terça-feira, 29 de outubro de 2013

CINEMA GREGO

                       
Antonio Carlos Egypto


É fato sabido que as crises econômicas, os regimes políticos totalitários, a censura, as guerras, estimulam a criatividade artística.  Grandes expressões da arte resultaram de momentos de crise, em sentido coletivo, mas, também, individual.  Crises existenciais são geradoras de grandes obras.

Já que a crise é também oportunidade de rever, repensar, ressignificar, buscar alternativas, o que se poderia esperar da produção cinematográfica do país que foi mais abalado, na comunidade europeia, pela crise do euro?

Miss Violence

A Grécia, para começo de conversa, veio para a 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com um número expressivo de títulos, colhidos nos festivais pelo mundo.  Uma presença bem mais significativa do que habitualmente acontecia no evento paulistano.  E, a julgar pelos cinco filmes que vi, veio com força e qualidade.

O melhor deles, para mim, foi “Miss Violence”, segundo longa-metragem dirigido por Alexandros Avranas, vencedor do Leão de Prata de direção e melhor ator em Veneza.  O filme, corajosamente, expõe a violência, o abuso e a prostituição forçada das mulheres de uma família, em suas várias gerações, e todas as consequências trágicas que daí resultam, com total realismo e procurando produzir suspense.  A crise está presente no desemprego e na dificuldade de sobreviver que agravam o quadro ou, por outro lado, servem para tentar justificar ou validar a monstruosidade apresentada.

A outra leitura é possível, esta alegórica da situação, se olharmos para a família como representante da sociedade como um todo.  A carência alimenta a opressão, o estupro, a exploração das pessoas e da mãe-pátria.  Também faz sentido.  E uma coisa não exclui a outra.  Ao tratar do tema da exploração sexual da mulher, o contexto subjacente é o da crise social e moral em que se vive na sociedade grega atual.  Mais difícil de aceitar é a visão de uma patologia individual determinando os fatos.  Há um eloquente sentido de opressão coletiva, que se evidencia no desenrolar da trama e nas interpretações do elenco.

Todos os Gatos São Brilhantes

A crise da sociedade grega é muito mais evidente no filme “Todos os Gatos São Brilhantes”, da cineasta novata Constantina Voulgaris.  Ali, uma artista tenta ganhar a vida como baby sitter, seu namorado ativista, convicto e radical, vai preso e se recusa a compactuar com o regime que ele sente que oprime o povo.  Há black blocs pelas ruas e todo um clima político em que os jovens têm dificuldade para encontrar seu lugar no país, e se puderem saem dele.  Mas para onde, se a crise está por todos os lados, pelo menos para qualquer lado das fronteiras que se olhe?  Em tempo: no filme não há gatos nem brilho.  Mas a fita flui bem, é expressiva desses tempos difíceis.

O Garoto que Come Alpiste

“O Garoto que Come Alpiste”, outro primeiro longa, desta vez do diretor Ektoras Lygizos, é uma experiência mais radical.  É um filme sobre a fome, a impossibilidade de trabalhar e obter dinheiro, ainda que seja pouco, vividos por um jovem de 22 anos, cantor lírico, em Atenas.  Embora baseado em texto literário antigo, a experiência do jovem remete, em tudo, à crise atual.  Mostrado em situação limite, e fechada, sem saídas, com direito a cenas de grande impacto e tudo o mais, o filme é um soco no estômago.  Vazio, ainda por cima.

“Patos Selvagens”, mais um primeiro longa, desta vez de Yannis Sakardis, trata de um tema mais específico. A ganância capitalista na área das telecomunicações, mesmo sabendo que pode produzir doenças graves nas pessoas, mantém seus comportamentos e abafa qualquer denúncia para garantir seus lucros.  A solução, segundo o filme, é uma só: as pessoas se unirem para resistir.  Nisto está sintonizado com o sentimento coletivo do país.  Resistir a isso, e a tudo o que coloca a cidadania de quatro, nessa crise.

