domingo, 24 de abril de 2011

RIO SONATA – NANA CAYMMI

Antonio Carlos Egypto

RIO SONATA – NANA CAYMMI. Suíça, 2010. Direção: Georges Gachot. Documentário. 84 min.
                                                               
O produtor e diretor franco-suíço Georges Gachot realiza, pela segunda vez, um trabalho amoroso e de grande profissionalismo, dedicado à musica popular brasileira de alta qualidade, por meio de uma de suas intérpretes mais sofisticadas: Nana Caymmi.

Assim como já havia feito com Maria Bethânia, no brilhante “Música é Perfume”, de 2005, “Rio Sonata” flagra a elaboração do trabalho criativo de Nana, seu jeito de ver e cantar o que gosta, sem preocupação com movimentos ou modismos e sua maneira de ser e de se expressar por meio da música.

Mostra nos depoimentos da própria Nana como ela sempre se viu cantando, desde a mais tenra idade, e como ela estava predestinada a ser cantora pelo resto da vida. Uma espécie de missão, um talento natural, um prolongamento da sua própria casa.

Nana é filha de um dos maiores compositores da MPB de todas as épocas. Dorival Caymmi compunha e cantava com afetividade, usando uma voz aveludada, melodias lindíssimas, envolventes, dessas que abraçam o ouvinte e o transportam para o âmago da natureza e dos sentimentos humanos. As letras têm um poder de síntese tal, expressam tudo em pouquíssimas palavras, que aquilo parece simples de tão sofisticado que é. Um gênio.

Ser filha de um gênio não deve ser fácil, mas só de pensar que Caymmi compôs “Acalanto” especialmente para ela, quando pequena, já justifica toda uma vida, como ela mesma diz, no documentário.

Herdeira de uma família de músicos, como os irmãos Dori e Danilo, com quem compartilha criações constantes, e a obra de inspiração paterna, Nana só podia estar mesmo predestinada à música. Também foi casada com Gilberto Gil, outra influência musical extraordinária. E as câmeras de Georges Gachot registram tudo isso e muito mais: o entusiasmo de Milton Nascimento pela cantora, a amizade de infância com o pianista Nelson Freire e os diálogos musicais empolgantes com Tom Jobim, Maria Bethânia, João Donato, Erasmo Carlos. Tudo de forma coloquial, simples, como o talento do velho Dorival.

Se Dorival Caymmi é a própria expressão da Bahia, Nana é puro Rio de Janeiro. Daí a ênfase que o filme põe na relação de Nana com sua cidade do coração. “Rio Sonata” é também um Rio de Janeiro clássico, que se expressa por meio da música. E que se faz presente ao lado de tantas outras facetas que a cidade tem, algumas que incomodam Nana.

Uma beleza de documentário, que traz um olhar estrangeiro generoso para com essa música brasileira que conquista muita gente em todo o mundo. E que, obviamente, tem muitos méritos para isso. Assim como Nana Caymmi, que merece essa homenagem, como mereceu ter gravações escolhidas por trilhas de novela que acabaram ajudando a transformar o que foi concebido sofisticado e sem concessões em sucesso popular.

terça-feira, 19 de abril de 2011

A Garota da Capa Vermelha

Tatiana Babadobulos


A Garota da Capa Vermelha (Red Riding Hood). Estados Unidos, 2011. Direção: Catherine Hardwicke. Roteiro: David Leslie Johnson. Com: Amanda Seyfried, Julie Christie, Gary Oldman, Max Irons, Shiloh Fer­nan­dez. 100 minutos.

Tempos difíceis esses para o cinema mundial. Recentemente, foi recontada a história dos vampiros a partir de um romance adolescente. E fez sucesso, a começar pela venda dos livros de Stephenie Meyer. Agora, é a vez de uma nova Chapeuzinho Vermelho chegar às telas a partir de quinta, 21.

“A Garota da Capa Vermelha” (“Red Riding Hood”) mistura o medo do lobisomem que faz estragos na cidade e a garota que vai tentar descobrir por que membros da sua família estão morrendo.

Embora o lobo tivesse dado uma trégua aos moradores do vilarejo, já que era saciado a partir do sacrifício de algum animal, a cordia­lidade acaba quando ataca a menina.

O papel-título ficou a cargo de Amanda Seyfried (de “Cartas para Julieta” e “Mamma Mia!”). A princípio, ela descobre que sua irmã fora atacada pelo lobisomem na noite de lua cheia. E, daí pra frente, percebe sinais que poderiam levar ao assassino.

A fita é uma mistura de fantasia dos contos de fada da infância com o suspense da juventude, principalmente quando os mora­dores do vilarejo desconfiam uns dos outros, já que o padre Solomon (Gary Oldman) levantou a bola que a tal criatura não teria sido morta por um valente homem, uma vez que o lobo assume a forma humana durante o dia e poderia ser qualquer um deles.

