quinta-feira, 28 de julho de 2016

PRÊMIO PLATINO


Antonio Carlos Egypto




Punta del Leste, no Uruguai, foi a cidade onde se realizou a cerimônia de entrega dos Prêmios Platino do Cinema Ibero-Americano 2016, sua 3ª. edição.  Para o próximo ano, está escalada a cidade de Madri, na Espanha.

O Canal Brasil transmitiu a festa na íntegra, num belíssimo e amplo palco de espetáculos.  Boa produção, tecnologia, roupas, chistes, muita música.  E a inevitável mimetização do Oscar.  Mas com uma grande diferença: foi muito fácil concordar com as premiações.  Houve, na minha opinião, uma justiça evidente na escolha dos premiados.  O que nunca acontece no Oscar.

Ficou muito claro o padrão de qualidade que, neste momento, confere ao cinema ibero-americano uma posição respeitável e de destaque, no contexto cinematográfico mundial.  A leva de filmes concorrentes era excelente.


O Abraço da Serpente

O grande vencedor da noite foi o colombiano O ABRAÇO DA SERPENTE, de Ciro Guerra, escolhido como melhor filme, melhor diretor, montagem, fotografia, direção de arte, som e trilha sonora.  Um grande e merecido reconhecimento para um filme muito bem concebido e realizado, que buscou nos meandros amazônicos as realidades culturais indígenas, em dois tempos distintos e em sua relação com os cientistas e com os exploradores da região.  Os mergulhos vão de botânicos a místicos, revelando todo um universo intrigante e desconhecido aos espectadores.  A crítica do filme está disponível no cinema com recheio, postada em fevereiro de 2016.

O prêmio de melhor documentário foi para o excepcional O BOTÃO DE PÉROLA, de Patrício Guzmán, do Chile.  Maravilha!  (Crítica postada em maio de 2016).  O de melhor roteiro ao filme chileno O CLUBE, de Pablo Larraín (crítica postada no cinema com recheio em outubro de 2015), que aborda a polêmica questão da pedofilia na igreja católica com muita competência.  No seu intimismo está toda uma estrutura em questão.

O melhor filme de diretor estreante foi para o guatemalteco IXCANUL, que significa vulcão, em língua indígena, dirigido por Jayro Bustamante com talento de veterano.  Uma história muito bem construída, de concepção moderna, relata um universo complexo, em que tradições se chocam com demandas da atualidade.  Um grande filme, sem dúvida.

O prêmio especial de Direitos Humanos, para filmes que abordam educação e valores, foi para o brasileiro QUE HORAS ELA VOLTA?, de Anna Muylaert, nosso melhor produto cinematográfico de 2015 (crítica no cinema com recheio em agosto de 2015).


Guillermo Francella

Também parece ter havido justiça na premiação de ator e atriz.  Guillermo Francella, um conhecido ator de comédia na Argentina, brilhou num papel dramático terrível, de um homem que comanda com seus familiares um negócio de sequestros.  O filme é O CLÃ, de Pablo Trapero, reconhecido diretor argentino de trabalhos que fazem denúncias e convidam à reflexão.

PAULINA, outro filme argentino, de Santiago Mitre, boa realização, mas muito polêmico, rendeu o prêmio de atriz a Dolores Fonzi.  Uma boa interpretação para um papel complicado, o de uma mulher vítima de violência, que toma um rumo inesperado e discutível, com o qual as outras mulheres não se identificam.

Dolores Fonzi

O prêmio de melhor filme de animação coube a ATRAPA LA BANDERA, de Enrique Gato, da Espanha.  Esse não posso comentar porque não vi .

A grande homenagem da noite, o prêmio de Honor pelo conjunto de trabalhos dedicados ao cinema, foi especialmente justo ao escolher o argentino Ricardo Darín, um dos melhores atores em atividade no mundo do cinema, hoje em dia.  E que tem o mérito de se envolver em uma filmografia muito bem escolhida, para a qual ele contribui decisivamente com seu talento.  Pena que o filme espanhol TRUMAN, de Cesc Gay, em que Darín atuou ao lado de Javier Cámara, tenha sido indicado, mas não tenha levado nenhum prêmio. É que havia muita coisa boa em disputa (a crítica de TRUMAN foi postada no cinema com recheio em abril de 2016).