Patos Selvagens

O quinto e último filme grego que pude ver nesta Mostra refere-se a uma outra dimensão.  “Meteora” vai em busca de monastérios ortodoxos situados acima de pilares de arenito, suspensos entre o céu e a terra, conforme explica a sinopse que consta do catálogo da Mostra.  Aqui, o que se vai viver é a relação entre a fé, o afeto e o desejo sexual humanos, presentes nas figuras de um casal de religiosos.  Mesmo separados em duas montanhas de pedras diferentes, uma para cada sexo, e uma escadaria interminável para galgá-las, haverá modos de se encontrar e viver essa história de amor.

Meteora

“Meteora” é o segundo longa do diretor Spiros Stathoupoulos.  É o filme mais bonito visualmente dessa leva de gregos.  Tem locações belíssimas, um clima que o situa fora do mundo real e uma muito eficiente atuação do desenho de animação, que se insere ao longo de toda a trama, pontuando o imaginário, o temido e o desejado. O fato de se distanciar tanto da realidade atual da Grécia não significa, no entanto, que não dialogue com ela.  A busca da beleza, do amor e da fé, não deixa de ser um caminho alternativo, idealizado, quando o mundo real parece tão duro de enfrentar.

Vistos no conjunto, esses filmes gregos de novos diretores mostram que está germinando um novo cinema por lá.  Ninguém espere a sofisticação e a estética maravilhosa do mestre grego do cinema, Theo Angelopoulos (1936—2012), é claro.  Mas nem é possível, mesmo, exigir tanto de jovens cineastas.  Que o cinema grego atual mostra talento, não há dúvida.  Isso é muito promissor. 



segunda-feira, 28 de outubro de 2013

GUIMARÃES NA MOSTRA

                         
Antonio Carlos Egypto


Em 2003, em viagem de turismo a Portugal, tive a oportunidade de passar um dia em Guimarães, a cidade onde Portugal nasceu.  Caminhei pelo mais antigo monumento nacional português, o castelo de Guimarães, do século X, o seu centro histórico, a praça principal, o Paço dos Duques, igreja, arcos e ruas históricas.  As imagens daquele passeio e da bela cidade, que exala história por todos os poros, ficaram como uma bela lembrança em minha mente.  Lembrança reavivada agora, na 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ao assistir a dois filmes produzidos em Guimarães, na condição de capital europeia da cultura 2012.



O primeiro deles, “Centro Histórico”, celebra a cidade do norte de Portugal, em quatro episódios distintos, conduzidos por diretores consagrados.  O finlandês Aki Kaurismaki põe em cena um dono de um pequeno restaurante, de comida simples e sem fregueses, que vê seu vizinho prosperar.  As cores de interiores fortes e seus personagens deslocados, sempre às voltas com o insucesso, marcantes no seu cinema, frequentaram assim as ruas de pedra de Guimarães.

O português Pedro Costa fez um episódio só compreensível para quem conhece o seu cinema e um personagem específico de seus filmes.  Não pude apreciar o seu trabalho.

VICTOR ERICE

O espanhol Victor Erice se destacou, ao resgatar a história de uma fábrica de tecidos tradicional, que por anos a fio empregou gerações de operários e depois fechou.  Os depoimentos dos que lá viveram e trabalharam revelam um mundo que já não existe mais, que já não é possível, do qual se podem ter lembranças protetoras, mas também amargas, de frustração e falta de perspectivas.  Uma enorme foto do refeitório da fábrica, coalhado de operários que não sorriem, é a marca visível do episódio.

O último pequeno episódio, chamado “O Conquistador Conquistado”, foi feito por Manoel de Oliveira.  Aqui, a cidade e suas muralhas são mostradas em seus encantos por um grupo de turistas e seu guia.  Culmina na estátua de D. Afonso Henriques, que conquistou a chefia do condado portucalense, dando início ao processo de independência de Portugal, em 1128.  O conquistador, aqui, fica à mercê dos flashes contínuos dos turistas, desta vez por eles conquistado.  Mais uma pequena joia do mestre português do cinema.

