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sexta-feira, 25 de abril de 2014

TSAI MING LIANG E CÃES ERRANTES


Antonio Carlos Egypto

Tsai Ming Liang


CÃES ERRANTES (Jiao You).  Taiwan, 2013.  Direção: Tsai Ming Liang.  Com Lee Kang Sheng, Yang Kuei Mei, Lu Yi Ching.  138 min.


O trabalho do cineasta Tsai Ming Liang reflete com originalidade o mal estar da vida contemporânea nas grandes cidades.  Ele nasceu na Malásia, mas fez toda a sua carreira como realizador na China, em Taiwan.  Faz um cinema que tira o espectador do confortável, do conhecido.  Para começar, não conta histórias, mostra personagens que vagueiam pelos espaços urbanos em busca de algo que eles mesmos parecem desconhecer.

Os seres humanos estão perdidos e incomunicáveis, vivendo uma angústia existencial digna dos grandes filmes de Michelangelo Antonioni (1912-2007), inspirador confesso do diretor malaio.  Sentem-se inadaptados em seu ambiente de vida, ignorados, invisíveis, excluídos.  Não costuma haver encontros, embora possa surgir alguma afetividade e a perspectiva de busca do desejo sexual e do amor, que, no entanto, parecem ora distantes, ora insatisfatórios.




Há incomunicabilidade, o que se reflete na quase ausência de diálogos, como acontece na maior parte do tempo nos filmes de Tsai Ming Liang.  Também não há emocionalidade, é tudo austero, seco.  Numa palavra, minimalista.  Mas essa economia de meios de expressão pode, subitamente, dar lugar a uma performance kitsch, um grito lancinante de dor, um excesso visual.  Com isso se produz estranhamento, o que só reforça o mal estar que está sendo mostrado.

Além disso, Tsai Ming Liang tem uma constante obsessão com a água, que inunda casas, locais de repouso ou trabalho das pessoas, pode estar contaminada, chover torrencialmente ou, por outra, estar em falta.  Como ele mesmo diz : “ ... quanto mais água você vê em meus filmes, mais os personagens precisam preencher o vazio em suas vidas, para hidratá-las novamente ... A água representa uma força que invade, que destrói a família” (catálogo da retrospectiva do cineasta, em mostra do Centro Cultural do Banco do Brasil, 2010).



Longuíssimos planos, em que não há ação evidente, são outra característica do trabalho do diretor.  Em “Cães Errantes”, ele torna essa experiência contemplativa habitual em experimento radical.  Há uma cena estática, que se estende por intermináveis treze minutos ao final do filme.  Como a nos dizer que o cinema acabou.  Ou terá acabado para ele.

Não é exatamente uma ideia nova no seu trabalho.  Em um de seus filmes, “Adeus, Dragon Inn”, de 2003, o cenário básico é uma grande sala de cinema decadente e abandonada, por onde circulam personagens que não se relacionam com o filme que está sendo exibido, mas com a sala de cinema que está morrendo por falta de público.




“Cães Errantes”, como o conjunto de sua obra, aborda a temática das relações familiares inexistentes ou desgastadas, a falta de perspectivas e também a miséria na grande cidade, que desconhece os dramas humanos que nela estão inseridos.  Há os cães do título, naturalmente.  Rios, matas e ruas chuvosas compõem o ambiente.  Na cidade, circula, por exemplo, um outdoor humano que vende apartamentos de luxo.  Uma cena que os habitantes de São Paulo ou do Rio conhecem muito bem.  Não será preciso contextualizar Taipei como local.

O cinema de Tsai Ming Liang é assim: universal no registro de uma situação que, aparentemente, seria específica, não só do ambiente cultural a que ele pertence, mas até dos elementos da sua experiência pessoal.  Comprovação do talento e perspicácia do realizador.



Para quem não conhece o cineasta, “Cães Errantes” não seria uma boa introdução ao seu cinema, já que ele radicaliza alguns elementos, o que tende a afastar o espectador desavisado.  No entanto, é difícil indicar outro caminho dessa iniciação por meio do cinema.  Seus filmes não costumam ser exibidos regularmente, pelo caráter nada comercial de um trabalho que não faz concessões.  Não há outra opção em DVD que não seja o filme “O Sabor da Melancia”, de 2005, em que ele explora o universo da pornografia em meio a uma crise de água.  O resto é garimpar pela Internet à procura de filmes como “O Rio”, de 1997, (que chegou a ser lançado em VHS), “Vive L’Amour”, de 1994, “O Buraco”, de 1998, ou o já citado “Adeus, Dragon Inn”.  São exemplos de filmes em que se pode adentrar no universo Tsai Ming Liang com um pouco menos de esforço e usufruir da qualidade de seu cinema criativo e experimental.  Ou preparar-se para a jornada cinematográfica de “Cães Errantes”, que, apesar de radical, vale a pena.


sábado, 23 de novembro de 2013

A IMAGEM QUE FALTA

                        
Antonio Carlos Egypto



A IMAGEM QUE FALTA (L’Image Manquante).  Camboja, França, 2013.  Direção de Rithy Panh.  Documentário. 95 min.


Rithy Panh viveu na infância uma história tão absurda quanto trágica, quando teve toda a sua família dizimada pela perseguição, pela fome e pela separação de seus membros, durante o regime do Khmer Vermelho, no Camboja, entre 1975 e 1979.  Sobrevivente dessa opressão, foi viver fora do país, se tornou cineasta e seu cinema se pauta, principalmente, pelo resgate da memória daquele período histórico.  O regime, que foi capitaneado por Pol Pot, acabou virando um tabu no país, do qual ninguém fala, nem quer se lembrar.  Romper esse tabu, revirar e mexer nessas memórias, tanto as pessoais quanto as que podem ser provocadas por uma câmera que perscruta quem viveu tudo aquilo, como algoz ou vítima, é seu principal objetivo cinematográfico.

Embora militante dessa causa de explodir o tabu cambojano do Khmer Vermelho, Rithy Panh não faz um cinema de pregação ou propaganda.  Apesar de tudo o que viveu, ainda consegue ser sutil, ao mexer nesse vespeiro, que envergonha as pessoas que seguem vivas.  E registra que o Camboja foi uma subjugada colônia francesa, fazia parte da Indochina, enfrentou esse regime dito comunista do Khmer Vermelho, incompetente e delirante, mas vive hoje na mesma miséria e exploração humanas de sempre, num mundo capitalista que segue oprimindo por outros meios, perpetuando a pobreza e a miséria.



Nada se compara, é claro, ao genocídio que o Camboja viveu naqueles quatro anos da década de 1970.  Um país que tinha sete milhões de habitantes viu morrer quase dois milhões de pessoas.  Perseguidos e executados como inimigos do povo, por razões ideológicas ou por qualquer tipo de resistência a uma vida insustentável.  A maioria, porém, morreu mesmo de fome.  Não poderia sobreviver a uma política de trabalhos agrícolas forçados, de sol a sol, em busca de metas impossíveis, dependendo de uma ração de arroz cada vez mais reduzida para sobreviver.  Tudo em nome da coletivização da produção para um país que deveria, segundo seus dirigentes da época, se tornar puramente agrícola, só de camponeses e políticos.  O pai do cineasta foi o primeiro a morrer na família, de fome, por decisão própria, rejeitando a situação em que estava colocado.  O que tornou ainda pior a vida dos que ficaram.



Tudo isso fica muito evidente no filme “A Imagem que Falta”, em que Rithy Panh relata na primeira pessoa, sem que sua imagem apareça, suas memórias de infância.  Sua fala em off vai narrando a sua história.  O problema é encontrar imagens para reconstruí-la.  Não há.  O país mudou, está diferente.  O que restou de imagens daquele regime é quase sempre filme de propaganda, idealizando os avanços, com slogans ideológicos e uma postura equivocadamente patriótica.  Pode-se ver o artificialismo e a falsidade daquela publicidade, mas não basta. 

É aí que o filme de Rithy Panh inova.  Ele procurou artistas que reconstruíssem os locais, os animais e as pessoas das suas lembranças e montou as cenas todas com figuras de argila que povoam o filme do começo ao fim, entremeadas por filmes e fotos do período, aquilo que foi possível juntar.  Embora tendo partido de um livro, “A Eliminação”, de Christophe Bataille, é da sua experiência particular que se trata.  São as suas imagens criadas por meio da argila que formam a composição do filme.  Segundo o cineasta, “não é a imagem final, nem a busca de uma única imagem, mas a imagem objetiva de uma busca: a busca que o cinema permite”.



