, quando colocados hoje diante delas.  As imagens mereceram um tratamento gráfico, que vai do simples lápis de cor aos adornos psicodélicos, combinando com o espírito da época e com aquilo que é mostrado sobre o Tropicalismo.  Excelente documentário, que merece ser visto e revisto, principalmente pelas músicas espetaculares que se produziram naquele período, incluindo-se as canções feitas já no exílio londrino de Caetano e Gil.  Há uma passagem por Portugal, também lembrada no filme, com direito a ver Raul Solnado, o grande humorista português, entrevistando Caetano e Gil na TV, logo na abertura.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

INTOCÁVEIS

Antonio Carlos Egypto

INTOCÁVEIS (Intouchables).  França, 2011.  Direção: Eric Toledano e Oliver Nakache.  Com François Clouzet, Omar Sy, Anne Le Ny, Audrey Fleurot.  112 min.
“Intocáveis”, novo sucesso de público do cinema francês, é uma comédia leve sobre um tema complicado: a vida de um tetraplégico que, embora riquíssimo, depende de outros para tudo.  O filme nos informa que ele é baseado em fatos de uma história real.  E que história é essa?  A do relacionamento entre Philippe (François Clouzet) e Driss (Omar Sy), seu cuidador.
Philippe é um homem culto, que foi aventureiro, mas em função do acidente que o deixou tetraplético, tem uma vida limitada por uma rotina de luxos, mas tediosa.  Apreciador de artes plásticas, clássicas ou contemporâneas, e música erudita, é um aristocrata inteligente e, apesar de tudo, bem humorado, em grande parte do tempo.
Driss é um homem forte, pobre e de parca educação, que vive do seguro-desemprego.  Tem uma família enorme, que se acotovela num cortiço.  Curte música pop, dança muito bem.  Pequenas malandragens ou um eventual furto o ajudam a sobreviver.  Além dos cigarrinhos de maconha que, certamente, contribuem para que ele se mantenha sempre alegre, apesar das poucas perspectivas que sua vida tem lhe oferecido.

Que Driss, sem qualquer preparo para isso, acabe sendo o escolhido por Philippe para contratá-lo como seu cuidador é uma surpresa.  Que isso possa dar certo, uma improbabilidade.  É do encontro entre esses dois mundos distintos que trata o filme.  Os inevitáveis confrontos e conflitos acabam sendo explorados em situações divertidas.  O que poderá uni-los será exposto também de forma cômica, mas com muita ternura.  Esse amálgama é o que faz o filme atraente para um público amplo.  Saber tratar com humor as diferenças, assim como as dores e tristezas, mantendo a sutileza, é um mérito a ser destacado.
A história não tem nada de original, inclui até alguns clichês, mas tem um ângulo de abordagem que me parece particularmente valioso.  Uma pessoa com deficiência certamente não deve gostar de ser tratada com comiseração, condescendência ou bajulação.  Nem pode se relacionar genuinamente com alguém que não a considere e trate em igualdade de condições, embora sem negar as limitações que ela possui.  Uma amizade só pode nascer da espontaneidade no tratamento, no respeito às diferenças e na descoberta mútua do outro, na vivência da alteridade.  É isso o mais interessante do filme, além do duo de atores protagonistas, que é especialmente talentoso.

François Clouzet no papel de Philippe conta apenas com o rosto, para desenvolver o seu trabalho.  E faz uma atuação brilhante, cheia de nuances, que vale o filme.  Omar Sy é também um grande ator, vibrante, elétrico, simpático.  Dá um brilho especial ao seu papel.  Vê-lo em cena é empolgante.  Com atores como esses, o filme ganha um charme todo especial, que cativa o espectador e faz com que nem se note sua narrativa um tanto convencional e previsível.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

CARA OU COROA

 Antonio Carlos Egypto

CARA OU COROA, Brasil, 2011.  Direção: Ugo Giorgetti.  Com Emílio de Mello, Júlia Ianina, Geraldo Rodrigues, Otávio Augusto, Walmor Chagas.  110 min.


No Brasil 1971, vivíamos a ditadura militar em plena vigência do Ato Institucional nº 5, o golpe dentro do golpe.  Governo Médici.  Censura, perseguições políticas, prisões e desaparecimentos, tortura.  Ser jovem naquele tempo implicava viver de forma arriscada, com uma pitada de heroísmo. 
“Cara ou Coroa”, de Ugo Giorgetti, focaliza essa juventude no meio teatral.  O teatro, como todas as artes: a música, o cinema, a dança, as artes plásticas, tinha de ser uma arte de resistência.  Era sua razão de ser e existir naquele período.  Era também um caminho de inovação, incorporando os novos ventos libertadores que o mundo podia se permitir, mas não por aqui.  Cabelos compridos, roupas extravagantes, rock, drogas e o corpo se expressando no palco, já representavam grandes conquistas.  Tudo valia para passar a mensagem cifrada pela liberdade e democracia.  Ou pela revolução socialista.  E contra o conservadorismo nos costumes e na moral.