O longa-metragem discute também relacionamentos arranjados, já que Valerie (a garota) descobre que deverá se casar com Henry (Max Irons) e não com o rapaz que ama, Peter (Shiloh Fer­nan­dez).

Com figurino épico e lugarejo sombrio – confirmando o clima de insegurança e suspense que rondam o local –, a fita conta ainda com o lobo que fala, mas apenas algumas pessoas são capazes de ouvi-lo. Isso lembra alguma coisa? A capacidade de ouvir as cobras na série “Harry Potter”, talvez?

A direção da fita, veja bem, está sob a batuta de Catherine Hardwicke, a mesma responsável por “Crepúsculo”. Portanto, qualquer semelhança entre os filmes, digamos, não terá sido mera coincidência. Além de dirigir, Catherine é produtora, ao lado de Jennifer Davisson Killoran, Leonardo DiCaprio e Julie Yorn. E roteiro tem autoria de David Leslie Johnson, o mesmo do terror “A Órfã”.

“A Garota da Capa Vermelha” traz referências também à história da qual é baseada, como a capa vermelha que a vovó (Julie Christie) lhe faz, as constantes idas à casa dela, a cesta na qual leva “alimento”. E, a parte engraçada, quando ela diz aquelas frases que eternizaram a personagem: “Vovó, que olhos grandes a se­nhora tem!” E as gargalhadas são soltas!

No entanto, é só aí que temos a parte cômica, pois o restante do longa é recheado de momentos desconcertantes e efeitos especiais que deixam a desejar. O suspense é ou­tro aspecto que começa a instigar o espectador, quando ele tenta descobrir quem pode ser o tal lobo, mas a velha tática usada de jogar os indícios para uma personagem e depois re­velar outra é sem graça (e manjada) demais.

domingo, 17 de abril de 2011

AMOR?

Antonio Carlos Egypto


AMOR? Brasil, 2010. Direção: João Jardim. Com Lilia Cabral, Eduardo Moscovis, Letícia Colin, Claudio Jaborandy, Sílvia Lourenço, Fabiula Nascimento, Mariana Lima, Ângelo Antônio e Julia Lemmertz. 100 min.


“Amor?” reúne depoimentos verdadeiros e contundentes de pessoas que viveram experiências amorosas pautadas, de algum modo, pela violência. Daí a interrogação que aparece ao lado da palavra amor. Esse tipo de vínculo com a violência pode ser chamado de amor?

Ciúme, por exemplo, é prova de amor, imaturidade, insegurança, ou um comportamento claramente doentio? O sadomasoquismo como expressão do desejo sexual é evidentemente compartilhado e consentido, salvo exceções, onde a dominação se impõe por alguma outra modalidade de poder, externa à relação. Mas esse tipo de desejo pode ser chamado de amor?

Se a agressão se torna uma espécie de dependência que parece escapar ao próprio controle do indivíduo, como ficam seus parceiros? Cabe a eles dar o limite ou incentivar a pancadaria? E isso é amor? Trair para se afirmar é um jeito de manifestar amor? Intimidar-se diante do outro, sem saber como reagir, mas permanecendo na relação, é uma forma de amar? Voltar a procurar uma relação violenta depois de ter se livrado dela demonstra que aquilo era amor?

Essas são algumas das perguntas que o filme suscita, a partir dos relatos que apresenta. Como se pode entender o amor na presença de alguma forma de violência no contexto amoroso? Claro que “Amor?” não dá respostas, apresenta o que acontece ou como as pessoas envolvidas enxergam o que se passa, ou se passou, com elas. Ou, ainda, se elas entendem alguma coisa daquilo que viveram. Suas emoções transparecem, de alguma forma, mas a perplexidade e, muitas vezes, a impotência, também.

“Amor?” é uma película que dá margem a muitas discussões e ilumina um terreno onde há pouca reflexão correntemente. Por isso a proposta é, sem dúvida, relevante.

A apresentação dos depoimentos selecionados – oito, entre os cinquenta colhidos – não é feita por quem viveu a experiência. Provavelmente, seria algo constrangedor para ela própria e para seus parceiros a exposição da identidade e da figura dos depoentes e a apresentação dos comportamentos dela própria, de seu companheiro ou companheira, ou de ambos. Esconder rosto, colher depoimentos de costas ou distorcer a voz são recursos banais, mas desagradáveis, comuns em cenas de noticiários de TV ou em momentos especiais, e curtos, de algum documentário cinematográfico. Mas como “Amor?” é só esse conjunto de depoimentos se alternando, e cenas ilustrativas, não seria viável tal tipo de procedimento.

