quarta-feira, 29 de setembro de 2021

MEU FIM, SEU COMEÇO

Antonio Carlos Egypto

 



MEU FIM, SEU COMEÇO (Mein Ende, Dein Anfang).  Alemanha, 2019.  Direção e roteiro de Mariko Minoguchi.  Com Saskia Rosendahl, Edin Hasanovic, Julius Feldmeier, Emanuela von Frankenberg, Hans Zischer.  111 min.

 

 

A relatividade do tempo nos remete à ideia de que temos em nós, no presente, o passado e o futuro.  Claro, nossas decisões são marcadas pelas memórias do passado e pelas ideias de futuro que cultivamos.  Mas pode ser mais do que isso.  O que já vivemos, estamos vivendo e vamos viver, já pode estar tão determinado que mal cabe decidir alguma coisa?  Ou tudo seria fruto do acaso?  Existe acaso? 

 

Quem nunca se deparou com o déjà-vu, algo tão conhecido que parece já ter sido vivido, embora nunca tenha feito parte da nossa vida, seja um lugar, uma pessoa, um estranho, que soa como se fosse tão conhecido e há tanto tempo?

 

Foi a partir desse tipo de pensamento que a diretora alemã, de ascendência japonesa por parte de pai, Mariko Minoguchi, construiu uma narrativa que joga com o tempo e com os sentimentos como fragmentos aleatórios, que se encontrarão em alguns pontos.  Segundo ela, o que a motivou foi entender, a partir do irmão, que é físico, os conceitos da relatividade e da teoria quântica.  Ela percebeu o potencial dramático que isso poderia ter em personagens realistas, mas suspensos no tempo.

 

A sua história, segundo ela mesma, fala de luto e amor, culpa e perdão, e de achar um caminho para lidar com tudo o que a vida nos deu. E, acrescento, refletir sobre os limites da vida humana e das escolhas que fazemos na relatividade do tempo.  Que, em última análise, é a relatividade das nossas crenças, dos nossos conceitos, das nossas ações e reações.  Da vida mesma, enfim.

 



Se o inconsciente está no centro de nós e tem papel determinante na nossa história pessoal, como mostrou Freud, de Jung podemos buscar a dimensão do inconsciente coletivo, do que é atávico, ancestral, fundador e organizador da vida.  Onde ficam as decisões do eu e da racionalidade no meio de tudo isso?  Essa é uma digressão minha, não está no filme, embora possa perfeitamente dialogar com ele.

 

O ponto de partida de “Meu Fim, Seu Começo” é o amor à primeira vista entre Nora (Saskia Rosendhal) e Aron (Julius Feldmeier), da morte que ocorre logo nas primeiras cenas, em que um fim traz um começo, deixando o tempo em suspenso como o título do primeiro longa de Mariko Minoguchi indica.  Segue-se um encadeamento circular das coisas, um quebra-cabeças de personagens, situações, coincidências, acasos, determinismos, que compõem o desafio a provocar o espectador.  Uma proposta aparentemente pretensiosa, que consegue comunicar muita ação e emoção em meio a uma trama labiríntica.

 

Quem gosta de entender tudo o que está acontecendo à medida que o filme decorre, certamente vai se incomodar com a proposta.  É preciso lembrar, no entanto, que muito do que vemos, percebemos ou experimentamos da existência humana é incompreensível, escapa a qualquer racionalidade.  Por que não aceitar mergulhar no relativo, no inseguro, no incerto, no brumoso ou no misterioso?  Esse mergulho pode dar bons frutos de reflexão, em muitas direções distintas.  Isso pode ser estimulante.



terça-feira, 28 de setembro de 2021

ZIMBA

Antonio Carlos Egypto

 

 



ZIMBA, dirigido por Joel Pizzini, é um documentário nacional que resgata o trabalho importantíssimo para o teatro brasileiro do polonês Zbigniew Ziembinski (1908-1978).  Ele aportou por aqui nos anos 1940, adotou o país e foi adotado pelo Brasil.  Ficou aqui até morrer e transformou o nosso teatro.  Na verdade, criou o teatro moderno brasileiro contando com sua bagagem europeia, já então muito rica e variada, como ator e encenador.