Quem viveu tal experiência, ainda que se afaste e conquiste novos rumos, nunca poderá esquecer o que viveu.  É preciso voltar às origens, para poder elaborar uma perda tão brutal, que vai das pessoas afetivamente mais importantes na vida à própria identidade nacional.  Com uma mensagem tão impactante pelo próprio testemunho pessoal, era preciso encontrar o meio, a imagem para transmiti-la.  Ele não poderia ter encontrado melhor forma do que a dos bonecos de argila, que realizam o que ele buscou e suavizam a barbárie, tornando-a mais assimilável.  A reação que produz no espectador é de interesse e de ouvir o que o cineasta tem a dizer e não de rejeição, como poderia acontecer se o filme carregasse em imagens violentas.  Um brilhante trabalho que recebeu o prêmio Um Certo Olhar, no Festival de Cannes 2013. 

“A Imagem que Falta” fez parte de uma mostra do cinema do diretor cambojano, realizada pelo Centro Cultural do Banco do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro.  Pude conhecer um pouco mais da obra de Rithy Panh, vendo outros dois filmes dessa mostra.  “Uma Barragem Contra o Pacífico”, de 2008, que, por meio de romance de Marguerite Duras, retrata a história de uma viúva francesa, vivendo com seus dois filhos na Indochina colonial, que vê suas terras serem inundadas pelo mar, comprometendo a produção do arroz.  Daí a necessidade da barragem que dá título ao filme.  É uma bela ficção, com Isabelle Huppert no elenco.



Vi, ainda, “Os Artistas do Teatro Queimado”, de 2005, que mostra o Camboja como uma terra de sonhos destruídos.  O teatro Suramet, de Phnom Penh, capital do país, foi construído em 1966 e devastado por um incêndio acidental, em 1994.  Ficou como estava, arruinado, mostrando o descaso atual com a cultura no país.  Só que um grupo de atores e atrizes vive lá assim mesmo, ensaia e faz apresentações precárias para turistas.  Só muito amor à arte e a experiência de viver com tão pouco podem explicar isso.  Mas tudo bem, na falta de comida, eles comem os morcegos que habitam o local.

O cineasta do Camboja, Rithy Panh, é um grande realizador cinematográfico dos nossos dias.  Só lamentei não ter tido a oportunidade de ver os outros filmes dele que foram exibidos nessa mostra.


terça-feira, 29 de outubro de 2013

CINEMA GREGO

                       
Antonio Carlos Egypto


É fato sabido que as crises econômicas, os regimes políticos totalitários, a censura, as guerras, estimulam a criatividade artística.  Grandes expressões da arte resultaram de momentos de crise, em sentido coletivo, mas, também, individual.  Crises existenciais são geradoras de grandes obras.

Já que a crise é também oportunidade de rever, repensar, ressignificar, buscar alternativas, o que se poderia esperar da produção cinematográfica do país que foi mais abalado, na comunidade europeia, pela crise do euro?

Miss Violence

A Grécia, para começo de conversa, veio para a 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com um número expressivo de títulos, colhidos nos festivais pelo mundo.  Uma presença bem mais significativa do que habitualmente acontecia no evento paulistano.  E, a julgar pelos cinco filmes que vi, veio com força e qualidade.

O melhor deles, para mim, foi “Miss Violence”, segundo longa-metragem dirigido por Alexandros Avranas, vencedor do Leão de Prata de direção e melhor ator em Veneza.  O filme, corajosamente, expõe a violência, o abuso e a prostituição forçada das mulheres de uma família, em suas várias gerações, e todas as consequências trágicas que daí resultam, com total realismo e procurando produzir suspense.  A crise está presente no desemprego e na dificuldade de sobreviver que agravam o quadro ou, por outro lado, servem para tentar justificar ou validar a monstruosidade apresentada.

A outra leitura é possível, esta alegórica da situação, se olharmos para a família como representante da sociedade como um todo.  A carência alimenta a opressão, o estupro, a exploração das pessoas e da mãe-pátria.  Também faz sentido.  E uma coisa não exclui a outra.  Ao tratar do tema da exploração sexual da mulher, o contexto subjacente é o da crise social e moral em que se vive na sociedade grega atual.  Mais difícil de aceitar é a visão de uma patologia individual determinando os fatos.  Há um eloquente sentido de opressão coletiva, que se evidencia no desenrolar da trama e nas interpretações do elenco.

Todos os Gatos São Brilhantes

A crise da sociedade grega é muito mais evidente no filme “Todos os Gatos São Brilhantes”, da cineasta novata Constantina Voulgaris.  Ali, uma artista tenta ganhar a vida como baby sitter, seu namorado ativista, convicto e radical, vai preso e se recusa a compactuar com o regime que ele sente que oprime o povo.  Há black blocs pelas ruas e todo um clima político em que os jovens têm dificuldade para encontrar seu lugar no país, e se puderem saem dele.  Mas para onde, se a crise está por todos os lados, pelo menos para qualquer lado das fronteiras que se olhe?  Em tempo: no filme não há gatos nem brilho.  Mas a fita flui bem, é expressiva desses tempos difíceis.

O Garoto que Come Alpiste

“O Garoto que Come Alpiste”, outro primeiro longa, desta vez do diretor Ektoras Lygizos, é uma experiência mais radical.  É um filme sobre a fome, a impossibilidade de trabalhar e obter dinheiro, ainda que seja pouco, vividos por um jovem de 22 anos, cantor lírico, em Atenas.  Embora baseado em texto literário antigo, a experiência do jovem remete, em tudo, à crise atual.  Mostrado em situação limite, e fechada, sem saídas, com direito a cenas de grande impacto e tudo o mais, o filme é um soco no estômago.  Vazio, ainda por cima.

“Patos Selvagens”, mais um primeiro longa, desta vez de Yannis Sakardis, trata de um tema mais específico. A ganância capitalista na área das telecomunicações, mesmo sabendo que pode produzir doenças graves nas pessoas, mantém seus comportamentos e abafa qualquer denúncia para garantir seus lucros.  A solução, segundo o filme, é uma só: as pessoas se unirem para resistir.  Nisto está sintonizado com o sentimento coletivo do país.  Resistir a isso, e a tudo o que coloca a cidadania de quatro, nessa crise.

Patos Selvagens

O quinto e último filme grego que pude ver nesta Mostra refere-se a uma outra dimensão.  “Meteora” vai em busca de monastérios ortodoxos situados acima de pilares de arenito, suspensos entre o céu e a terra, conforme explica a sinopse que consta do catálogo da Mostra.  Aqui, o que se vai viver é a relação entre a fé, o afeto e o desejo sexual humanos, presentes nas figuras de um casal de religiosos.  Mesmo separados em duas montanhas de pedras diferentes, uma para cada sexo, e uma escadaria interminável para galgá-las, haverá modos de se encontrar e viver essa história de amor.

Meteora

“Meteora” é o segundo longa do diretor Spiros Stathoupoulos.  É o filme mais bonito visualmente dessa leva de gregos.  Tem locações belíssimas, um clima que o situa fora do mundo real e uma muito eficiente atuação do desenho de animação, que se insere ao longo de toda a trama, pontuando o imaginário, o temido e o desejado. O fato de se distanciar tanto da realidade atual da Grécia não significa, no entanto, que não dialogue com ela.  A busca da beleza, do amor e da fé, não deixa de ser um caminho alternativo, idealizado, quando o mundo real parece tão duro de enfrentar.

Vistos no conjunto, esses filmes gregos de novos diretores mostram que está germinando um novo cinema por lá.  Ninguém espere a sofisticação e a estética maravilhosa do mestre grego do cinema, Theo Angelopoulos (1936—2012), é claro.  Mas nem é possível, mesmo, exigir tanto de jovens cineastas.  Que o cinema grego atual mostra talento, não há dúvida.  Isso é muito promissor. 



terça-feira, 4 de outubro de 2011

BÉLA TARR – UM CINEASTA RADICAL

Antonio Carlos Egypto



Béla Tarr é um cineasta húngaro, nascido em 1955, que tem um trabalho autoral rigoroso e radical. Uma retrospectiva de sua obra foi exibida em São Paulo, na Mostra de Cinema Independente INDIE 2011, e poderá ser vista no Festival do Rio 2011, com a presença do diretor.