João Pedro e seu irmão Getúlio estão nesse meio teatral e têm vínculos com o Partido Comunista.  O pai deles é taxista e anticomunista.  Lilian, namorada de Getúlio, é neta de um general do exército, já na reserva.  Com esses personagens, “Cara ou Coroa” recria aquela época em que sobreviver era um tanto complicado e se omitir, um pecado grave.  O que era possível fazer: circular notícias proibidas, ir em busca de um jornal alternativo, ajudá-lo a existir, assinar manifestos, entregar uma carta a um parente de exilado, cantar as músicas da MPB proibidas, participar dos festivais, vaiando ou aplaudindo, curtir e discutir o cinema novo, o teatro de resistência, e, talvez, abrigar alguém que esteja sendo perseguido em algum lugar, por alguns dias.  Essas coisas dariam sentido à existência para jovens que pretendiam lutar contra a ditadura.  O movimento estudantil, as passeatas, a esta altura, eram fortemente reprimidos. A luta política estava na clandestinidade.  E a luta armada era a opção mais radical e destrutiva.



Ler “O Pasquim” ou “O Movimento”, cantar as músicas provocadoras do Chico Buarque ou dos tropicalistas, apoiar o Living Theater em passagem pelo Brasil, que também teve seus integrantes presos, essas coisas também eram importantes de se fazer. 
Abrigar pessoas perseguidas em casa exigia uma dose de coragem bem maior.  Esse será o desafio que se imporá aos personagens do filme, simbolizando essa época de chumbo, de cuja lembrança, curiosamente, “Cara ou Coroa” tem nostalgia.  Era dura, mas era bonito, porque éramos jovens e belos.
Não sei se compartilho disso, não.  Visto hoje, retrospectivamente, pode parecer assim, para quem não morreu, não ficou lesado, física ou psiquicamente.  Para quem pegou mais leve nessa resistência, por certo.  Ou teve mais sorte.


O fato é que, em busca da reconstrução desse período, por meio desses personagens jovens ligados ao teatro, o filme traz à lembrança um número grande de referências que marcaram esse momento histórico.  Os cartazes das peças de teatro que se destacaram, os anúncios e produtos da época, os fusquinhas que dominavam o mundo dos automóveis, as ruas, o interior das casas, os eletrodomésticos, os programas de TV, está tudo lá.  A saudade de um período duro, mas que tinha seu charme, especialmente no idealismo e na generosidade dos jovens.  É um olhar mais intimista sobre um período marcadamente político, ideológico e violento da nossa história.

sábado, 1 de setembro de 2012

CINEMA ESPANHOL DOS ANOS 1950

                     
Antonio Carlos Egypto

Uma mostra em São Paulo, de 03 a 09 de setembro de 2012, no MIS – Museu da Imagem e do Som, chamada “Realismo no Cinema Espanhol”, vai exibir filmes dos anos 1950, quase todos inéditos no circuito comercial cinematográfico.
O cinema espanhol do período do pós-guerra estava marcado pela Guerra Civil Espanhola que dividiu irremediavelmente o país e produziu o atraso e o obscurantismo do regime de Franco, pelo isolacionismo do país após a Segunda Guerra e a tentativa de se reerguer, aproximando-se pragmaticamente dos Estados Unidos, pela via do combate ao comunismo soviético vitorioso.  Se inspirava no modelo neorrealista do cinema italiano, de caráter social, mas tinha de conviver com a censura do regime franquista.  Produziu um cinema criativo que pouco conhecemos.  Vejamos alguns destaques dessa mostra.


BEM-VINDO, MR. MARSHALL (Bienvenido, Mr. Marshall), filme de 1953.  Direção: Luis García Berlanga.  Com Lolita Sevilla, Manolo Morán, José Ibert e voz de Fernando Rey.  95 min.
No pequeno povoado de Vilar del Río, onde nunca acontece nada, a esperança vem da visita dos norte-americanos do Plano Marshall, de ajuda à Europa, que se reconstruía após a Segunda Guerra Mundial.
A expectativa pela passagem dos americanos levanta a comunidade, produz desejos, gera medos, rivalidades e dívidas, mas aumenta a autoestima do povo.  Enfim, transforma as pessoas.
Um roteiro muito bem construído produz uma comédia inteligente e original.  Quem viu “O Banheiro do Papa”, de 2007, vai se surpreender com as semelhanças.  Terá sido a inspiração desse ótimo filme uruguaio recente, de coprodução brasileira ?


MORTE DE UM CICLISTA (Muerte de un ciclista), filme de 1955.  Direção de Juan Antonio Bardem.  Com Lúcia Bosé e Alberto Closas.  88 min.
Um casal de amantes atropela e mata um ciclista na estrada, sem prestar socorro, para evitar que seu romance extraconjugal fique evidenciado.  Mas as consequências dessa decisão marcarão para sempre a vida de ambos, sobretudo a vida interior, os sentimentos, a culpa, que se projetará em tudo o que acontece com eles.  Um melodrama denso e consistente, que escapa da mera visão moralista e gera reflexão, produzindo imagens fortes que destacam o mundo psíquico dos personagens.


Além desses e outros, inéditos, há ainda a chance de ver no cinema o brilhante VIRIDIANA, de Luís Buñuel, produção espanhola e mexicana, já de 1961, que existe em DVD, mas há muito não se vê na telona.  A corrosiva visão buñueliana da tragédia que pode resultar de uma caridade cristã politicamente ingênua deu origem a um filme notável, absolutamente inesquecível.  Palma de Ouro em Cannes e, obviamente, proibido de ser exibido na Espanha durante todo o regime franquista.