PETER GREENAWAY

Outro filme da mostra especial Guimarães 2012 foi “3X3D”, que, como o título indica, mostra três visões do cinema em 3D.  A primeira e espetacular apresentação coube ao cineasta britânico Peter Greenaway, que explora a história da cidade de Guimarães, atravessando dois milênios ao redor do Paço dos Duques de Bragança, corporizando seus personagens marcantes e explorando visualmente, com muito brilho, os recursos do 3D.  Artista plástico que é, Greenaway deu uma aula de como produzir beleza com a nova tecnologia, em que o jogo de espelhos e a divisão das imagens refletidas encanta.



Depois desse episódio, o impacto dos dois outros inevitavelmente será menor.  Mas o português Edgar Pêra encontrou um cativante caminho, ao explorar a evolução tecnológica do cinema até chegar ao 3D, por meio do público, que ele classifica e que acompanha essa evolução reciclando comportamentos e expectativas dentro de um cinema de Guimarães.  Também faz um uso atraente do recurso 3D.

O último episódio coube a Jean-Luc Godard, inovador histórico do cinema, que vem de há algum tempo levantando questões filosófico-ideológicas, em relação ao mundo e ao cinema, tentando fazer o espectador pensar e olhar para o que ele não vê.  Com isso, se eximiu de explorar o recurso 3D do ponto de vista técnico.  Se o episódio fosse em 2D, não faria qualquer diferença.

MANOEL DE OLIVEIRA

O produtor dos dois filmes aqui citados comentou numa das sessões da Mostra que a intenção dele era de que Manoel de Oliveira, aos 104 anos, filmasse seu episódio em 3D.  Seria um feito e tanto: o único diretor que iria do cinema mudo ao 3D.  Mas não obteve êxito.  Manoel de Oliveira não quis filmar em 3D.  Argumentou que essa tecnologia aproxima demais o cinema da realidade e, quanto mais real for o cinema, menos arte ele será.



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os Belos Dias

Tatiana Babadobulos

 
Os Belos Dias (Les Beaux Jours). França, 2013. Direção: Marion Vernoux. Com: Fanny Ardant, Laurent Lafitte, Patrick Chesnais, Jean-François Stévenin, Fanny Cottençon. 94 minutos

Talvez porque a expectativa de vida da população tenha aumentado, talvez porque a população esteja envelhecendo, já que as pessoas estão tendo menos filhos. Há vários motivos para se falar, cada vez mais, na Terceira Idade. Aliás, há cada vez mais motivos para se falar com a Terceira Idade.

O cinema encontrou o foco e aborda o modo como essas pessoas vivem. Os realizadores retratam os idosos na tela grande de diversas maneiras, seja provando o romance, tal como fez Michael Haneke, em “Amor”, seja mostrando como eles vivem, como se relacionam com a família.

Baseado no romance “Une jeune fille aux cheveux blancs’’ (“Uma jovem mulher de cabelos brancos”), de Fanny Chesnel, “Os Belos Dias” (Les Beaux Jours) traz a musa do cinema francês, Fanny Ardant, no papel de Caroline, uma mulher de 60 anos, casada, com duas filhas, e recém-aposentada.

Enquanto sofre com a morte de sua melhor amiga, e também por ter deixado de trabalhar como dentista ao lado do marido, ganha das filhas a matrícula em um clube de aposentados e idosos chamado Les Beaux Jours, título original do longa-metragem.





O problema é que Caroline não está interessada em frequentar cursos de ioga, de computação ou até mesmo de degustação de vinho e cerâmica. Mas é dentro do tal clube que ela redescobre o romance. Ela se envolve com um dos professores, que tem a idade de suas filhas.

O longa dirigido por Marion Vernoux traz imagens belíssimas, como a sequência que se passa dentro do carro. “Os Belos Dias” retrata uma típica família francesa, mas que poderia ser uma brasileira.