O caminho, entretanto, já estava aberto. Eduardo Coutinho, em “Jogo de Cena”, embaralhava depoimento e representação encenada, a ponto de confundir realidade e ficção, ao colocar atrizes interpretando os depoimentos. Ficou evidente que convence tão bem, a ponto de ficar muito difícil distinguir o que é relato vivido da representação ficcional dele.

O diretor João Jardim se valeu desse expediente, ao colocar todos os depoimentos na interpretação de atores e atrizes que procuram encená-los da forma como os sentiram, ou seja, pela empatia com o que foi relatado. Não mimetizando as verdadeiras vítimas, na verdade desconhecidas deles, mas realizando a interpretação dramática, ao construir o personagem daquele texto.

Como os atores escolhidos são excelentes, o resultado foi muito bom. Cada um deles parece mais convincente do que o outro. Julia Lemmertz, Ângelo Antônio, Fabiula Nascimento, Lilia Cabral e os demais dão conta do recado. Mas são figuras conhecidas, que sabemos não terem vivido aquela experiência e que também não estão produzidos para uma trama ficcional. É isso que ajuda a provocar um distanciamento em que se evita o envolvimento emocional excessivo, talvez inevitável diante dos personagens verdadeiros originais. A reflexão surge, então, como consequência. É mais natural pensar no que aquilo significa do que, por exemplo, sentir pena da pessoa.

Ao final da projeção, muitas dúvidas, muitas perguntas, um certo mal-estar e uma certa perplexidade tende a permanecer com o espectador atento. Bom sinal. Algo de relevante fica quando é isso o que acontece.

O diretor João Jardim já havia feito um uso muito interessante de depoimentos marcantes, para tentar entender o ato de ver, ou não ver, o mundo, em “Janela da Alma”, documentário de 2003, codirigido por Walter Carvalho. Ali, eram celebridades a falar da sua relação com o olho, o olhar, a visão. Em “Amor?”, é a violência amorosa o seu foco. São ambos recortes bastante ricos e cheios de nuances de vivências humanas.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

HOMENS E DEUSES

Antonio Carlos Egypto

HOMENS E DEUSES (Des Hommes et des Dieux). França, 2010. Direção: Xavier Beauvois. Com Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach, Jacques Herlin. 120 min.


O centro da narrativa de “Homens e Deuses” é um mosteiro situado no monte Atlas, que faz parte de uma cadeia de montanhas na Argélia, continente africano. Lá vivem sete monges cristãos franceses, em vida de pobreza, extremamente dedicados à sua missão ou à sua escolha de vida.

A primeira parte do filme se dedica a mostrar a vida no mosteiro. Os frades plantam o que comem, cozinham, cuidam do lugar. Um deles, que é médico, atende à população local com dedicação e ainda distribui remédios e, quando necessário, outras coisas, como tênis, para os necessitados. Levam uma vida de cantos e orações. O espectador entra no clima – ou já se irrita de pronto, isso depende – não há qualquer crítica, antes uma exaltação dessa vida monástica. Apreciei o clima, mas senti falta do contraditório.

No entorno do mosteiro, está a pequena cidade, beneficiada pela presença dele, sob muitos aspectos, especialmente pelos serviços que recebe. Porém, os frades parece que contribuíram também para o crescimento do próprio lugarejo. Só que prevalece no local o islamismo. O que não parece ser problema, os frades e os irmãos muçulmanos vivem em harmonia. Na mesa de estudos de Christian (Lambert Wilson), o frade superior da pequena comunidade religiosa, convivem pacificamente a Bíblia e o Alcorão. E ele, assim como seus pares, entende os valores da sociedade local.

Tudo seria extremamente tranquilo e harmonioso não fosse a existência armada e agressivamente atuante de fundamentalistas islâmicos praticando terrorismo, matando operários croatas na base da degola. Por outro lado, o exército local está a serviço de um governo corrupto e também sanguinário, disposto a massacrar os rebeldes. A ação se passa nos anos 1990.

Tudo isso, e o que não fica claro, vai sendo pescado pouco a pouco. O filme não informa, não indica de que se trata, nem onde, nem porquê. Talvez por supor que, como está contando uma história que aconteceu de fato, todo mundo a conheça na França, por exemplo. Certamente não é a realidade para todos os países. Não custava nada situar melhor o espectador, não familiarizado com os fatos, já que se buscava também uma distribuição mundial da fita, haja vista sua apresentação em festivais importantes pelo mundo.


Bem, mas o melhor do filme é o dilema moral que se apresenta para os frades. Aceitar a proteção militar ao mosteiro e compactuar com um governo com o qual não se identificavam nem a população, nem eles próprios? Arriscar passar a ser mal vistos pela população? Serem controlados em todas suas ações pelo exército?