A oportunidade de ver seus filmes de forma concentrada, por um lado, enriquece a percepção de um trabalho artístico denso, esteticamente notável. Por outro lado, é uma proposta exigente para o espectador: é um cinema lento, que demanda concentração e uma atitude contemplativa. Seu cinema é feito de longos planos sequência, com muitas repetições de atos silenciosos e brigas ou desentendimentos verbais, onde as palavras e expressões de ofensa ou mágoa também se repetem muito. É um trabalho artístico, que põe sua beleza a serviço de uma visão desesperançada do mundo.

Para quem nunca viu um filme de Béla Tarr, o que escrevi até agora pode assustar ou desestimular o interesse por seu cinema. Sim, é um cinema sofrido, porém, desafiador, capaz de nos transportar a universos e situações em que mergulhamos tão intensamente que saímos da experiência tocados por sensações e sentimentos fortes, mas que nos levam a refletir sobre o que vivenciamos ali.


O Cavalo de Turim

O CAVALO DE TURIM (WA Torinói Ló). Hungria, 2011. Direção e roteiro: Béla Tarr. Com János Derzsi, Erika Bók, Mihály Kormos. 146 min.

O mais recente filme do diretor, concluído em 2011 e agraciado com o Urso de Prata do Festival de Berlim, é “O Cavalo de Turim”, que o cineasta afirma que deve ser sua última produção cinematográfica. Uma pena, se essa intenção se confirmar.

No texto de abertura do filme lê-se o seguinte: “Em Turim, em 03 de janeiro de 1889, Friedrich Nietzsche sai do imóvel da Via Carlo Albert, número 6. Não muito longe dali, o condutor de uma carruagem de aluguel está tendo problemas com um cavalo teimoso. O cavalo se recusa a sair do lugar, o que faz com que o condutor, apressado, perca a paciência e comece a chicoteá-lo. Nietzsche aparece no meio da multidão e põe fim à cena brutal, abraçando o pescoço do animal, em prantos. De volta à sua casa, Nietzsche então permanece imóvel e em silêncio, durante dois dias, estendido em um sofá, até que pronuncia as definitivas palavras finais (“mãe, eu sou um idiota”) e vive por mais dez anos, mudo e demente, sendo cuidado por sua mãe e suas irmãs. Não se sabe que fim levou o cavalo.”
O filme passa, então, a mostrar a vida de um condutor de uma carroça, de sua filha e do cavalo. Não há qualquer referência a Nietzsche, além do texto inicial. “O Cavalo de Turim”, na realidade, nos mostra a vida miserável desses personagens, numa habitação do século XIX. Os únicos pertences são uns poucos móveis rústicos, alguma roupa, lenha, fogão, água e batatas.

Fora da casa, um poço que provê a água e o estábulo, com o cavalo e a carroça. Passamos a viver intensamente o cotidiano dessa casa, onde os movimentos e os gestos se repetem, quase nada se fala e um vento forte e permanente aparece quando se sai da casa, se abre a porta ou se olha pela janela.





A paisagem externa é desoladora, assim como o interior da casa. Se não existisse uma reserva de batatas, a fome se imporia de forma absoluta. Ou se o poço um dia secar...

As imagens em preto e branco, os enquadramentos perfeitos, mas quase imutáveis e a rotina minimalista dos personagens, captadas por meio de planos sequência longuíssimos, conseguem nos transportar para a vida no limite da fome e da morte, em pleno final do século XIX.

Os poucos elementos em cena são também essenciais para a obtenção desse efeito. Estamos em outra época, em outro mundo. No entanto, nos deparamos com uma questão que permanentemente tem desafiado a existência humana em todas as épocas: a erradicação da miséria. Impossível não se sensibilizar para essa questão, após assistir a “O Cavalo de Turim”.

O símbolo do cavalo é também muito bem explorado, desde a sua movimentação intensa, no início do filme, até sua paralisia completa, em que ele prenuncia e como que escolhe seu fim.

Uma obra de arte soberba, extremamente sofrida, difícil mesmo de assistir. Mas uma obra maiúscula. Radical em todos os sentidos. Será lançada comercialmente nos cinemas? Espero que sim. De qualquer modo, atingirá um público reduzido, que terá condições de apreciar tal experiência cinematográfica. Os que entrarem no cinema desavisados ou serão tocados fortemente pelo filme, ou se ausentarão antes do seu final. Experimentos radicais geralmente produzem respostas de amor intenso ou ódio profundo. Não é assim?

Os outros filmes

“Ninho familiar”, de 1977, o primeiro longa de Béla Tarr e “Pessoas pré-fabricadas”, de 1982, têm em comum a discussão da vida, num regime planificado, centralizador e opressor, como foi a Hungria no período comunista ou do chamado socialismo real. Nesse sentido, são filmes datados. Tratam, por exemplo, da seriíssima questão das moradias. A ausência de um espaço para viver ou a aglomeração de pessoas em pequenos apartamentos gera angústia, discórdia, desentendimentos de todo tipo. A opressão que essa situação traz é mostrada, geralmente, com a câmera na mão e os atores focalizados muito de perto, sem espaço para o respiro. A sensação é aquela que a gente tem quando alguém chega muito perto, invadindo nosso espaço, e nos faz afastar-nos dessa pessoa. “Ninho familiar” se centra nisso e na repetição verbal exacerbada do quanto é importante ter um espaço próprio de moradia, mínimo e decente.

“Pessoas pré-fabricadas” enfoca mais os desentendimentos no casamento, em função de que a vida, as casas e os empregos são planejados e resolvidos pelo Estado, sendo as pessoas joguetes nesse processo. Se digladiam, se ofendem, brigam, fazem escândalos e não são donas de seus destinos. As duas películas são filmadas em preto e branco.

“Almanaque de Outono”, de 1984, é um filme colorido. Aqui se exploram as tonalidades cinza-azuladas e vermelho-alaranjadas, num espaço agora grande, onde vivem mãe, filho e mais três pessoas que, embora se conheçam e se relacionem, estão em conflito permanente. Brigam, discutem, se acusam, se atacam em jogos de poder violentos e desproporcionais. As relações se esgarçam, se desgastam, a confiança se quebra. Um clima hostil, cheio de medos e obsessões, que remete aos filmes de Bergman.

Dentre os principais filmes dele não vi “Maldição”, de 1987, nem o famoso “Satantango”, de 1994, um filme com 7 horas e meia de duração, que, no Festival INDIE foi exibido no Cinesesc, das 21:30 às 5:30 h, com intervalos. Para mim, seria demais todo esse tempo para ver um panorama amplo do fim do comunismo na Europa Oriental. Quem viu, garante que vale a pena.




“Harmonias de Werckmeister”, de 2000, é mais um filme em preto e branco, como são quase todos os que Béla Tarr fez, que tem uma linda plasticidade, uma atmosfera estranha e soturna, focalizando uma cidade que espera por um circo. A principal atração é uma enorme baleia ,a maior do mundo, que está fora d’água, num grande caminhão, cheirando mal, e há a promessa de um misterioso príncipe que deve se apresentar. Filme sujeito a inúmeras possibilidades interpretativas, surpreende pelo inusitado, tanto da situação proposta quanto dos comportamentos, e também por uma violência que irrompe, selvagem e aparentemente sem sentido ou direção.

“O Homem de Londres”, de 2007, foi o primeiro filme que vi de Béla Tarr, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Sua estética de filme noir, obviamente em preto e branco, com direito a assassinato e mala de dinheiro que é encontrada, é irresistível. Enquadramentos belíssimos nos fazem esquecer completamente os ritmos lentos, os longos planos sequência e a quase ausência de diálogos. Fotografia impecável, mostra uma estação ferroviária do litoral e um homem que pensa, vive dilemas éticos, testemunhou algo terrível e importante. O que fazer agora? Uma releitura do filme noir, que se interioriza.

Béla Tarr é um autor de cinema marcante, num tempo em que o espaço para o trabalho autoral é muito pequeno diante da avassaladora industria do entretenimento. Seu cinema aspira à mais alta dimensão artística e não tem qualquer olhar para o mercado. Opção rara e radical nos dias de hoje.


domingo, 1 de maio de 2011

O ANJO EXTERMINADOR -- DE BUÑUEL

Antonio Carlos Egypto

O ANJO EXTERMINADOR (El Ángel Exterminador). México, 1962. Direção: Luís Buñuel. Com Silvia Pinal, Enrique Rabal, Jacqueline Andere, José Baviera, Luís Beristain. 95 min.