 

Dirigiu peças que marcaram a história teatral do país, montagens de tal modo inovadoras, em todos os aspectos, que nunca deixarão de ser citadas e lembradas.  É o caso de “O Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, em 1943, remontada por ele nos anos 1970.  Foi Ziembinski quem transformou Nelson Rodrigues em escritor teatral, a partir do reconhecimento da importância do texto, da sintaxe e da representatividade cultural do autor de “A Vida Como Ela É”, coluna jornalístico/literária famosa.

 

Zimba teve atuação fundamental em grupos como “Os Comediantes”, no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, na companhia cinematográfica Vera Cruz, no teatro exibido pela TV, na formação de atores e atrizes que se destacaram e se tornaram nomes de primeira grandeza do teatro brasileiro. 

 

O filme ZIMBA faz uma seleção e uma colagem a partir de um vasto material sobre Ziembinski em uma montagem sofisticada.  Revela a figura e sua obra, ao longo do tempo, indo e vindo, sem nunca perder o fio da meada nem o foco na arte, que é o que importa.  Não se preocupa com didatismo, mas consegue explicar tudo muito bem para quem não saiba de quem se trata.  A personalidade de Zimba e seus métodos de trabalho estão lá por inteiro.  Os sentimentos que ele sempre despertou nos outros, sua capacidade criativa e revolucionária, a importância cultural que ele legou ao seu país de adoção.  Tudo isso num ritmo ágil e envolvente, contando com a narração de Nathalia Timberg, Camilla Amado e Nicette Bruno.  Um registro indispensável para o teatro e a cultura brasileiros que o documentário realiza com grande competência em apenas 78 minutos.

 

 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

ARANHA

Antonio Carlos Egypto

 



ARANHA, do diretor chileno Andrés Wood (do ótimo “Machuca”, 2004), está nos cinemas, com uma trama que envolve personagens e um grupo nacionalista de inspiração nazifascista, que atuou na década de 1970 no país, visando a derrubar o governo de Salvador Allende (1908-1973).  Um grupo civil que dispunha de armas e as utilizava para promover confusões, arruaças, interferências em ações de grupos de esquerda ou de apoiadores do presidente Allende.  Submergiram com a ascensão ao poder da ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006).

 

Na trama do filme, os personagens Inês, Justo e Gerardo vivem um triângulo amoroso, em meio a toda ebulição política do grupo.  Com muitas disputas, manipulações, rasteiras executadas, mágoas guardadas ou expressas, até onde era possível no contexto. Essas coisas permanecem e podem reaparecer diante de novas situações, quarenta anos depois.  Aí já cada um tem seu próprio rumo e algo a perder.  A retomada desses sentimentos e as posições assumidas nesse período e hoje fazem parte de uma narrativa bem construída, que envolve crimes políticos e vinganças.

 

A grande atriz Mercedes Morán é protagonista e o ator brasileiro Caio Blat está no elenco, que reúne um grupo de atores e atrizes tarimbado e que sustenta bem a história. 

 




Em tempos em que grupos de extrema direita se evidenciam em vários países, com suas pautas radicais, superconservadoras e retrógradas nos costumes, é interessante acompanhar esse pessoal, conhecido como Araña, num símbolo que sugere as patas do animal, mas também traços da suástica nazista.

 

Mostra-se que, apoiando ações internacionais, comandadas desde os organismos governamentais e policiais dos Estados Unidos, estavam não só grupos militares locais, mas uma elite civil que se dispunha a tudo para evitar que o socialismo democrático conquistado nas urnas, e com grande apoio popular, pudesse vingar no Chile.  Em nome do anticomunismo, se organizava para respaldar um golpe, que de fato aconteceu, incluindo o metralhamento do Palácio de la Moneda, com o presidente dentro dele, cometendo suicídio e pondo fim à experiência de um governo popular.  Abriu-se, assim, espaço para uma ditadura militar altamente repressora e sangrenta no Chile, à imagem e semelhança de outras ditaduras latino-americanas que se estabeleceram naquele período. E isso não é só história, o perigo continua por aí. 105 minutos.