Ficar sem proteção e arriscar a própria vida? Esperar pelos ataques dos terroristas? Negociar com eles? Até que ponto? Atender aos doentes e feridos deles, assim como atendem à população? Misturá-los à população que os via como agressores e violentos? (Basta lembrar que meninas foram assassinadas por não usarem o véu recomendado pelos muçulmanos).

Seria melhor partir de volta para a França? Aceitar a oferta que o próprio governo lhes estava fazendo? Seria justo? Seria uma fuga, um abandono da população? E se uns quiserem ir e outros, não? Será preciso existir consenso nesse caso? Ou a opção de cada um será respeitada?

“Homens e Deuses” é sobre todos esses dilemas morais e o clima de insegurança, de medo, ou a firmeza de convicções religiosas. De qualquer modo, a incerteza se abate sobre todos. E se tornará indispensável a tomada de decisões, com todas as consequências que elas acarretarem. Isso dá força e interesse ao filme, que acabou vencendo o César (o Oscar francês), além do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes.

O principal mérito de “Homens e Deuses” é se centrar nos dilemas morais dos frades, mais do que nos fatos contundentes que a história registra. É o que dá frescor a um filme que, de outro modo, poderia resultar soturno, pesado e aborrecido. E, apesar dos pesares e da gravidade do assunto, sem grandes novidades. Do modo que está, ele se torna suficientemente atraente, cria suspense e pode conquistar o interesse dos espectadores.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Homens e Deu­ses


Tatiana Babadobulos


Homens e Deuses (Des Hommes et des Dieux). França, 2010. Direção: Xa­vier Beauvois Roteiro: Xavier Beauvois e Etienne Comar. Com: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach, Jacques Herlin, Loïc Pichon, Jean-Marie Frin, Olivier Perrier e Xavier Maly. 122 minutos.

Em primeiro lugar na bilheteria mundial, a animação “Rio”, que estreou na semana passada, tomou conta das salas de cinema do país. Ao todo, foram mil cópias. Já sabendo do efeito que o longa-metragem do brasileiro Carlos Saldanha teria (mais de 1,1 milhão de pessoas assistiram ao filme no cinema nos três primeiros dias), foram apenas quatro estreias no dia 8.

Nesta sexta-feira, 15, o quadro não muda muito. Serão cinco estreias ao todo: o nacional “Amor?”, o documentário francês “Bebês”, a ficção científica “Eu Sou o Número Quatro”, o terror “Pânico 4” e o aguardado “Ho­mens e Deuses”, produção francesa, vencedora do Grand Prix do Festival de Cannes, no ano passado. O mesmo festival, aliás, que premiou “O Profeta”, em 2009, e “Gomorra”, em 2008.

A trama de “Homens e Deu­ses” (“Des Hommes et des Dieux”), que tem direção de Xa­vier Beauvois e roteiro escrito a quatro mãos juntamente Etienne Comar, é baseada na história real dos monges franceses que faziam trabalho missionário na Argélia, país árabe e ex-colônia da França.

Em uma época na qual a igre­ja pouca influência tem sobre as pessoas, principalmente longe dos domínios do cristia­nismo, o longa-metragem discute problema político que se passa no final dos anos 1990 e usa os diálogos para mostrar o que acontece por ali. Nas imagens, as matanças são momentos bastante duros.

Mesmo que tenham poucas influências no mundo atual, os monges fazem visitas em toda a comunidade onde atuam e também prestam serviços médicos. E, para combater o mal, rezam e cantam. A música dos monges, aliás, é a única que compõe a trilha sonora da fita que tem duração de 122 minutos. Talvez isso possa ser um pouco can­sativo para quem está acostumado com os filmes barulhentos exibidos no cinema, principalmente de produção norte-americana.

“Homens e Deuses” é intimista a partir do olhar do diretor e na medida que insere o espectador na trama, mas também mostra os sequestros e os assassinatos, além do confronto entre o go­verno e os extre­mistas que queriam tomar o poder.

Liderados por Christian (Lambert Wilson), os monges Luc (Michael Lonsdale), Chris­tophe (Olivier Rabourdin), Celéstin (Philippe Laudenbach), Amédée (Jacques Herlin), Jean-Pierre (Loïc Pichon), Paul (Jean-Marie Frin ), Bruno (Olivier Perrier) e Michel (Xavier Maly) decidem, em meio ao conflito, se voltam para a França ou conti­nuam prestando o serviço ao qual se propuseram, mesmo sabendo que são alvo dos terro­ristas, principalmente por aqueles que invadem o mosteiro a fim de roubar remédio.

“Homens e Deuses” mostra a mistura de fatos e atos praticados pelos homens que são contra as leis de Deus mas, ao mesmo tempo, o que poderiam os monges fazer senão cuidar da comunidade onde viviam e enfrentar o mal?