Um sofisticado jantar da alta burguesia num suntuoso casarão é o ponto de partida de que o cineasta Luis Buñuel se utiliza para nos revelar o lado sórdido desse mesmo encontro. Sórdido porque, para além das convenções sociais, está uma classe social escorada no seu narcisismo, no seu ócio e no seu luxo, insensível ao outro e ao mundo que a cerca.

O filme, brilhantemente, encurrala as pessoas num salão no interior do casarão, de onde não podem sair por uma barreira invisível, já que tudo está escancarado, e são obrigadas a conviver numa situação-limite, em que a falta é a regra.

Estranhezas são mostradas já na fase anterior ao convívio forçado  que será o centro da narrativa. Uma gentil saudação é tentada por um dos convivas por duas vezes e ninguém lhe dá atenção. Trata-se de alguém que não deveria estar nesse lugar ou merecer a atenção dos demais, como se verá depois, ou, ainda, que as pessoas estão muito ocupadas consigo mesmas, com a comida e as conversas para se preocupar em cumprir os rituais dessas ocasiões.

Uma das convidadas é paciente do médico, outro dos convidados, e o chama para dançar. Em seguida, lhe dá um beijo inesperado. Ele pergunta se é transferência, referindo-se ao mecanismo de identificação que o paciente costuma ter com o seu médico. Ela acaba confirmando a idéia, pois diz que faz tempo que queria satisfazer esse desejo. Efetivamente, os desejos são contidos por papéis sociais ou por relações socialmente estabelecidas, como a que envolve médico e paciente. O mecanismo dessa transferência, analisado por Freud, serve ao próprio terapeuta para que ele possa lidar com essas emoções que o paciente lhe dirige, que estão deslocadas e não são, efetivamente, dirigidas à pessoa do terapeuta (ou do médico, no caso). A compreensão e o equilíbrio desse médico servirão de contraponto ao descontrole que tomará conta do grupo de pessoas envolvido naquele jantar, logo a seguir.

Detalhes exóticos também aparecem: pés de galinha e penas vistos numa bolsa farão parte de um ritual esotérico que tentará resolver sem sucesso a situação, mais tarde. O apelo ao pensamento mágico é revelador tanto de insegurança quanto de imaturidade, já que remete a estruturas de funcionamento primitivas.


As pessoas se sentem cansadas, têm compromissos no dia seguinte, querem partir, uma delas com urgência, mas, estranhamente, vão ficando. Desfazem-se das gravatas e de outros incômodos dos trajes sociais, vão se pondo à vontade, deitam-se nos sofás. Um homem passa mal e mesmo assim ninguém sai. E já que ninguém consegue sair, todos terão de dormir ali, no chão, em cadeiras ou sofás disponíveis. Improvisa-se um café da manhã. Alguns ficam perplexos: “Todos quiseram ficar”. “Não acho isso natural”. Com efeito, é a quebra absoluta das regras dos contatos sociais. Só imaginável numa proposta surrealista como a do filme, que se utiliza dela para revelar o que está por trás da “farsa” social dos poderosos.

Acaba a comida, a água, não há banho para tomar, roupa para trocar ou remédio para os enfermos, embora haja o médico entre os presentes. O ambiente se deteriora, o homem que passava mal acaba morrendo e tem de ser guardado num armário, que será vedado para minimizar o cheiro.

Ninguém pode ouvi-los ou socorrê-los, porque também não é possível entrar. Nem mesmo as crianças conseguirão. Mas por ali circulam carneiros e um urso, os animais estão à solta, representando o livre curso dos instintos, enquanto os impulsos estão represados pelo comportamento civilizatório dos humanos. Isso enquanto as carências aguentarem, porque, conforme diz um provérbio mexicano, “depois de 24 horas, cadáveres e convidados começam a feder”.

As convenções sociais, inclusive a etiqueta, têm a função de manter convenientemente as aparências, evitando o desconforto da expressão de emoções, como a raiva, o ciúme, a inveja. Pode até haver ironia ou sarcasmo, mas a agressividade costuma ficar contida, as brigas, evitadas, os interesses mútuos, preservados. O ódio se traveste de amor, o outro lado da sua moeda. A cordialidade e os elogios fazem parte da máscara e da imagem que pretendemos ter sob controle, na relação com os demais. As situações de encontro social, como bem o sabia Buñuel, são aquelas que mais se prestam a uma teatralidade fingida, a um jogo de cena, que chega a ter requintes de crueldade, mesmo nas situações que estão sob o controle das regras civilizatórias de conduta. Que dirá na situação-limite proposta por O Anjo Exterminador?

               Luís Buñuel
Os anfitriões, que devem ser sempre educados e gentis, se tornam escancaradamente grosseiros. A infidelidade que se escondia num “segredo”, que mais valia a pena fingir ignorar, chega ao limite da briga, da agressão física e verbal e do desejo de matar, além da atribuição de culpa pelo sucedido ao “responsável” pela situação. Irracionalidade pura, como assegura o médico, aquele que procura manter sua dignidade até o fim.            
      
Trata-se de irracionalidade, sim, pois aqui estamos no terreno do inconsciente, dos impulsos e pulsões que escapam ao controle. Nas situações corriqueiras da existência, o super ego consegue manter sob controle os impulsos do id, tendo o ego como mediador. O inconsciente se revela em atos falhos, na produção onírica, intelectual ou artística do sujeito, mas a vida segue seu fluxo e é de bom tom não perceber ou ignorar certas coisas, nos ambientes formais. As frustrações podem ser camufladas por meio de representações e mecanismos de defesa, como a negação ou a racionalização. Mas quando a frustração é muito grande, como nessa situação-limite, os desejos já não conseguem realização nem parcial ou por meio da fantasia, embora os sonhos persistam na febre dos enfermos.

A sede leva não só a arrebentar o encanamento da sala como à disputa selvagem pela água, desrespeitando as mais elementares regras de convívio, segundo as quais, por exemplo, deve-se dar prioridade às mulheres e aos doentes. Se alguém ainda se lembra disso, é quase por milagre, já que aqui a mera sobrevivência se faz de forma instintiva, sem consideração para com a alteridade. Gestos heróicos e magnânimos em situações-limite são objeto de outro tipo de cinema, hegemônico e comercial, não da obra crítica e demolidora do mestre Buñuel.

Desejos sexuais e amorosos, fortes e intensos, podem buscar satisfação. Num salão cheio de armários sobra um para os amantes se esconderem da horda grupal, mas a consequência será a morte por falta de ar. O desejo não consegue se sobrepor à morte, é subjugado por ela, nesse caso. Também porque não pode haver saídas individuais em momentos de descontrole coletivo ou politicamente obscuros. A referência ao período da ditadura sanguinária de Francisco Franco, na Espanha, e ao papel repressor da igreja é muito evidente nas cenas da polícia baleando o povo na rua, os carneiros entrando na igreja, onde a mesma barreira invisível prenderá padre, auxiliares e fiéis, tal como ocorrera no salão burguês.

As pessoas simples, os serviçais da casa, escapam dessa opressão. Intuem que algo vai acontecer e saem da casa antes que os fatos se dêem, mesmo sem saber por que e com a consciência de que estão fazendo algo errado, ao deixar o mordomo sozinho numa noite de jantar para 20 pessoas. O mordomo é o único que fica, pois está mais identificado com o mundo burguês, comunga dos mesmos valores. Ele ainda consegue manter um comportamento algo controlado e continua a serviço dos demais, de alguma forma. Até quando come papel e oferece a uma convidada, mantém a postura. Os demais serviçais estarão de volta, também intempestivamente, no momento em que a situação estiver a ponto de se resolver dentro da casa, tempos depois. O tempo corrói a experiência do convívio forçado até níveis degradantes antes que esse momento aconteça.

Hostilidades, desprezo, cinismo, grosseria, violência e sujeira fazem parte da experiência dos convidados ao banquete e de seus anfitriões. Como que a revelar as fragilidades humanas, impulsos destrutivos podem apossar-se das pessoas em situações-limite. Isso, enquanto generalização, porque Buñuel situa os fatos historicamente, embora sem precisá-los, e dentro de uma classe social determinada. Ainda assim é possível pensar numa dinâmica humana mais geral, uma essência vulnerável do ser que, de alguma forma, está sempre presente pelo menos em potencial.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

TEMPOS MODERNOS

                                                             Antonio Carlos Egypto




TEMPOS MODERNOS (Modern Times), Estados Unidos, 1936. Escrito, dirigido, musicado e produzido por Charles Chaplin. Com Charles Chaplin, Paulette Goddard, Henry Bergman, Stanley Sandford. 83 min.