 

 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A ÚLTIMA FLORESTA

Antonio Carlos Egypto

 

 



Filme de encerramento do festival É Tudo Verdade 2021, A ÚLTIMA FLORESTA, dirigido por Luiz Bolognesi, tem roteiro do diretor e de David Kopenawa Yanomami, 74 min.

 

O documentário trata da tribo Yanomami, isolada, na região amazônica em que se encontram Brasil e Venezuela.  Mas, como diz o filme, os Yanomami já estavam lá quinhentos anos antes de existirem os dois países.

 

O xamã David Kopenawa Yanomami, uma importante liderança indígena, tem lutado pelo seu povo, para preservar seu território, suas tradições, os relatos de sua origem e a relação com os espíritos da floresta.  Para isso, precisa se dedicar a combater os garimpeiros que invadem as terras, trazendo morte e doenças. 

 

Uma invasão devastadora ocorreu nos anos 1980.  Com a demarcação das terras nos anos 1990, a situação melhorou, mas nunca foi absolutamente tranquila.  Só que nos dois últimos anos o governo federal tem facilitado e até estimulado a ação dos garimpeiros.  Pelo menos, não tem fiscalizado ou punido as ações.  Está mais difícil para eles agora.

 

David deu as coordenadas desse trabalho documental sobre sua tribo, buscando revelar o mundo Yanomami ao observador de fora, no caso, nós, os espectadores no cinema.  Mesmo que em casa, como acabou sendo o caso.

 

A gente se delicia com as histórias de criação da tribo, que nos soam ingênuas, claro, mas bonitas, poéticas, cheias de fantasia.  O relacionamento das pessoas da tribo, com seus rituais, com as plantas, os rios e cachoeiras, os animais.  Essa simbiose com a natureza, que acolhe, celebra, dá saúde, força e cura, tem alegria.  O perigo é o homem branco, que vem para invadir, sugar da terra o lucro, desagregar.  E, especialmente, contaminar as águas com mercúrio, além de romper o equilíbrio da vida daquele povo.

 

Já é uma longa história de luta pela preservação da comunidade, que parece nunca ter fim, com seus altos e baixos.  É preciso estar sempre alerta e cada vez com mais intensidade.  Infelizmente, para o povo Yanomami.

 

O filme nos faz conhecê-los melhor e nos alerta, mais uma vez, para o que está acontecendo na Amazônia, essa devastação florestal intolerável, que compromete o planeta e sufoca as populações indígenas.



quarta-feira, 8 de setembro de 2021

DE VOLTA PARA CASA

Antonio Carlos Egypto

 




DE VOLTA PARA CASA (Coming Home Again).  Coreia do Sul, 2019.  Direção: Wayne Wang.  Com Justin Chon, Jackie Chung, Christina July Kim, Leesa Kim, John Lie.  86 min.

 

“Do que um filho se lembra melhor, quando tudo o que resta são memórias”.  Este é o título de um ensaio do escritor Chang Rae, também roteirista do filme “De Volta Para Casa”, em parceria com o diretor Wayne Wang.  Como o ensaio se apresenta como autobiográfico, o escritor é também o personagem principal da obra.

 

A narrativa singela e fluida, mas muito consistente, trata de relações humanas que ficaram para trás e de questões que ficaram suspensas por muitos anos.  No retorno, o que resta são memórias, sensações, cheiros e gostos que unem um filho a sua mãe, e também a um pai e a uma irmã, embora com muito menos importância.

 

Sair da Coreia para se desenvolver na América do Norte, obter êxito, deixando tudo para trás, foi uma decisão própria ou uma forma de obedecer às expectativas paternas?  Por trás disso, o possível fantasma de uma adoção? 

 

Chega um momento em que é inevitável encarar a volta, quando a mãe vive um câncer terminal, com muitas dores.  Ela não o chamou de volta e até se surpreende de ser tão central na vida do filho, mas o Ano Novo é a hora certa de estar lá.  Principalmente, porque será uma oportunidade de oferecer à mãe o mesmo jantar tradicional coreano que ela costumava ofertar a todos e que o ensinou a fazer.