Ao final, o destino de cada um deles é revelado. Triste demais, mas um belíssimo filme, capaz de fazer o espectador refletir e situá-lo nos dias atuais. Que dias!

terça-feira, 12 de abril de 2011

CONTRACORRENTE

Antonio Carlos Egypto


CONTRACORRENTE (Contracorriente).  Peru, 2009.  Direção: Javier Fuentes-León.  Com Cristian Mercado, Tatiana Astengo, Manolo Cardona.  100 min.




Uma vila de pescadores, o mar, belas praias, a natureza exuberante do litoral peruano, é a charmosa locação do filme “Contracorrente”, estreia em longas do diretor Javier Fuentes-León, que recebeu prêmios em festivais importantes, como os de Sundance, Miami e o Mix Brasil e foi o indicado do Peru para o Oscar de filme estrangeiro 2011.

Miguel (Cristian Mercado) é uma liderança da pequena comunidade que vive em torno da igreja e tem no padre local figura de grande poder e autoridade.  Atividades como a encomenda do corpo de um defunto a Deus antes que seja enterrado, isto é, lançado em alto mar, são feitas por lideranças como Miguel, como se vê nas primeiras cenas da fita, em que ele é o escolhido para essa tarefa, na morte de um primo.

O respeitado Miguel é casado com Mariela (Tatiana Astengo), que está grávida do primeiro filho do jovem casal.  Eles vivem bem.  No entanto, anda pela região um forasteiro, pintor e fotógrafo, Santiago (Manolo Cardona), que é mal visto pela sociedade local.  Nos primeiros minutos do filme, vemos que Miguel e Santiago têm uma forte atração sexual um pelo outro e vivem um caso de amor.  Miguel entende esse caso como proibido e o esconde, ele não seria mesmo admissível naquela localidade, ainda mais para um homem casado, com um filho a caminho.

Como Miguel administra sua bissexualidade e a concomitância do relacionamento homossexual recém-descoberto com a chegada próxima de seu primeiro filho já seria, por si só, um bom assunto, considerando as características daquela comunidade. Mas o filme vai muito além disso, criando uma trama densa e criativa, que escapa do realismo para produzir uma muito bem engendrada fantasia amorosa.

Diante da tarefa hercúlea que Miguel teria à sua frente, aparece a solução mágica.  Ele poderia viver seu amor com Santiago, sem mudar nada do que havia conquistado, porque seu amante só seria visto e tocado por ele.  Estaria invisível para todos os outros, mas muito presente para ele.  Esse aparente “melhor dos mundos”, que parece uma solução idílica, no entanto, se revela mais complexo do que parece.

É por meio desse expediente que o filme acaba tocando em questões relevantes desse triângulo amoroso, tanto o que é vivido emocionalmente pelos personagens, como o desafio que se apresenta à pequena vila peruana, incluindo os valores religiosos que a regem.  E com dramaticidade, de um lado, e leveza, de outro, o trabalho se revela inteligente e sutil, como deve ter sido o roteiro que esteve na origem das filmagens.

O diretor estreante se revela capaz de criar imagens muito bonitas, explorando o que o lugar tem de visualmente atraente, e o faz integrando a trama a essa beleza natural muitíssimo bem.  As cenas que envolvem o mar são pura beleza, tão fantásticas quanto a fantasia que elas escondem.  A fotografia merece destaque, o responsável por ela é Maurício Vidal.

Uma fita que vem do Peru, de cuja filmografia tão pouco se conhece e está tão próxima de nós.  Um diretor estreante, que se mostra talentoso, num tema um tanto complicado de lidar.  Uma produção que envolveu investimentos da Colômbia e da França, além do Peru, apesar de modesta, em vista dos concorrentes do mercado cinematográfico.  Tudo isso valeu a pena, o resultado é cativante, o interesse que o filme desperta é contínuo, o tratamento dado ao tema, muito adequado e sem preconceitos ou esquematismos.  Um bom elenco garante o resultado final convincente.

É preciso lembrar que vieram do mesmo Peru filmes como “A Teta Assustada”, em 2009, e “Pantaleão e as Visitadoras”, em 2000, esse último com base na obra de Vargas Llosa.  São filmes muito bons.  Sinal de que precisamos que mais filmes peruanos sejam lançados aqui.  A julgar por “Contracorrente”, estamos subestimando o cinema dos nossos vizinhos de tradição inca.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

TURNÊ

Antonio Carlos Egypto


TURNÊ (Tournée). França, 2010. Direção: Mathieu Amalric. Com Mathieu Amalric, Miranda Colclasure, Suzanne Ramsey, Antela de Lorenzo. 111 min.