Ricardo Darín

É muito gratificante constatar o bom momento da cinematografia latina, americana e europeia, da Península Ibérica, e a diversidade dos trabalhos premiados, ainda que o Brasil tenha tido participação pequena, embora relevante, no evento.




sábado, 23 de julho de 2016

MÃE SÓ HÁ UMA


Antonio Carlos Egypto




MÃE SÓ HÁ UMA.  Brasil, 2015.  Direção e roteiro: Anna Muylaert.  Com Naomi Nero, Matheus Nachtergaele, Dani Nefussi, Daniel Botelho, Laís Dias, Luciana Paes, Helena Albergaria.  82 min.



Após o êxito do filme “Que Horas Ela Volta?”, em 2015, Anna Muylaert nos apresenta um novo e bem estruturado trabalho.  E que, mais uma vez, mergulha no universo familiar e o conecta com o contexto social. 

O ponto de partida que serviu de livre inspiração para o filme “Mãe Só Há Uma”, é uma história muito conhecida e divulgada: o caso real do menino Pedrinho, amplamente noticiado e que emocionou o público, em 2002.  Para quem não se lembra, ele havia sido roubado na maternidade, em Brasília, foi educado e amado pela mulher que praticou o sequestro.  Vivia com ela, o marido e uma outra filha, que também se soube ter sido igualmente roubada.  No entanto, a família biológica de Pedrinho continuou à sua procura e acabou encontrando-o, já adolescente, dezesseis anos depois.  Foi uma mudança brusca de vida para todos os envolvidos, porém, tudo aparentemente acabou se encaixando.  A mulher que cometeu o crime foi condenada e presa.




Contar essa história já seria bastante emocionante para um filme.  E seria sempre possível acrescentar ingredientes, questionamentos, incertezas.  Ou apelar para o sentimentalismo, com vistas a levar as plateias ao choro. O filme de Anna Muylaert avança muito mais.  Cria uma ficção que une esse fato gerador à questão da identidade, da aceitação e do convívio com a diversidade, envolvendo os preconceitos que perpassam pelo tecido social, em momento de extrema fragilidade afetiva para os personagens centrais da trama.

Reencontrar e redescobrir um filho perdido só aos 17 anos de idade, após a busca de uma vida, por meio de um exame de DNA, decorrente de uma denúncia anônima, já tem uma dimensão fantástica e desafiadora. Um jovem em pleno processo de afirmação de características de personalidade, desejos e buscas, mudar de nome, de família, de casa e de escola é algo tão mobilizador quanto assustador.  Que pode produzir muito sofrimento e respostas surpreendentes.  Assim como poderia significar uma descoberta gratificante, quem sabe até uma aventura empolgante da juventude.  As possibilidades são imensas.  E imprevisíveis.




O roteiro que Anna Muylaert elaborou para “Mãe Só Há Uma” exacerbou o conflito da situação, trazendo elementos inesperados, como a perspectiva de gênero que o garoto resolve radicalizar justamente quando seu mundo vira de cabeça para baixo.  Para os pais que esperaram por tantos anos pelo filho tão desejado e buscado, como será conviver com um adolescente que eles desconhecem e que gosta de usar vestidos e pintar unhas, por exemplo?

A forma como essas questões se articulam na trama do filme é muito inteligente e mexe com os espectadores.  O final é precioso: o afeto e a aceitação podem vir de onde menos se espera.

O papel complicado desse personagem adolescente às voltas com seus conflitos internos e sua relação com duas histórias, duas famílias, o preconceito e a rejeição social, coube ao jovem ator Naomi Nero.  Ele se entrega ao personagem e convence.




Dani Nefussi vive muito bem o papel duplo das mães Glória e Aracy, enquanto Matheus Nachtergaele interpreta o pai, com elementos de machismo, de preconceito e de opressão, ao mesmo tempo que de insegurança, de impotência e até de subserviência.  Ele é um ator que consegue transitar por universos de personagens e situações muito diversos, sempre com grande habilidade.

Não só esses protagonistas, como todo o elenco, estão muito bem, valorizando em cada personagem essa narrativa tão propícia à reflexão, em um exemplo de grande qualidade do cinema brasileiro atual.

  

quarta-feira, 20 de julho de 2016

UM DIA PERFEITO


Antonio Carlos Egypto




UM DIA PERFEITO (A Perfect Day).  Espanha, 2015.  Direção: Fernando Léon de Aranda.  Com Benício Del Toro, Tim Robbins, Olga Kurylenko, Mélanie Thierry.  96 min.



“Um Dia Perfeito” é um filme espanhol, falado em inglês e nas línguas locais do conflito que aborda, baseado no romance Dejarse Llover, de Paula Farias, escritora, médica humanitária, ex- presidente da Ong Médicos Sem Fronteiras.