Tem também sensibilidade de comunicar como os idosos vivem de maneira original. E traz ainda a reflexão sobre a tal Terceira Idade, sem ser tabu. Afinal de contas, nem sempre as pessoas se preparam psicologicamente para viver com tanto tempo livre.

As filhas da protagonista nem perguntaram se a mãe gostaria de frequentar o tal clube, ou se ele preferiria ficar em casa sem fazer nada, ou simplesmente assistindo a filmes na televisão. Acham que é preciso se ocupar.


“Os Belos Dias” dialoga não apenas com os idosos, mas também com aqueles que, quem sabe, um dia chegarão lá. É uma ótima reflexão para se ter sobre o que fazer no dia depois de amanhã. Discute também sobre o fato de o jovem, ao contrário, não fazer absolutamente nada de útil, só pensar no aqui e agora.

No final de semana de estreia na França, o filme levou mais de 200 mil pessoas aos cinemas, arrancando elogios de público e crítica.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

37ª. MOSTRA

                        
Antonio Carlos Egypto





Já começou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em sua 37ª. edição.  Uma longa vida dedicada ao cinema de todo o mundo, aos destaques dos principais festivais, à revelação de novos talentos de todos os cantos, à divulgação do cinema de autor e às retrospectivas de grandes mestres, à difusão do cinema nacional, à oportunidade de pensar, discutir e publicar cinema.  A gente fica até aturdido de tanta oferta.  São cerca de 350 filmes, exibidos em mais de 20 espaços, entre cinemas, espaços culturais e museus, além da itinerância que o SESC promoverá de alguns títulos, em mais 10 cidades do Estado de São Paulo.

Retrospectivas dedicadas a Stanley Kubrick, com a exibição de seus filmes e uma bela exposição sobre sua obra, programada para permanecer no Museu da Imagem e do Som até janeiro de 2014;  Eduardo Coutinho, nosso grande documentarista; Lav Diaz, o diretor filipino que faz filmes longuíssimos, impraticáveis de se ver durante o período da Mostra, a menos que se desista de muita coisa.  Sessões ao ar livre, com orquestra no Auditório Ibirapuera, no vão livre do MASP e no Anhangabaú estão previstas.

Apresentações especiais de filmes dos grandes cineastas Yasujiro Ozu, Alain Resnais, Valério Zurlini e René Clement, também deliciarão os cinéfilos.  Filmes que abordam a linda Guimarães, a cidade portuguesa que foi capital europeia da cultura em 2012, também fazem parte da Mostra.  O encerramento, que promete grandes emoções, fica a cargo de “Que Estranho Chamar-se Federico – Scola conta Fellini”,  de Ettore Scola, sobre o grande Feliini, que foi seu amigo.   A abertura foi o filme dos irmãos Coen “Inside Llewyn Davis”, grande prêmio do júri em Cannes.  As sessões de debate Os Filmes da Minha Vida, que viram livro, estarão acontecendo também.  É um cardápio capaz de fartar os mais ávidos e os mais exigentes até o final de outubro, e um pouco mais, com a repescagem que vem em seguida.  Vamos à Mostra.




segunda-feira, 14 de outubro de 2013

GRAVIDADE

                         

Antonio Carlos Egypto



GRAVIDADE (Gravity).  Estados Unidos, 2013.  Direção: Alfonso Cuarón.  Sandra Bullock, George Clooney, Ed Harris.  91 min.


Lançamento muito badalado, e apontado como o grande filme da temporada, é “Gravidade”, superprodução norte-americana, dirigida pelo mexicano Alfonso Cuarón. Se o enfoque for a tecnologia empregada no filme e a capacidade de gerar sensações nos espectadores, podemos concordar.  Muito esforço, muito dinheiro empregado e muito tempo, soluções criativas e até inovadoras em efeitos especiais, são alguns trunfos que podem ser creditados a essa produção.