“Turnê” mostra um empresário produtor francês, Joachin (Mathieu Amalric), que excursiona com suas garotas norte-americanas num espetáculo de strippers, com dança e canto: New Burlesque. Percebe-se que Paris é uma espécie de cidade do desejo do grupo, mas as cidades visitadas são outras. Joachin se vê às voltas com garantir teatros para o show, nem sempre consegue. Percebe-se que o glamour é modesto, mas o clima é alegre, as garotas riem, se divertem, se esbaldam. Joachin e seu colaborador Ulisses tentam cuidar das moças em todos os sentidos: viagens, hotéis, comida, descanso, e o comportamento expansivo delas, que por vezes causa problemas.

O show é delas. A parte artística é criação de cada uma, Joachin administra o negócio e dá seus palpites. Mas são elas as donas do palco.

Por aí vai o filme. Cena após cena, vamos acompanhando o clima da turnê, suas dificuldades e os problemas do grupo, principalmente os de Joachin. E as informações vão aparecendo, sem maiores explicações. Ele já foi produtor de TV em Paris, mas, por alguma razão, não se deu bem e acabou na América, onde, possivelmente, seduziu essas moças para a fama e a glória na França.

Aparece uma ex-mulher, que está no hospital, se mostra que ele tem filhos e eles são incorporados a uma parte da turnê. Parecem pedaços de uma história que tinha ficado para trás quando ele saiu da França, mas agora ele está de volta. Ele vai visitar um amigo, em busca de solucionar um problema e se vê que a relação é de amor e ódio intensos, em que brigas e ofensas pesadas aparecem. Muito complicada essa relação.

O nosso protagonista já aprontou muito coisa no passado e “queimou seu filme”. E assim vão surgindo novos dados do quebra-cabeça, entremeados por números do show erótico, alguns bem atraentes, outros, puro clichê. Destaca-se a personalidade marcante de Mimi (Miranda Colclasure), o personagem com mais densidade entre as garotas.

Muita coisa do que aparece no filme é jogada ao espectador sem razão aparente. Por que a insistência da cena em que Joachin vive pedindo que se desligue ou abaixe o som, a TV ou cesse a música ao vivo e, em geral, não consegue seu intento? O produtor do show não aguenta ouvir algo semelhante ao que ele mesmo faz? Quer descansar do show business e não consegue? Há uma saturação disso em todas as partes? Cada um entenda como quiser. Mas são cenas soltas, que não se ligam a nada.

As situações não são costuradas, não chegam a formar um todo integrado. Também não dá para dizer que a fita se centre nos climas da turnê do show, porque isso não dá um sentido ao que se conta, ao que se mostra, e varia muito ao longo da narrativa.

O que o filme faz é uma aproximação a esse mundo do espetáculo mambembe, que tem seu charme, as figuras que circulam em torno dele e as coisas às vezes estranhas ou curiosas que acontecem por lá. Não sobra muito ao final da projeção, além das garotas e do show.

Mathieu Amalric parece não dar conta de dirigir e ser o ator principal do filme. A sensação que fica é de que ainda falta muita coisa para que “Turnê” seja um produto acabado. É feito de fragmentos, pedaços que poderiam se constituir num bom filme, se fossem bem mais trabalhados do que de fato foram.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Rio

Tatiana Babadobulos

Rio. Estados Unidos, 2011. Direção: Carlos Saldanha; Roteiro: Don Rhymer; Com vozes de Jesse Eisenberg, Anne Hataway, Rodrigo Santoro, Jamie Foxx, will.i.am.

O Brasil está na moda. Não é de hoje, é verdade, mas basta perguntar para qualquer estrangeiro sobre o Brasil que ele vai dizer que gostaria de conhecer o país, principalmente o Rio de Janeiro. Daqui a pouco virão a Copa do Mundo, em 2014, e a Olimpíada, em 2016, para confirmar a quantidade de estrangeiros por aqui.

Deixando de lado as questões políticas e se os prazos para a conclusão das obras para receber os eventos esportivos serão cumpridos, a discussão agora é uma só: a homenagem à Cidade Maravilhosa feita pelo diretor Carlos Saldanha (de “A Era do Gelo 3”), em forma de animação. Saldanha, aliás, foi o res­ponsável pela criação do esquilo Scrat, que ganhou destaque ao longo da trilogia por conta de seu carisma.

Na abertura de Rio, longa-metragem que poderá ser visto no Brasil em versões du­bladas e legendadas, em 2D e 3D (em um total inédito de mil cópias!), está o Pão de Açúcar, cartão-postal do Rio, além de pássaros que sambam – o que mais eles poderiam fazer na terra do Carnaval? Corta. Agora estamos na neve, bem longe dali, onde vive Blu.