O argumento enfoca agentes humanitários de resgate, atuando na guerra dos Bálcãs, 1995.  Esses agentes têm por missão salvar vidas, resolver questões humanitárias, em meio aos conflitos da guerra.  São pessoas dedicadas, persistentes, que têm de enfrentar burocracias paralisantes, assistir à inoperância da ONU na região e manter o humor, em meio a circunstâncias trágicas.




Como diz o diretor Aranda, “Salvar vidas não é um ato heróico em si.  O heroísmo vem da persistência”.  O que explica que os personagens retratados no filme sejam figuras absolutamente corriqueiras, mas colocadas num contexto exasperante e que assim se aguentam e sobrevivem de ajudar os outros.

A região conflagrada já está em procedimentos de paz, mas tudo está muito confuso por lá.  Um defunto foi arremessado no único poço que abastece uma região, para contaminar a água que serve à população local.  Para tirar esse corpo de lá, será preciso obter uma corda, o que pode não ser uma tarefa simples.  Há as minas colocadas nas estradas, ao lado de vacas que bloqueiam a passagem.  E há, é claro, uma burocracia ilógica e incompreensível.  Como é toda burocracia, diga-se de passagem. 



Um bom assunto para uma comédia ácida, que se vale da ironia e da farsa para nos revelar, uma vez mais, os absurdos das guerras e dos mecanismos internacionais de controle a elas associados.

Um elenco de atores e atrizes de peso consegue dar o tom apropriado a essa história, que é cômica porque também é trágica.  Benício Del Toro e Tim Robbins, em ótimos desempenhos, nos colocam no fulcro da questão, olhando para o poço contaminado, levando um menino em busca de uma bola, percebendo que as cordas muitas vezes estão ocupadas pelos enforcados.  A atriz ucraniana Olga Kurylenko e a francesa Mélanie Thierry são os destaques femininos.  Muito convincentes.  O filme foi exibido na Quinzena dos Realizadores, em Cannes 2015, e venceu o Prêmio Goya, o Oscar espanhol, de melhor roteiro adaptado.



sábado, 9 de julho de 2016

JULIETA

  
Antonio Carlos Egypto




JULIETA (Julieta).  Espanha, 2016.  Direção e roteiro: Pedro Almodóvar.  Com Adriana Ugarte, Emma Suárez, Rossy de Palma, Daniel Grao, Imma Cuesta, Darío Grandinetti.  99 min.


O cineasta espanhol Pedro Almodóvar é um autor cinematográfico que tem um universo próprio, a marca registrada que o identifica junto ao público e à crítica.  Isso gera expectativas específicas e uma avaliação que, necessariamente, remete ao conjunto da obra.  Não importa tanto saber se o filme é bom ou não, mas se ele corresponde ao estilo almodovariano de filmar, se se pode reconhecer o diretor no trabalho apresentado.  Lembra um pouco a obsessão por encontrar a figura de Hitchcock em cada filme dele, já que ele fazia aparições rápidas em todos eles.

“Julieta”, o novo filme de Almodóvar, é uma produção muito bem cuidada, com excelente elenco, e que conta uma história com muita competência.  Seria um filme típico do diretor?  Seu estilo característico está lá?  Penso que sim, mas com restrições. 




Para começar, temos o mergulho no universo feminino.  As mulheres sempre foram os melhores personagens almodovarianos, extravasam seus conflitos e sua complexidade emocional, mantendo uma aura misteriosa e algo inacessível.  “Julieta” é um filme feminino até a medula.  A questão da maternidade com a perda e o distanciamento dos filhos, ou filhas, ocupa o centro da narrativa.  Tem também o não-dito, o não-trabalhado, a culpa, elementos que complicam ou inviabilizam as relações.

Estamos no terreno do melodrama, em que Almodóvar se move com absoluta naturalidade e com tranquilidade.  O drama é forte e complexo, como costuma ser nos filmes dele.  O que falta aqui é aquela boa dose de humor que nos faria apaixonar pelos personagens.  O distanciamento é maior e o estranhamento, menor.




Sim, faltam figuras claramente deslocadas, apartadas da sociedade.  Aquilo que os norte-americanos costumam caracterizar como loosers.  Não que não haja perdas – e muito fortes – em “Julieta”, mas elas se dão no campo da chamada normalidade, ou próximo dela.

Aqui, o trabalho de Pedro Almodóvar se faz a partir da adaptação de três contos da escritora canadense Alice Munro, não é como na maioria dos casos, em seus filmes, um roteiro original.  No entanto, o cineasta transforma os textos que adapta em situações almodovarianas com facilidade, como fez em “Carne Trêmula”, de 1977, e “A Pele que Habito”, de 2011.  Em “Julieta”, foi mais discreto, talvez mais fiel aos textos originais, não sei.