 



A gastronomia tradicional aqui tem importantes significados.  É a forma maior de manifestação do afeto, é uma fonte de prazer e um ritual de união familiar.  Que, no entanto, exige a perfeição e não comporta rejeição orgânica, ainda que haja uma doença ou uma ansiedade no meio disso.  Pelo menos para Chang Rae (Justin Chon), torna-se um fracasso intolerável.  Lembranças do passado reforçam isso muito bem.  A ironia é que o câncer da mãe é de estômago.

 

Com o tempo que passa, as memórias se tornam opacas, imprecisas.  Como retornar ao que era, ou retomar o que era?  A intensidade dos afetos se manifesta, mas agora nada parece muito claro.  Se o passado assusta, o tempo para reverter os papéis e cuidar da mãe, que tanto dele cuidou, escoa rápido.  O futuro não parece ser suficiente para um acerto de contas nas relações e no mundo interno do nosso protagonista, de volta às suas raízes. Ao lado de tudo isso, é necessário lidar com a própria questão da identidade, do que se construiu fora, longe, em confronto com as origens.

 

Essa bela temática é muito bem trabalhada pelo diretor Wayne Wang, alternando sutilezas comportamentais com arroubos descontrolados, a enfatizar a ambiguidade das atitudes.  No pano de fundo, os julgamentos, os ressentimentos, os medos e a busca de aprovação.  Um elenco excelente, que tem em Justin Chon e Jackie Chung, a mãe, os grandes destaques, sustenta essa narrativa intimista e pessoal, com muito brilho.



segunda-feira, 6 de setembro de 2021

CIDADÂOS DO MUNDO

Antonio Carlos Egypto

 

 



CIDADÃOS DO MUNDO (Lontano Lontano).  Itália, 2020.  Direção: Gianni Di Gregorio.  Com Gianni Di Gregorio, Giorgio Colangeli,  Ennio Fantastichini, Daphne Scoccia.  91 min.

 

Em tempos de prevalência do mundo rural sobre o mundo urbano, no Brasil, dizia-se que a galinha do vizinho era mais gorda ou punha mais ovos.  É uma maneira de fantasiar sobre aquilo que não se conhece direito, invejar o que não se tem, criar expectativa sobre aquilo que poderíamos ser, ou ter. A comédia italiana “Cidadãos do Mundo”, de Gianni di Gregorio, brinca com questões como essa, de um modo leve, mas também explicativo, quase didático. 

 

Os personagens centrais são três homens idosos, dispostos a mudar de vida, insatisfeitos com o que têm, de uma maneira ou de outra.  Gianni Di Gregorio, diretor, corroteirista e também ator do filme, faz o professor que ensinava latim antes de se aposentar.  E que garante que seus alunos ainda se recordam do que aprenderam com ele.  Os vencimentos de aposentado, porém, não satisfazem.

 

Giorgetto (Giorgio Colangeli) reclama ainda mais da aposentadoria, obtida mais por idade do que por tempo de serviço, já que, ao que parece, ele nunca trabalhou de fato.  Ele, junto com o irmão, herdaram uma banca de frutas, mas não quer saber de trabalhar lá.

 

A partir dessa insatisfação, Giorgetto e o professore se encontram com outro companheiro disposto a mudar de vida: Attilio (Ennio Fantastichini), que não tem aposentadoria, vive de comercializar móveis e objetos antigos. 

 

O trio decide, então, que está na hora de sair da Itália, em busca de um lugar ideal, aprazível, sem grandes problemas climáticos, nem guerras ou terrorismo, onde, com o dinheiro que têm, possam viver melhor, aproveitar melhor a vida.  Que lugar seria esse?  Eles resolvem pedir ajuda a outro amigo/conhecido, que lhes dá informações.  Começando pelo preço da cerveja, em euros.  Escolher o lugar já é um grande problema, porém, os cidadãos do mundo, na verdade, são provincianos, para quem os próprios arredores europeus são desconhecidos e a quem falta tudo para tomar as providências necessárias para tais câmbios de vida.

 




É aí que a narrativa explora o quanto é preciso planejar e considerar tudo o que envolve essa viagem e mudança de país, ainda que não precisem ir para muito longe de Roma.  Desfazer-se de casa e dos objetos, vendê-los para angariar dinheiro, tentar transferir a aposentadoria para outro lugar, livrar-se do passado, dos familiares, do cachorro.  Dá tanto trabalho e vai-se revelando cada vez mais incerto, e duvidoso quanto aos ganhos, que o trio balança.  Cada um a seu modo tem medo do que engendraram.