Blu (com voz de Jesse Eisenberg, de A Rede Social, na versão original) é uma arara azul domesticada que não aprendeu a voar e vive em Minnesota, nos Estados Unidos, com sua dona, Linda (Leslie Mann). Tudo parecia estar sob controle até bater em sua porta Túlio Monteiro (o brasileiro Rodrigo Santoro), um amante dos ani­mais que descobre o paradeiro da arara. Ele alega que trata-se do único macho da espécie e que precisa ir para o Rio de Janeiro conhecer a fêmea, Jade (Anne Hathaway, de O Diabo Veste Prada), a fim de garantir a perpetuação da espécie.

A partir de então, dona e arara vão desfrutar das belezas naturais, se meter em aventuras e confusões. Do lado de cá da tela, o espectador vai se maravilhando com o show de imagens coloridas e extremamente bem feitas, além de uma história tocante, acompanhada de trilha musical, di­gamos, bem brasileira.

Como nem tudo são flores, vem o drama: a caça ilegal dos animais na ci­dade ensolarada. Juntas, as araras também terão de enfrentar Nigel (Jemaine Clement), uma cacatua mal-humorada que trabalha para os contrabandistas de aves e que vai pedir ajuda aos micos (do mal) para encontrar as duas ararinhas.

Em diversos momentos, Carlos Salda­nha, carioca que há muito vive nos Estados Unidos, homenageia sua terra Natal, a partir do cachecol verde e amarelo de Túlio, da camisa do Brasil, da bandeira pendurada na parede de uma casa na favela, da locali­zação exata do Brasil no globo. E, aqui, Brazil está escrito assim, com Z, ainda que Rita Lee e Roberto de Carvalho já haviam cantado “que o meu Brasil é com S”. Há também partidas de futebol. Isso porque a narrativa é situada entre a Copa do Mundo, ilustrada pelo clássico sul-americano Brasil e Argentina, na televisão, e o Carnaval, com desfile em plena Sapucaí. 



Quando a fita mostra a cidade vista do alto e a Baía de Guanabara, a paisagem é deslumbrante, sem retoques. Lembra o ra­tinho Rémy saindo do esgoto e se deparando com Paris, na animação da Pixar, “Ratatouille”. Destaque também para a trilha sonora empolgante, que mistura inglês com português, samba, bossa nova, sob os cuidados de Sérgio Mendes. Na dublagem, as gírias cariocas que sublinham o jeito malandro caem muito bem.

“Rio” é uma animação que mistura técnica (repare na qualidade das penas e plumagens, tudo parece ser real), com uma história tocante e emocionante, principalmente quando fala sobre assuntos delicados, como contrabando de animais silves­tres, maus tratos, família, fazendo jus à afirmação de John Lasseter, criador de “Toy Story”, que não adianta dominar a tecnologia, se não tiver uma boa história para contar e encantar a plateia.

O filme faz uma grande homenagem ao Brasil e ao Rio de Janeiro, além de ser uma propaganda posi­tiva para o país que, se tudo der certo, receberá a próxima Copa e os próximos Jogos Olímpicos.

Em tempo: não saia no “The End”, pois há a continuação com o destino dos personagens.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

TANCREDO, A TRAVESSIA

Antonio Carlos Egypto


TANCREDO, A TRAVESSIA. Brasil, 2010. Direção: Sílvio Tendler. Documentário. 90 min.


Tancredo Neves, o presidente eleito que morreu sem poder tomar posse e comoveu a nação, foi um político notável que participou ativamente da história recente do Brasil. É da trajetória política de Tancredo Neves (1910-1985) que trata o documentário de Sílvio Tendler, que integra o Festival “É Tudo Verdade”, 2011.

Tancredo era ministro de Getúlio Vargas, em 1954, quando o presidente gaúcho enfrentava uma enorme crise, que levaria ao seu suicídio. O filme apresenta uma recriação da famosa reunião do ministério Vargas, em que o presidente ouviu os seus ministros e, entre a renúncia ou a resistência ao golpe que viria, supostamente Getúlio pediria uma licença. Tancredo votou pela resistência e recebeu do próprio presidente a caneta utilizada para assinar a carta-testamento, que acompanhou o gesto suicida.

Tancredo foi um dos artífices da campanha e um dos colaboradores mais próximos de Juscelino Kubitschek, ambos mineiros e do PSD. Participou intensamente do governo desenvolvimentista de JK e foi a última personalidade política que o ex-presidente viu antes de partir para o exílio.

Com a eleição de Jânio Quadros e a crise que se estabeleceu com a sua renúncia, Tancredo terá papel decisivo na posse de João Goulart, o vice-presidente eleito, negociando a solução parlamentarista e vindo a ser primeiro ministro de Jango.