As cores fortes, berrantes, exageradas, que costumam marcar os filmes de Almodóvar, estão presentes, embora um pouco mais discretas.  Os elementos de cena, objetos, decoração, vestuário, estão mais contidos em “Julieta”.  De modo geral, as extravagâncias são bem menores do que de costume.  Talvez porque a sexualidade, que é seu tema permanente e recorrente, aqui se concentre na maternidade e na dor. 




Há que se destacar, ainda, que os conflitos são cercados por mistérios nunca claramente explicitados.  São mais sugeridos ou mencionados do que mostrados, como é o caso das amigas inseparáveis e do retiro espiritual que fanatizou Antía, a filha de Julieta, e transformou a vida dela e de todos à sua volta.  Há uma enormidade de coisas que ocorrem num trem em movimento, figuras que se movem fora dele, como um cervo e um homem.  Há a pesca e o mar, que são paisagem, morte e culpa. 

“Julieta” é um filme menos transgressor do que a maioria da produção almodovariana.  Nesse sentido, pode frustrar expectativas dos admiradores habituais do cineasta, que são muitos.  Mas admiradores, críticos ou detratores de Almodóvar, terão que reconhecer que, para além das expectativas, “Julieta” é um belo filme.



quarta-feira, 6 de julho de 2016

OS CAMPOS VOLTARÃO


Antonio Carlos Egypto




OS CAMPOS VOLTARÃO (Torneranno i Prati).  Itália, 2014.  Direção e roteiro: Ermanno Olmi.  Com Claudio Santamaria, Alessandro Sperduti, Francesco Formichetti, Andrea di Maria.  80 min.



Como lembrar as sangrentas batalhas que marcaram a Primeira Guerra Mundial, agora que se rememora o centenário daquela carnificina?  Para o veterano diretor italiano Ermanno Olmi não foi difícil.  Seu pai lutou na Primeira Guerra e lhe contava muitas histórias que viveu no front.  Essas histórias deixaram marcas na juventude de Olmi e solidificaram nele um espírito humanista, antibélico.

A melhor forma de abordar o absurdo dessa guerra no cinema, para um diretor cunhado pela tradição neorrealista, era, naturalmente, recorrer a essas narrativas paternas, trazendo o cotidiano infernal do front de batalha em situações diversas, concentradas num único set e num único dia.  Valeu-se o tempo todo dessas histórias reais, vividas ou presenciadas, narradas pelo pai.




Estamos em 1917, acompanhando um grupo de soldados italianos no front de batalha, em Altipiano, nordeste da Itália. Eles estão em um bunker, cercados por nevascas e pelo exército austríaco, que procura dominá-los.  Mas, no início do filme, há espaço para apreciar a beleza dos campos cobertos de neve e até a beleza do canto de um dos soldados italianos que, com sua música, chega até os contendores da guerra, que o aplaudem e pedem mais.

O decorrer da experiência trará imagens, situações e sentimentos muito menos edificantes: o medo, a saudade da família, a fome, o convívio com os ratos, as doenças, os bombardeios, exibidos com minucioso realismo e despojamento, em longos planos-sequência não deixam margem a dúvida sobre a insensatez das guerras.  E o caráter infra-humano, anti-humano, que é sua marca registrada.




Em econômicos 80 minutos, o filme diz tudo o que tem a dizer, sem pregar absolutamente nada.  É pura observação, informação visual, reflexão sobre as pequenas ações e comportamentos de vida na guerra.  Para isso, se vale de uma fotografia deslumbrante e de um cenário que cria um ambiente claustrofóbico e opressivo, sem que haja dominadores ou opressores.  É a própria guerra que os oprime.

Um filme espetacular, de inegável beleza artística.  Eu diria que é a terceira obra-prima desse diretor, de quem se conhece pouca coisa, mas o que aqui chegou é primoroso.  “A Árvore dos Tamancos”, de 1978, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, com todos os méritos.  “A Lenda do Santo Beberrão”, de 1988, levou o Leão de Ouro em Veneza e é outra maravilha.  Com “Os Campos Voltarão”, Ermanno Olmi apenas reforça e reafirma essa capacidade de produzir coisas deslumbrantes sem qualquer afetação ou ornamentação.



Para quem nasceu em 1931 e começou a dirigir desde o final dos anos 1950, Olmi até que fez pouco cinema, mas sua contribuição para ele é admirável e não poderá ser esquecida.  E que fôlego teve para realizar esse filme tão sofisticado na sua simplicidade, aos 83 anos de idade.  Muito bonito.