 

Como toda ação que visa à mudança, novas descobertas surgem, no mundo real e no mundo interno, que interferem nos planos originais.  Fica bem interessante acompanhar o processo vivido por esses três senhores, maduros, porém ingênuos e despreparados para o que se propuseram a fazer.  O espectador vive com cada um deles um pequeno drama, situações que beiram o constrangimento, e a gente sorri, mas lamenta por eles.

 

O que não quer dizer que não encontrarão um modo de resolver a questão que passe pelo humanismo e pela empatia, características que foram marcantes no cinema italiano e que ainda encontramos na filmografia recente do país, como é o caso aqui.

 

Gianni Di Gregorio, diretor do ótimo “Almoço em Agosto”, de 2009, e corroteirista de “Gomorra”, de 2008, bom ator também, compõe com seus companheiros de cena um trio cativante de personagens que têm vida e anseios legítimos enquanto pessoas idosas, que podem ser um tanto trapalhões, mas são boa gente.




domingo, 5 de setembro de 2021

SUK SUK

Antonio Carlos Egypto

 



 

SUK SUK, UM AMOR EM SEGREDO (Twilight’s kiss).  Hong Kong, 2019.  Direção e roteiro: Ray Yeung.  Com Tal Bo Pak, Ben Yuen Hoi, Patra Au Ching, Sluyea Lo Wan.  92 min.

 

“Suk Suk”, o filme chinês (de Hong Kong), aborda a questão homossexual de um ângulo ainda pouco explorado: o da velhice.  Focaliza dois personagens da Terceira Idade, que construíram suas vidas dentro da chamada heteronormatividade.  Ambos se casaram, um permanece vivendo com sua esposa, filhos e netos, é taxista.  O outro se divorciou e se aposentou, mas também convive com filho, nora e neta.  Um encontro casual entre ambos motiva o desejo, mas evolui para um envolvimento amoroso, complicado de ser administrado.

 

A aposentadoria e a velhice podem abrir novas portas e possibilidades, no entanto, no caso deles, um romance parece ser um pouco demais.  Seria possível desafiar valores para encontrar-se plenamente, poder ser quem se é e encontrar a felicidade?

 

O trailler de “Suk Suk” nos lembra de que, em Hong Kong, o casamento homossexual não é reconhecido, nem há qualquer lei que os proteja contra a discriminação.  A homofobia não é criminalizada.  Suponho que a figura da união estável também não exista na legislação de lá.

 

Diante da negação da homossexualidade no contexto social, o envelhecimento é um problema que se manifesta das mais variadas maneiras entre os gays na idade mais madura.  O futuro fica incerto e sujeito a humilhações.

 

O filme caminha por esse universo de questões, colocando um dos protagonistas em contato com um grupo de apoio que reúne homossexuais idosos para compartilhar seus problemas e dificuldades.  Mesmo em busca de reconhecimento e atendimento por parte da lei ou do governo, muitos não querem se expor.  E a solução que está em questão é a da reivindicação de uma casa de repouso exclusiva para homens gays, onde eles poderiam se expressar livremente.

 



A questão religiosa, seja budista, seja cristã, também entra nesse contexto.  A finitude da vida, o que virá depois, como encontrar alguém depois da morte e a maneira como as religiões lidam com a sexualidade gay, mobilizam sentimentos entre os dois apaixonados e na comunidade idosa, também.

 

Ao mostrar o relacionamento dos protagonistas que se envolvem emocionalmente e ao nos pôr em contato com as demandas dos idosos gays, Ray Yeung tece uma trama de sentimentos, tentados, experimentados, reprimidos, sutilmente modulados, que é bonita de se ver.  Tem cuidado, tem delicadeza, tem medos, tem escolhas calculadas.  E, ao mesmo tempo, revela a insensibilidade social para um drama muito verdadeiro.  Envelhecer em família, com afeto, é uma coisa.  Sozinho, isolado, esquecido, é outra.  Ou, ainda, discriminado com seu parceiro.  Às vezes, com dificuldades financeiras reais, embora perceba-se que o nível, mesmo dos pobres, é muito melhor do que o que se vê por aqui.  A miséria não chega a ser material, está na crueldade do preconceito.