"Tempos Modernos", de Charles Chaplin, é um dos maiores clássicos de toda a história do cinema. Realizado nos anos de 1934 e 1935 e após uma longa viagem de dezoito meses de Chaplin pelo mundo, iniciada em 1931, reflete as preocupações do cineasta com os efeitos da Grande Depressão que se seguiu à crise da Bolsa de Nova York de 1929. O filme coloca em cena, com gags notáveis, a realidade então vivida pelos trabalhadores, desempregados e excluídos, com a mítica figura de Carlitos, o vagabundo, que viria a se despedir nesse filme, após vinte anos de estrondoso êxito, que repercute até os dias de hoje.

Uma parte dos problemas apresentados por meio da comédia, com características de cinema mudo mesmo aos dez anos de existência do cinema falado, permanece atual, porque é de produção capitalista que se trata. Mas a denúncia que o filme apresenta tem significado histórico mais definido. Fala de automação, do homem-máquina, do controle do tempo pela fábrica, da organização racional do trabalho (taylorismo), das linhas de montagem (fordismo). De um tempo em que o rendimento do trabalho aumentava, a produção crescia, os preços dos produtos baixavam, trazendo grandes novidades, ao mesmo tempo em que o trabalho se desumanizava. Com a primeira grande crise mundial do capitalismo industrial, esses avanços também produziram desemprego em massa, fome, desabrigados, revolta social e violência, urbanização explosiva e é também a época de ouro das drogas estimulantes que embalam a agitação moderna. Nada disso escapa à sensibilidade de Chaplin e tudo está contemplado em "Tempos Modernos": “uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade em busca de felicidade”, como diz o prólogo do filme.

A justaposição de imagens dos carneiros com a ovelha negra (Carlitos?) e os operários indo para a fábrica é eloqüente por si só. A aglomeração urbana é mostrada sob ângulos inusitados, que se distinguem do restante do filme. Entram as máquinas e o presidente da fábrica faz quebra-cabeças (trabalho X capital).






O controle absoluto do tempo, que foi implantado pela administração científica que propunha a organização racional do trabalho (Taylor, Fayol) é satirizado pelos telões que controlam até o tempo no banheiro (Carlitos instado a voltar rapidamente ao trabalho); a máquina de comer, que poderia reduzir o tempo do almoço e é um desastre absoluto, as gargalhadas que a cena produz são demolidoras. O relógio de ponto que não é esquecido, nem quando Carlitos é perseguido por um policial, é outro ícone dessa forma racional de administrar. Racional para quem? pergunta Chaplin. Certamente não para os operários.

A linha de montagem, implantada com grande propaganda por Henry Ford em suas fábricas modernas, otimizou a produtividade e pretendeu reduzir a fadiga do trabalhador, fazendo com que a esteira rolasse, em vez de a pessoa ter de mover-se. Chaplin demole essa idéia, mostrando de forma hábil e hilariante seu contraponto – o esforço exaustivo e repetitivo do apertar parafusos que estressa, aliena e enlouquece.

Carlitos não consegue segurar a sopa, sai apertando tudo que parece parafuso, como os botões dos vestidos. Sai da linha de montagem, dança, espirra óleo na cara de todos e é perseguido. Para se defender, ele liga a máquina, que aciona os operários, desumanizados pelo ritmo da produção e sua velocidade constante e controlada. Só é possível ser um indivíduo e expressar-se fora da linha de montagem (ou acionando loucamente todas as manivelas e botões, explodindo os mecanismos da fábrica). O homem se torna parte da mecânica, um objeto. Carlitos vira ao mesmo tempo engrenagem da máquina, na seqüência mais marcante e antológica de "Tempos Modernos".




Mas há mais: a fome, o desemprego e a revolta, nas cenas com a bandeira vermelha dos consertos de rua que acaba liderando uma passeata, que termina em prisão (onde a cocaína é mostrada como estimulante capaz de enfrentar os bandidos) e dá ensejo ao romance com a garota que luta contra a fome, cujo pai desempregado é assassinado em confrontos de rua. Na loja de departamentos, eles compartilham alguns sonhos de consumo inalcançáveis para os que estão à margem. Juntos, eles continuam a luta até o fim, mesmo depois de perder todas as oportunidades.

Antes de pegar a estrada, na cena final, ambos sonham com um mundo mais simples e rural – onde se colhem frutas no pé e se tira leite da vaca ao pé da porta. São os tempos modernos da indústria e do cinema falado, que Chaplin questiona com insuperável talento.



domingo, 7 de fevereiro de 2010

CLINT EASTWOOD




Antonio Carlos Egypto

Clint Eastwood vai chegando aos 80 anos de idade em grande forma como diretor. E permanece sendo um ator muito expressivo, também.

Seus trabalhos neste século XXI chamam a atenção para questões importantes da contemporaneidade, como o reconhecimento da diversidade e o necessário convívio que precisa existir nas diferenças. Além disso, questiona as verdades estabelecidas, desconstruindo-as, e deixa profundas reflexões aos norte-americanos, com seu egocentrismo de nação-potência e seu discutível patriotismo. Até mesmo a liberdade tão propalada no ideal americano sofre grandes abalos.

Em “Sobre Meninos e Lobos” (2003), por exemplo, ele lida com um verdadeiro tabu: os traumas de um homem que foi abusado sexualmente. Em “Menina de Ouro” (2004), a questão de gênero (masculino/feminino) aparece em cheio na história da menina que se dedica ao boxe.

Em “A Conquista da Honra” (2006), ele desconstrói o mito patriótico em cima de uma foto histórica da II Segunda Guerra Mundial, aquela que marcou a conquista da ilha de Iwo Jima aos japoneses, com soldados fincando a bandeira americana. Os envolvidos nesta história têm de suportar as fantasias, as mentiras e a propaganda patriótica em torno de uma conquista que, na realidade, deveria mostrar a determinação e a bravura dos soldados japoneses e das táticas do seu general, que resistiram numa batalha de 40 dias com poucos recursos, mas com uma vontade inabalável. É disso que trata “Cartas de Iwo Jima” (2006), a mesma batalha vista pelos olhos dos japoneses. Onde está a verdade? Que sentido tem o apelo patriótico? Heróis pode haver em toda parte e por que a nossa verdade será melhor que a deles? Em dois filmes primorosos, Clint Eastwood exercita seu questionamento e seu respeito pelo outro lado.

Se a liberdade dos soldados que fazem parte da tal foto, fincando a bandeira, já havia sido posta em questão, o que dizer da completa ausência de liberdade que o próprio Estado impõe a uma mãe, obrigando-a a dizer que uma criança encontrada é seu filho, quando ela, obviamente, sabe que não se trata do filho desaparecido? É o que acontece em “A Troca” (2007).

“Gran Torino” (2008) retoma o tema da compreensão da diversidade, com um personagem típico norte-americano (ele próprio em atuação), descobrindo que seus vizinhos orientais são gente que tem uma cultura própria e merece respeito, por mais que nos incomodem a sua simples existência, seus gostos e hábitos. Mais do que isso: precisamos deles e eles têm muito a nos ensinar. Nunca é tarde para aprender, como o já velho personagem que Clint encarna deixa claro.

Um olhar próximo para o outro que desconhecemos também está em seu filme mais recente, “Invictus” (2009). Aqui, é a África do Sul superando o “apartheid”, pela firme liderança de Nelson Mandela. A sabedoria do presidente eleito, depois de 27 anos na prisão, encarando o rugby, de origem branca e inglesa, como esporte nacional de um país que quer ser multirracial, impressiona. Uma vez mais, há heroísmo e vida inteligente do “outro lado”, no desconhecido, na diversidade.

Clint Eastwood é um cineasta de características clássicas. Em “Invictus” isso é muito evidente, não só na narrativa, sempre contada linearmente, mas também na estruturação da história, no uso dos picos de emoção e no suspense do tempo. A filmagem da disputa das partidas da Copa Mundial de rugby na África do Sul, em 1995, apresenta todos os lances emocionantes – e previsíveis – do estilo clássico. Mas funciona e muito bem.