Belas imagens remetem à imensidão do espaço e à relação do ser humano com um ambiente, onde é impossível sobreviver na ausência dos recursos gerados pela humanidade para a exploração espacial.  Na tela IMAX e em 3D, a dimensão do espaço sideral tem grande impacto.  Penetra-se no cosmos e vive-se a aventura e o risco da missão espacial que envolve dois astronautas, interpretados por Sandra Bullock e George Clooney.  Se eles ficam à deriva no espaço, nós ficamos também.  Esse é o maior interesse que o filme pode despertar, o espectador participa da aventura.  Isso pode ser ainda mais impactante numa sala 4D, como a do Shopping JK Iguatemi, em São Paulo, em que a poltrona balança, ventos atingem o espectador e o ambiente fica nublado, acompanhando o que o filme mostra.

Fantástico, porém, fica com cara de parque de diversões, como os de Orlando.  Entretenimento, aventura, medo e calafrios, dentro e fora da tela.  Pode ser um motivo para que algumas pessoas possam finalmente decidir sair de frente da TV para ir ao cinema.  O que é muito bom!  Mas não significa que estejamos diante de um grande filme, muito menos do melhor da temporada.



O roteiro é frágil, as situações tão inusitadas, que é difícil avaliar as próprias interpretações dos atores, exceto pela sua entrega ao papel.  A Dra. Ryan (Sandra Bullock) é a protagonista, a cientista tão perdida no espaço quanto na própria vida terrena.  Isso pode se relacionar à pequenez do ser humano diante do cosmos, mas também, diante de suas perdas pessoais e, no fim das contas, diante de si mesmo.

O papel de George Clooney, o astronauta experiente Matt, é pequeno e passa ao largo dessas questões.  Ele dá o toque de humor e trivialidade que se pretende possível até mesmo nas situações mais dramáticas e que se relacionam à morte iminente.



  O gênero de “Gravidade” é muito mais o disaster movie do que o filme filosófico.  Mas tem sacadas interessantes, quando move a cientista americana rumo às estações espaciais russa e chinesa.  Mesmo com treinamento na operação dos equipamentos russos, fica difícil apertar botões quando eles aparecem grafados em chinês.  Mesmo compartilhando o universo, a humanidade não chega a se entender.  Uma chuva de detritos, decorrente da destruição de um satélite por um míssil russo, atinge o ônibus espacial dos Estados Unidos.  Algo puramente casual, improvável e sem intenções bélicas.  Mas remete à Guerra Fria, que estimulou e potencializou a corrida espacial.

O maior número de espectadores desse filme, no entanto, não vai se preocupar com questões como essas.  Vai mergulhar nas sensações e pronto.  Se não fosse assim, iria rever “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, na retrospectiva dedicada a Stanley Kubrick, na 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ao invés de se entusiasmar por uma aventura espacial com Sandra Bullock.


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

OS BELOS DIAS

                         
Antonio Carlos Egypto




OS BELOS DIAS (Les Beaux Jours).  França, 2013.  Direção: Marion Vernoux.  Com Fanny Ardant, Laurent Laffite, Patrick Chesnais, Jean-François Stévenin, Catherine Lachens.  94 min. 


A sempre bela, e talentosa, Fanny Ardant, no papel de Caroline, é a protagonista de “Os Belos Dias”, mais um filme que se debruça sobre questões da chamada Terceira Idade, em tempos de envelhecimento populacional mundial.

Caroline chega aos 60 anos e decide se aposentar, sem saber muito bem o que fazer com o tempo que agora é o que ela mais tem.  Claro, é o momento de repensar a vida, os caminhos existenciais.  Ocorre que a todos parece incomodar esse tal tempo livre dos idosos.  Numa sociedade que vive correndo contra o tempo, parece uma provocação.  Como o marido, vivido pelo ótimo ator Patrick Chesnais, continua ativo em seu trabalho, parece haver aí um problema.