 

Um elenco de atores e atrizes muito bons passa esse drama sutil, e talvez pouco conhecido, ao espectador com muita competência.  Num estilo low profile, as revelações vão se dando pouco a pouco, em detalhes, expressões, palavras e gestos.  A discreção dos figurinos e música suave embalam o romance.  O roteiro deu origem a uma narrativa bem montada e dirigida com sutileza oriental.




quinta-feira, 2 de setembro de 2021

O MATEMÁTICO

Antonio Carlos Egypto

 

 



O MATEMÁTICO (Adventures of a Mathematician).  Alemanha/Polônia, 2020.  Direção e roteiro: Thorsten Klein.  Com Philippe Tlokinski, Esther Garrel, Fabian Kocieck, Sam Keely, Joel Basman.  102 min.

 

 

“O Matemático” é uma biografia cinematográfica de Stanislaw (ou, simplesmente, Stan) Ulam (1909-1984), um gênio da matemática, ligado à construção da bomba H e à concepção do primeiro computador.  Foi colaborador do físico Edward Teller (1908-2003) e com ele chegou ao desenho Teller-Ulam, que possibilitou a criação da bomba atômica de hidrogênio.  Ao lado do físico Johnny von Newmann (1903-1957), trabalhou no projeto Manhattan, durante a Segunda Guerra Mundial, sob coordenação de Robert Oppenheimer (1904-1967).  O projeto tratava de conquistar a bomba antes de que Hitler o fizesse e foi em busca desses cálculos que eles possibilitaram o advento do mundo digital dos computadores.

 

Uma figura histórica muito interessante de ser abordada pelo cinema, certamente.  O diretor e roteirista alemão Thorsten Klein adaptou o livro autobiográfico de Stan Ulam, judeu polonês que foi para os Estados Unidos ainda nos anos 1930 e estava em Cambridge, em 1942, quando recebeu o convite de Johnny von Newmann para participar do projeto Manhattan, ultrassecreto, que se desenvolvia em Los Álamos, no Novo México.

 

Com a irmã vivendo a guerra na Polônia, invadida pelos nazistas, e o irmão menor ficando para trás, Stan se dedicou àquilo que seria decisivo para a vitória norte-americana sobre os japoneses, os estudos para a criação das bombas que explodiram em Hiroshima e Nagasaki.  E foi um dos responsáveis pelo poder de destruição da própria humanidade que esses artefatos são capazes de produzir.  Isso aconteceu mesmo após a vitória soviética sobre os nazistas e também prosseguiu após a vitória completa no conflito mundial.  Ou seja, o matemático, depois de um interregno decorrente de uma inflamação cerebral, que exigiu abrir um buraco na sua cabeça,  recuperou-se e acabou voltando àquelas pesquisas.

 



A sua vida foi cheia de questões dramáticas, como essa. Teve um casamento conturbado e a maior de todas: o sentimento de culpa que, de um modo ou de outro, atingiu fortemente todos os cientistas que participaram dessas descobertas.  Dizia-se, também, que Stan Ulam era extrovertido, piadista, aficionado pelo estudo estatístico dos jogos, inclusive o do baralho.  Uma personalidade multifacetada e exuberante.

 

Infelizmente, não é o que se vê no filme “O Matemático”.  O desempenho do ator principal, Philippe Tlokinski, não dá conta desse manancial emocional.  A direção é muito burocrática, não consegue nos passar as emoções que certamente o contexto exige.  Aquilo que poderia ser uma história empolgante fica de uma platitude pouco atraente.  O filme vai contando a sua história linearmente, fazendo alguns cortes que deixam de acentuar aspectos relevantes e nunca alcança o envolvimento emocional indispensável.

 

Perde-se, assim, a oportunidade de explorar melhor uma boa história e um biografado muito importante, tanto no campo das ciências exatas quanto no da História.  Quando faltam as emoções, tudo fica meio opaco, ainda que seja muito bem intencionado, como é o caso de “O Matemático”.