Clint Eastwood se vale dos recursos clássicos do cinema e das possibilidades de que o cinema norte-americano sempre dispôs, para criar obras maduras, que dialogam com seu país, sua comunidade, os valores estabelecidos e que, mesmo ao tratar de alguns temas localizados, consegue dialogar com o mundo, emocionando as pessoas de todos os lugares.

São temas caros à contemporaneidade, numa abordagem ampla, ainda que a princípio não pareça, o que Clint Eastwood coloca na tela, que qualquer um compreende e pode parar para pensar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

UM LONGA = X CURTAS

Antonio Carlos Egypto


Um longa metragem que se compõe de muitos curtas de conceituados diretores de cinema dos mais diversificados países do mundo: esta é uma fórmula utilizada por vários filmes lançados nos últimos anos.

“11 de Setembro”, por exemplo, reuniu onze diretores importantes do mundo, como Amos Gitai, de Israel; Youssef Chahine, do Egito; Claude Lelouch, da França; Danis Tavonic, da Eslovênia; Ken Loach, da Inglaterra; Alejandro G. Iñarritu, do México; Idrissa Oedragogo, de Burkina Fasso; Mira Nair, da Índia; Shohei Imamura, do Japão; Samira Makhmalbaf, do Irã; e Sean Penn, dos Estados Unidos, para realizar, em onze minutos, filmes sobre os atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York.

O filme, realizado em 2003, é muito interessante de se ver, porque mostra o mundo pensando e vendo à distância aquela tragédia americana. Houve até quem se lembrasse do 11 de setembro chileno, marcado pela queda do presidente Salvador Allende, em 1973. Algumas visões surpreendem, outras são muito criativas. O resultado, embora desigual, como sempre acontece em projetos assim, é compensador.

Experiência semelhante foi realizada por Leon Cakof, organizador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, quando pediu aos diretores de todo o mundo, que vieram à Mostra de 2003, para que realizassem curtas sobre a cidade de São Paulo, em busca de olhares estrangeiros sobre ela. O resultado é “Bem-vindo a São Paulo”, filme de 2004, que tem a participação de diretores como a portuguesa Maria de Medeiros, o finlandês Mika Kaurismaki, o malaio Tsai Ming-Liang, o alemão Wolfgang Becker, entre outros. E que inclui, ainda, o próprio Leon Cakof, Renata de Almeida, Daniela Thomas e Caetano Veloso, do Brasil. Como são dezoito filmes, a fragmentação é maior e a irregularidade, também. Mas não deixa de ser interessante e curioso conhecer o olhar alheio sobre a nossa querida cidade.

Em 2006, foi a vez de “Paris, te amo”, deliciosa junção de homenagens amorosas à cidade que sempre simbolizou o amor, com direito a críticas ao tradicional mau-humor dos parisienses. Houve espaço, também, para a questão social, mostrando uma trabalhadora que deixa filhos para trás, na periferia da cidade, para poder cuidar dos filhos de endinheirados que vivem na região central de Paris. É o curta de Walter Salles e Daniela Thomas, que merece destaque. Assim como o de Gus Van Saint, o dos irmãos Cohen e o de Gurinder Chadha, entre outros. O conjunto é leve e agradável, apesar da inevitável irregularidade.

Em 2007, para comemorar 60 anos do Festival de Cannes, um time imenso de conceituados diretores de todas as partes fez pequenos curtas sobre a experiência de ver filmes no cinema: “Cada um com seu cinema”. Quase todos os grandes diretores da atualidade marcam presença, dos irmãos Dardenne, David Cronemberg e Manoel de Oliveira a Abbas Kiarostami, Nanni Moretti, Roman Polanski, Zhang Ymou e Theo Angelopoulos, passando por quase todos os que participaram dos filmes anteriores (Walter Salles incluído). São tantos que nem dá para citá-los sem aborrecer o leitor. Claro que há de tudo: episódios criativos, ideias que se perdem, agressividade exagerada, coisas muito engraçadas. E a toda hora muda a cena. Os cinéfilos, certamente, curtem e há sempre algo a apreciar. Aliás, essa é uma constante nesse tipo de filme.

Essas películas já passaram no cinema, mas podem ser encontradas facilmente em DVD. Há dois novos produtos desse gênero nos cinemas.


“Nova York, te amo”, de 2009, retoma a proposta de homenagear a cidade, assim como se fez com Paris. Dessa vez, há menos diretores em ação e também são menos famosos, o que acabou permitindo uma integração melhor dos curtas, contos de amor que se relacionam entre si, de alguma forma. Por outro lado, dessa vez ignora-se totalmente a destruição das Torres Gêmeas no atentado de 11 de setembro de 2001. Uma declaração de amor a Nova York deveria omitir esta marca tão traumática e recente da cidade? Não soa um tanto artificial essa escolha? Foi meramente acidental, não foi uma escolha? Enfim, o filme funciona e é um passatempo agradável, com direito a episódios do turco-alemão Fatih Akin, da indiana Mira Nair, da israelense-americana Natalie Portman, do chinês Jiang Wen, do paquistanês Shekhar Kapur, do japonês Shunji Iwai, do israelense Yvan Attal, além de quatro diretores norte-americanos.

“Tokyo!”, de 2009, embora tenha como mote a capital japonesa, se diferencia um pouco dos produtos anteriores, ao se compor apenas de três histórias, o que dá mais de trinta minutos para cada uma. Ultrapassam, portanto, a metragem de qualquer um dos outros filmes de curtas, se aproximando da média metragem. Lembra os famosos filmes em episódios do grande cinema italiano dos anos 1950 e 1960, seja na expressão clássica do neorrealismo, seja nas comédias populares, cheias de malícia e deliciosamente atraentes. Só que em “Tokyo!” o clima é outro. Os franceses Michel Gondry e Leos Carax e o sul-coreano Bong Joon-Ho buscam ângulos e situações inusitadas para falar de Tóquio.

Gondry começa por nos mostrar ambientes tão minúsculos de moradia que chegam a sufocar as pessoas, quem sabe para acentuar o problema do espaço em megacidades, como Tóquio. Mas acaba contando uma história de um jovem casal de namorados querendo se ajustar, na cidade e na vida, e vai se fixar no ser mutante da namorada, que se transforma periodicamente num convencional objeto doméstico. Mas ninguém pode se surpreender com as estranhezas de Michel Gondry, são sua marca registrada.

Leos Carax, de volta ao cinema depois de um bom tempo, se inspira nos monstros verdes para tratar de uma figura que vive nos esgotos de Tóquio e sai para assustar e agredir as pessoas, não se entende com ninguém, até encontrar um interlocutor. E faz uma parábola do terrorismo urbano, sem esquecer a incomunicabilidade e a diversidade.
O episódio de Bong Joon-Ho trata de um rapaz que é “hikikomori” há dez anos, ou seja, uma pessoa que vive totalmente isolada dentro de sua casa e que não sai jamais. Solidão, isolamento, uma casa que supre necessidades, só complementadas por coisas que chegam do “exterior”, via telefone (poderia ser on line, também), parecem ser signos da contemporaneidade das grandes cidades. Só mesmo a possibilidade de amar para tirar as pessoas de suas casas e, assim mesmo, com grande dificuldade.

Como se vê, é um filme que reflete questões importantes da atualidade. A maior metragem acabou dando maior possibilidade de exploração dos temas. Seja como for, os filmes de longa metragem que se compõem de curtas estão em evidência, sobretudo os que se referem às cidades importantes do globo. Devem vir muitos mais por aí.

domingo, 15 de novembro de 2009

MANOEL DE OLIVEIRA: REALIZADOR CENTENÁRIO





Antonio Carlos Egypto


Eu fui descobrindo a obra maiúscula do diretor português Manoel de Oliveira, pouco a pouco, a cada edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e ele, praticamente, esteve em todas as edições da Mostra, a partir da 3ª., há 30 anos, quando foi exibido “Amor de Perdição”, adaptação do romance clássico de Camilo Castelo Branco, de 1863, em filme de 1978.

De lá para cá, é sempre uma agradável surpresa aguardar pelo novo filme do centenário realizador. Ele já completou 100 anos de idade e continua produzindo um filme por ano, tirando todo o atraso que o regime salazarista de Portugal lhe impôs. Manoel de Oliveira busca sempre realizar adaptações literárias que tragam uma reflexão nova e original sobre o mundo contemporâneo, a história, as crenças e costumes, com base em contrastes e estranhezas.