“O que minha mãe vai fazer da vida?”, devem ter pensado suas duas filhas, na faixa dos 30 anos de idade.  Então, nada melhor do que oferecer a ela, como presente, a inscrição num clube dirigido à Terceira Idade.  Lá, onde ela poderá frequentar com alegria, desde aulas de informática ou cerâmica, a bailes com música de sua época.  Parece perfeito!  E o nome do clube revela essa pretensão de oferecer o melhor, o mais perfeito: Os Belos Dias.

Só que ninguém perguntou a Caroline se era isso que ela queria ou que poderia fazê-la feliz.  Ela frequenta o tal clube sem o menor entusiasmo, sentindo-se um peixe fora d’água e sem paciência para o clima do ambiente.  Até que o professor de informática, um jovem com cerca de 30 anos, como suas filhas, Julian (Laurent Laffite) demonstra interesse por ela e lhe passa uma cantada, como ela diz.  Quem sabe daí belos dias, de fato, poderão surgir.  Mas também novos conflitos e problemas.  Desafios importantes e verdadeiros, que irão preencher essa nova fase da vida da personagem.



O filme, dirigido por Marion Vernoux, capta muito bem os dilemas de Caroline e ressalta o que está em jogo nos sentimentos, inseguranças e ambiguidades da personagem.  Sem se esquecer de mostrar o dinamismo e a alegria da descoberta.

Uma mulher, aos 60 anos de idade, hoje em dia, pode estar em sua plenitude, até mesmo amorosa, e talvez não caiba nos estereótipos com que se procura encaixar o envelhecimento.  Tudo se passa como se todos os idosos fossem semelhantes ou estivessem bem representados com as bengalas que invariavelmente os acompanham, nos ícones visuais dos espaços destinados a eles.  Mas certamente não é assim.  A vida é muito mais complexa e variada do que se pode ver nas representações estereotipadas que, no entanto, costumam servir para alimentar cenas cômicas.  Pode até ser engraçado, mas é superficial e falseia a realidade.  “Os Belos Dias” questiona esses estereótipos e o faz num filme elegante, conduzido por um ótimo elenco.




segunda-feira, 7 de outubro de 2013

MANOEL DE OLIVEIRA: UMA HISTÓRIA DO CINEMA

                         

Antonio Carlos Egypto



Manoel de Oliveira, grande mestre do cinema, é o mais velho dos cineastas em atividade.  Nasceu na cidade do Porto, em Portugal,  em 1908, quando o próprio cinema tinha pouco mais de dez anos de vida.  Sua obra praticamente se confunde com a própria história do cinema.

Uma bela homenagem ao trabalho desse grande cineasta está na exposição “Manoel de Oliveira: Uma História do Cinema”, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, até 10 de novembro, em São Paulo, já como parte das atividades da 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que se inicia oficialmente em 18 de outubro próximo.

Lá, numa série de pequenas salas, há projeções simultâneas de excertos de filmes de Manoel de Oliveira, desde os seus primeiros trabalhos, ainda no cinema mudo, como o belo documentário “Douro, Faina Fluvial”, de 1931, que já impressiona pela qualidade das imagens e sua intensa expressividade.  Lá está também a primeira ficção do diretor, “Aniki – Bóbó”, de 1942,  antecipando o neorrealismo, ao mostrar a realidade da pobreza dos meninos de rua do Porto, com imagens  não só bonitas como impactantes.  Isso é só o começo.  Trechos de seus grandes filmes, relacionados aos diversos temas presentes na obra do diretor, podem ser assistidos nas diferentes salinhas e nas projeções maiores.  De “Amor de Perdição”, de 1976, a “O Gebo e a Sombra”, de 2012, tudo está lá representado, oferecendo um aperitivo convidativo para que a gente queira conhecer mais dessa trajetória cinematográfica ímpar e original.  Para quem não conhece o trabalho do cineasta, fica um pouco difícil de se situar.  Quem já o conhece, fica querendo ver tudo, o que não é possível.