Em “Non, ou a vã glória de mandar”, de 1990, um grupo de soldados e um subtenente que estão numa patrulha conversam longamente na carroceria de um veículo militar, enquanto se deslocam, relembrando a história de Portugal por meio de suas derrotas, até chegar à Revolução dos Cravos, em 1974. Estranhíssimo e original. Uma situação improvável, que nos enche de informações relevantes, de forma irônica. Nunca esqueci essa admirável sessão de cinema.

Outro filme com uma cena marcante do mestre Manoel de Oliveira é “Viagem ao princípio do mundo”, de 1997, filme protagonizado por Marcello Mastroianni, que faz um ator nascido na França, filho de um português morto há muito tempo. Ele decide visitar a aldeia rural onde seu pai nascera, na esperança de encontrar uma velha tia. Ele a encontra, mas a tia não se conforma que ele seja seu sobrinho e não a entenda, não fale a sua língua. É uma dessas cenas inesquecíveis da história do cinema. Esse foi o último filme do grande ator italiano, que morreu logo depois das filmagens, embora tenha deixado bilhete ao diretor, dizendo que estaria à disposição para novos filmes, sempre que Manoel de Oliveira o chamasse.

Em “A carta”, de 1999, adaptando o romance do século XVII “La Princesse de Madame”, de La Fayette, o diretor faz uma leitura do texto, contando uma história de amor entre Mademoiselle de Chartres, do passado, e um cantor de rock, do século XX, Pedro Abrunhosa. Segundo o diretor, trata-se de “uma história passional, com fragmentos de uma visão social, que nos mostra a desordem que assola, com a mesma crueldade do passado, nosso mundo incorrigível”. Mais uma vez, original e profundo.

Em “Palavra e utopia”, filme de fruição mais difícil e erudita, Manoel de Oliveira presta tributo ao padre Antonio Vieira e seus famosos sermões. Em 1663, o padre é convocado a responder à Inquisição portuguesa sobre suas ideias a respeito da escravidão, da situação dos índios e das relações império-colônia. Mais uma aula de história e elementos para reflexão, em filme que contou com Lima Duarte no elenco.

O mito do rei português D. Sebastião, desaparecido em 1578 numa batalha, e cuja lenda indica que um dia voltará como aparição no meio da névoa, é relembrado em “O quinto império: ontem como hoje”, de 2004, adaptação do livro “El-Rei Sebastião”, de José Régio. A figura lendária do “Escondido” também aparece numa lenda muçulmana, segundo a qual um imã voltaria um dia montado num cavalo branco, numa manhã de neblina, para destruir o mal e restabelecer a paz e a harmonia entre os homens.

O “Espelho mágico”, de 2005, se baseia no romance “A alma dos ricos”, de Agustina Bessa-Luis, autora frequentemente visitada pelo cinema de Manoel de Oliveira. Aqui, a aristocrática Alfreda tem certeza de que a Virgem Maria aparecerá para ela, já que é uma mulher de fé e rica. Ela não aceita que a aparição da Virgem ainda não tenha acontecido em sua vida. Além disso, crê que Maria e Jesus teriam sido, na verdade, ricos como ela. Uma história sensacional e inusitada, com um elenco de peso internacional. Além de Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra e Ricardo Trepa, lá estão também Michel Piccoli, Marisa Paredes e Lima Duarte.

Em “Um filme falado”, de 2003, Manoel de Oliveira reuniu também um elenco internacional. Leonor Silveira, Catherine Deneuve, Stefania Sandrelli, Irene Papas e John Malkovich atuam, cada qual falando sua língua, e num jantar todos se entendem, apesar disso. Outra cena antológica para a história do cinema. O filme se passa num navio, em que o cruzeiro visita lugares que marcam as diferentes culturas da civilização ocidental. Toda essa diversidade, cordialidade e entendimento sofrerão abalo decisivo ao final da jornada. Grande filme.

Haveria muitos outros a mencionar, como “O Convento”, de 1995, em que um pesquisador americano se dispõe a provar que Shakespeare teria sido espanhol e não britânico, ou “Vale Abraão”, de 1993, adaptação do clássico “Madame Bovary”, de Flaubert. Mas vamos incluir uma palavra sobre o mais recente filme de Oliveira: “Singularidades de uma rapariga loura”, de 2009.

“Singularidades...” é baseado em conto de Eça de Queiroz. Uma paixão que se dá a partir da sacada de um escritório e da janela de uma casa. Macário (Ricardo Trepa) tem sua vida transformada pela paixão por uma linda loira (Catarina Wallenstein) e seu maravilhoso leque. Até que sua singularidade transforma tudo, abruptamente. E é como esse pequeno (63 min) grande filme termina: abruptamente.

O escritório é tradicional, assim como as casas, a loja de tecidos e outros ambientes mostrados no filme. Embora os preços sejam em euro, é do Portugal mais tradicionalista e conservador que se está tratando: remete a Salazar e até ao século XIX, de Eça de Queiroz, como que a revelar que, a despeito do Portugal moderno e progressista, a tradição pesa e está fortemente presente, para o bem e para o mal.

Sei que muita gente que gosta de cinema ainda torce o nariz para os filmes de Manoel de Oliveira. Reclama dos seus tempos lentos ou de sua erudição. Outros não curtem o seu cinema, por considerá-lo muito literário. É uma pena, porque descobrir a obra desse mestre do cinema é um prazer que compensa qualquer esforço inicial que tenhamos de fazer para penetrar em seu território.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

MURNAU, O EXPRESSIONISMO ALEMÃO E O CINEMA


Antonio Carlos Egypto


A aventura do cinema tem início em 28 de dezembro de 1895, com a primeira projeção pública, e paga, de filmes realizados pelos irmãos Lumière, no subsolo do Grand Café, Boulevard des Capucines, Paris. Essa primeira sessão do cinematógrafo Lumière coroava os esforços de um grande número de inventores e pesquisadores que, por séculos, buscaram o sonho de reproduzir o movimento por meio de imagens. Entre os muitos que criaram aparelhos que deram origem ao cinema está Thomas Edison, com seu cinetoscópio que, associado ao fonógrafo, quase criou o cinema falado, em 1892, só que isso se dirigia a apenas um espectador por vez.

Se foi difícil tecnicamente encontrar as soluções para criar a fotografia e depois animá-la, o fato é que o cinema uma vez descoberto teve uma evolução muito grande e rápida. Desde "A Chegada do Trem na Estação", de Louis Lumière, ao "Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene (e muitos outros criadores), em 1919, só se passaram vinte e quatro anos. Quando o expressionismo estava chegando, com sua originalidade e força criativa, o cinema já havia acumulado muitos trunfos em sua história.

Em 1902, Georges Méliès criava sua famosa "Viagem à Lua", no bojo de produções altamente inventivas e criativas onde a magia, o teatro e os cenários pintados compunham obras de inegável valor artístico. Méliès tinha estado presente à primeira sessão de cinema e incorporou esse invento ao seu teatro de mágicas, descobrindo novos caminhos para sua arte. Com Edwin Porter nos Estados Unidos e o seu "O Grande Roubo do Trem", de 1902, criou-se a história padrão que seria fortemente copiada até os dias atuais. Com Pathé e os filmes de Ferdinand Zecca, o cinema caminha para a indústria, conquistando mais público.

O cinema italiano faria a primeira superprodução histórica em 1914, com "Cabíria", de Giovanni Pastrone. No ano seguinte, nos Estados Unidos, David Wark Griffith sintetizaria a linguagem do cinema no épico "Nascimento de uma Nação", sobre a Guerra de Secessão norte-americana. Em que pese a apologia aberta do racismo que o filme faz, o êxito da empreitada foi total e praticamente criou a narrativa cinematográfica clássica, incluindo a montagem paralela. Em 1916, Griffith fará uma megaprodução de grandes ambições e agora pacifista, para compensar o belicismo anterior, "Intolerância". O filme é um dos grandes marcos da história do cinema, apesar do fracasso comercial e da extensa duração.

Na Suécia, desde 1912, Victor Sjöström já realizava belos filmes silenciosos, com base em adaptações literárias de Henrik Ibsen e Selma Lagerläf. e ao lado de Mauritz Stiller protagonizava a Era de Ouro do cinema sueco. "A Carruagem Fantasma", de Sjöström (1920), foi inspiração do maior cineasta sueco de todos os tempos, Ingmar Bergman, que confessava assistir ao filme pelo menos uma vez por ano.

Nessa mesma época, a comédia muda teve papel fundamental na difusão do cinema como entretenimento e arte. Max Linder, que trabalhava para Charles Pathé, e Mack Sennet, em Hollywood, são precursores do trabalho absolutamente genial que Charles Chaplin legou ao mundo. Os anos 1920 ainda não haviam chegado e Chaplin já havia feito maravilhas, como "O Vagabundo", "Rua da Paz", "Ombro, Armas" e "Vida de Cachorro", para citar só algumas das comédias curtas que estão na memória dos amantes de cinema. Não é pouco o que se pode registrar da história do cinema antes que os anos 1920 trouxessem um grande número de novidades e solidificassem a experiência cinematográfica.

É nesse período que se situa a escola do expressionismo alemão tão bem representada pelo "Gabinete do Dr. Caligari", e que produziu obras muito importantes, além de revelar realizadores do porte de Friedrich Wilhelm Murnau e Fritz Lang.

A Alemanha vivia uma humilhante derrota na Primeira Guerra Mundial, uma crise econômica sem precedentes e buscava reencontrar sua identidade e liderança perdidas. Nessa Alemanha inferiorizada e subjugada, as expressões artísticas teriam de ser intensas, algo lúgubres e inevitavelmente pessimistas. O expressionismo já existia na pintura, na música, na poesia e no teatro. Levado ao cinema, acabou por alcançar um alto grau de sofisticação, deixando uma marca permanente na chamada sétima arte, em seu período silencioso.

Formas pontiagudas, tortas, inclinadas, seres extraordinários, monstros à sombra, a visão deformada do real a partir da subjetividade, são alguns dos elementos constitutivos da arte cinematográfica expressionista. Tratava-se de uma ruptura estética, onde o fantástico assume o primeiro plano e simboliza uma realidade histórica, expressa de forma diferente do naturalismo, que vinha se impondo ao cinema mundial nesse período.

Na concepção nazista de arte que passaria a vigorar com a ascensão de Hitler ao poder, a partir de 1933, o expressionismo seria classificado como arte degenerada, ao lado de outras manifestações artísticas, e inteiramente desqualificado e rejeitado na Alemanha. O documentário de Peter Cohen, de 1992, "Arquitetura da destruição", mostra o processo de imposição da arte ariana, de características clássicas e naturalistas, em oposição aberta à chamada arte degenerada, atribuída principalmente aos judeus. Seres extraordinários, deformados, tortos ou distorcidos, como os utilizados pelo expressionismo, são abertamente condenados pelo Estado e pela figura que o representa naquele momento: Hitler, ele próprio, um artista plástico mediano, porém, cheio de certezas.

Hollywood, ao contrário do nazismo, buscou seus realizadores, recuperou e difundiu as obras do cinema expressionista alemão, prestando um inestimável serviço à arte cinematográfica. Hollywood também ganhou muito ao incorporar essa experiência. A estética do claro-escuro do cinema noir é um nítido exemplo disso, assim como a obra de Orson Welles e de muitos outros cineastas norte-americanos do cinema sonoro, em preto e branco. Fritz Lang, um dos mais destacados cineastas do período expressionista alemão, desenvolveria longa e brilhante carreira, tanto no cinema silencioso como no cinema falado, deixando filmes notáveis, como "Metrópolis", "M – O vampiro de Dusseldorf", "Fúria", "O diabo feito mulher" e a trilogia Mabuse.

Como em todas as escolas e tendências, há aqueles que as superam e as ultrapassam, colocando sua marca pessoal na produção artística. É o caso de Friedrich W. Murnau (1888-1931). Originário do teatro, onde foi assistente de Max Reinhardt, fez filmes como "Satanás" ou "Nosferatu", que se situam claramente na corrente do expressionismo alemão da época. Aliás, "Nosferatu" não só criou escola como permanece um clássico de grande beleza plástica, cujo fruir das imagens encanta em pleno século XXI. Não menos gratificante é a experiência de assistir hoje a "Fausto", uma adaptação do personagem mítico da literatura da obra de Goethe. O filme flui magnificamente, revelando uma tal beleza de imagens que encanta o espectador e nem exige que este tenha uma postura contemplativa, dado o dinamismo da narrativa.

O filme de Murnau da fase alemã que mais me entusiasma, no entanto, é "A Última Gargalhada". Aqui já estamos na concepção do Kammerspiel (peças de câmara), onde o intimismo, o simbolismo e o realismo têm lugar.
O esplendor visual de "A Última Gargalhada" é equivalente aos outros trabalhos de Murnau. Destaque-se a reconstituição em estúdio da rua do hotel, com pedestres na chuva, carros e até um trem passando. Há belas e significativas fusões de imagens. As imagens de sonho e fantasia que povoam a mente da personagem no momento da bebedeira, provocada pelo declínio, mas atribuível ao casamento que se está celebrando, são muito elaboradas. O jogo de luzes e sombras se destaca na caracterização das situações que estão sendo mostradas no filme. Um exemplo: quando ele volta para casa com o uniforme que já não lhe pertence, a sombra mostra antes o seu arquejamento, mas ele se recompõe e agora a sombra antecipa a postura empertigada que o caracterizava perante a sua comunidade.

A sensibilidade com que o filme expõe a decadência do orgulhoso porteiro do hotel e seu vistoso uniforme, que impressionava a comunidade onde ele vivia, é notável para um filme silencioso. Ainda mais se considerarmos que Emil Jannings, o protagonista da ação, se vale de uma interpretação de gestos e expressões exacerbadas que nos parece excessivamente teatral na atualidade. Ela nos leva, porém, ao âmago do sentimento. Expressa a dor da perda do lugar, do status, da respeitabilidade, ao mesmo tempo em que acentua a vergonha e a depressão da personagem. Igualmente importante é a expressão social de sua decadência, o pouco espaço que sobra para a pobreza, especialmente na velhice. O que seria um gesto de aparente solidariedade patronal ao inevitável declínio físico do empregado, que até pode manter seu emprego é, na verdade, uma sentença de morte psíquica. As profundas diferenças entre as classes sociais são expostas ao longo de todo o filme. A ausência de intertítulos integra o filme, tornando mais eficaz o envolvimento emocional com o espectador, num espetáculo que valoriza o aspecto intimista da história.

O final é irônico, ao redimir uma personagem que não teria mesmo nenhuma saída àquela altura. Hoje pode ser vista pelo ridículo dos finais felizes forçados, tal é o artificialismo da solução. Mas o diretor aproveita esse desfecho para revelar o mundo fútil dos ricos, enfatizando a gratidão e o desprendimento, tocantes apesar de ingênuos. Tocante, aliás, é uma boa definição para um filme que lida com o social e o emocional de forma tão simples e tão integrada. É dessa simplicidade com requintes técnicos de bom cinema que se compõe essa obra-prima de Murnau.

O diretor ainda faria quatro filmes nos Estados Unidos, entre eles "Aurora" e "Tabu". "Aurora" é considerado outra obra-prima, mas que não cabe comentar aqui e agora.

O cinema falado estava chegando e Murnau, um diretor extraordinário do cinema silencioso, poderia acrescentar novas e importantes obras ao cinema, não tivesse falecido tão precocemente aos 43 anos, num acidente automobilístico. O cinema deve ter perdido muito com isso.

FILMOGRAFIAA ÚLTIMA GARGALHADA (Der Letzte Mann), Alemanha, 1924.
Direção: Friedrich W. Murnau. Com Emil Jannings, Maly Delschaft, Emilie Kurz. 91 min.

NOSFERATU (Nosferatu), Alemanha, 1922.
Direção: Friedrich W. Murnau. Com Max Schreck, Gustav von Wangenheim, Greta Schroeder. 81 min.

FAUSTO (Faust), Alemanha, 1926.
Direção: Friedrich W. Murnau. Com Emil Jannings, Camilla Horn, Wilhelm Dieterle. 116 min.

O GABINETE DO DR. CALIGARI. (Das Kabinet des Dr. Caligari). Alemanha, 1919.
Direção: Robert Wiene. Com Werner Krauss, Conrad Veidt. 78 min.

O GOLEM (Der Golem), Alemanha, 1920.
Direção: Paul Wegener. Com Paul Wegener, Henrik Galeen. 88 min.

A ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO (Undergägens Arkitektur), Suécia, 1992.
Direção: Peter Cohen. Narração: Bruno Ganz. 121 min.