Eu fui à procura de conhecer os filmes mais antigos dele, tentar saber da censura salazarista, que podou sua criatividade por longos anos, como se vê em “A Caça”, de 1963, e descobrir novidades.  “O Pintor e a Cidade”, de 1956, foi uma dessas descobertas.  O enquadramento da pintura, sua confecção e mudanças passando aos nossos olhos constituem uma linda criação.  O universo do cineasta é extremamente rico, abarca e se relaciona com todas as artes: é literário, teatral, musical, pictórico, puro cinema.  Destaque-se ainda a relação entre documentário e ficção, já bem inovadora, nos anos 1930 e 1940.  Nada melhor para revelar tudo isso do que o material da exposição se constituir nos próprios filmes do realizador português.  Também há fotos, documentos e uma entrevista em que ele responde por que faz filmes.  O melhor é o produto do seu labor que, afinal, são os filmes que ele nunca para de fazer, desafiando a finitude da vida.

O acervo exibido é da Fundação de Serralves, Museu de Arte Contemporânea, Porto, Portugal, e a exposição homenageia seu grande amigo e divulgador no Brasil, o saudoso Leon Cakoff, criador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

PREENCHENDO O VAZIO

                         

Antonio Carlos Egypto



PREENCHENDO O VAZIO (Lemale et há halal).  Israel, 2012.  Direção: Rama Burshtein.  Com Hadas Yaron, Yiftach Klein, Irit Sheleg.  87 min.



Casamentos arranjados fazem parte da história da humanidade praticamente desde os seus primeiros tempos e, em alguns lugares, permanecem existindo e definindo expectativas e padrões de conduta.

“Preenchendo o Vazio”, o filme israelense que ganhou o troféu Bandeira Paulista da 36ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e prêmio de atriz em Veneza 2012, para Hadas Yaron, focaliza a realidade de famílias hassídicas ortodoxas de Tel Aviv, em que o casamento arranjado está em pleno vigor.  E recebe a orientação e o aval dos rabinos.  Mas há algum espaço para expectativas de que se possa construir um arranjo a partir de um desejo ou de uma fantasia amorosa.  A constatação de um enamoramento pode vir a ser chancelada pela família, ou pelo rabino, desde que não contrarie os interesses ou os princípios estabelecidos.  Ou até pode vir a calhar.  Mas, se não for assim, os sonhos terão de se desfazer.



É nesse contexto cultural, étnico e religioso, que vai se situar o conflito da protagonista Shira, de 18 anos de idade, que pretende se casar com alguém da sua idade e procura conhecer possíveis ou prováveis pretendentes.  Já tem alguém em vista e um casamento em perspectiva.  Ocorre que sua irmã mais velha, Esther, de 28 anos, morre ao dar à luz o primeiro filho.  Isso irá afetar de modo decisivo as pretensões de Shira.

Yochai, o marido de Esther, com um bebê para cuidar e educar, busca um segundo casamento arranjado, que o levaria a deixar Israel e partir para a Bélgica.  Mas, se Shira pudesse ocupar o lugar da irmã mais velha, isso talvez fosse mais conveniente para todos.  Será também para Shira?  Afinal, ela precisaria aceitar tal arranjo.



É a partir dessa decisão, e do drama que aí se coloca, que o filme desenvolve uma trama eficiente, que, apesar de todas as conotações judaicas envolvidas, aborda um conflito amoroso que poderia estar em qualquer lugar.  Ressalvadas as características específicas de cada povo ou situação histórica, o conflito entre o desejo e a obrigação, e também a possibilidade de união desses dois polos, é uma dimensão muito presente nos dramas amorosos. É o que alimenta o interesse pela história e seu desenlace.

A diretora Rama Burshtein, já em seu primeiro longa-metragem, mostra sensibilidade na abordagem cuidadosa e respeitosa do tema.  Ressalta as ansiedades e angústias femininas num mundo onde elas não têm poder suficiente para decidir suas vidas.  Mas também ressalta o sofrimento masculino diante da perda, do desamparo e da possível rejeição feminina.  Faz uma boa construção de personagens envolvidos por uma boa história.