Com o advento da ditadura militar, Tancredo escapa da cassação, possivelmente por seus vínculos indiretos de parentesco com o primeiro presidente do regime: Humberto de Alencar Castelo Branco. Hiberna pelo Congresso Nacional esvaziado e ajuda a organizar a oposição consentida, o MDB. Elege-se governador de Minas Gerais.

Quando as circunstâncias políticas permitirem, será um dos principais organizadores da campanha pela eleição direta à presidência da República: a memorável Campanha das “Diretas Já”. No entanto, não descarta o plano B: a disputa das eleições indiretas, caso não vencesse a emenda Dante de Oliveira. Acaba sendo o candidato de consenso dessa eleição indireta e, derrotando Paulo Maluf, o candidato oficial do partido governista, se elege presidente para realizar a travessia da ditadura para a democracia, de que hoje desfrutamos.

Quis o destino que esse papel acabasse cabendo a seu vice, José Sarney. Tancredo teria muito mais representatividade para ter capitaneado essa travessia. Mas o sacrifício pessoal de sua saúde acabou sendo uma garantia dessa mesma travessia.

Um político dessa estatura e com essa experiência merece mesmo ser lembrado e valorizado num trabalho documental como esse, que resgata de forma didática momentos decisivos da História do Brasil, que contaram com a participação de Tancredo Neves.

O resgate de material de arquivo abundante, extraído em grande parte dos noticiários televisivos, aparece claro e bem organizado. Para quem viveu grande parte desses momentos históricos é um resgate emocional também. Quem não se emociona até hoje com a canção de Milton Nascimento, “Coração de Estudante”, que serviu de trilha sonora para o féretro de Tancredo? Ou da voz de Fafá de Belém, entoando o Hino Nacional?

Os mais jovens certamente terão com o filme uma aula de história. Aliás, o filme merece ser utilizado por professores, em aulas de História do Brasil, porque ele mostra o processo vivido pelo país nesse período e que poderia ser complementado com informações e organizando debates com os alunos. É a história viva que está lá.

Para os mais jovens, podem parecer eventos distantes, mas é importante mostrar que aquilo de que podemos desfrutar hoje deriva diretamente desse processo, que teve em Tancredo Neves um de seus principais personagens.

É mais um trabalho competente do documentarista Sílvio Tendler, resgatando a história política do Brasil, a exemplo do que já havia feito nos filmes “Os Anos JK”, de 1980, e “Jango”, de 1984.



sábado, 2 de abril de 2011

VIOLÊNCIA E PAIXÃO

          Antonio Carlos Egypto

VIOLÊNCIA E PAIXÃO (Conversation piece/Gruppo di famiglia in un interno).  Itália, 1974.  Direção: Luchino Visconti.  Com Burt Lancaster, Silvana Mangano, Helmut Berger, Claudia Marsani, Stefano Patrizi.  121 min.

Vou com bastante frequência ao cinema, mas já fazia muito tempo que não via um filme de Luchino Visconti na tela grande.  A oportunidade surgiu com uma cópia restaurada de “Violência e Paixão”, exibida pelo Cinesesc, São Paulo, em sessões regulares.  Não há como negar que é uma experiência fascinante, muitos graus acima do que se consegue ver atualmente nos cinemas.

Não se trata de saudosismo, mas da constatação de que hoje o requinte e o perfeccionismo de Visconti talvez já não caibam numa indústria cinematográfica que gasta rios de dinheiro com atores e atrizes famosos, efeitos especiais em profusão, mas não no artesanato cenográfico, nem na reconstrução esplendorosa de época, de que Visconti era capaz.

“Violência e Paixão” é até modesto, se comparado a outros filmes dele, como “O Leopardo”, 1963, “Os Deuses Malditos”, 1969, “Morte em Veneza”, 1971, ou “Ludwig”, 1972.  Ainda assim, o apartamento do personagem chamado Professor (Burt Lancaster), o protagonista da fita, recheado de objetos e obras de arte, é primoroso em todos os detalhes, as roupas dos personagens são perfeitas, o ambiente, a exuberância da vista de Roma da varanda, tudo produz uma sofisticação que se pode dizer raramente encontrada no cinema.  Isso tudo também era caro, mas incomparavelmente mais refinado do que qualquer efeito de computador possa produzir.

A música de Mozart complementa, com sua beleza, todo esse requinte artístico e sublinha o mundo inteligente e sofisticado do Professor.  O contraste musical com o grupo dos jovens vizinhos do Professor é o pop, também de boa qualidade, onde até uma versão em italiano de “À Distância”, de Roberto Carlos, pontua uma cena do envolvimento sexual de três personagens. 

A narrativa permite diversas camadas de leitura, a partir da história do Professor, que vive sua solidão envolto em pinturas autênticas do século XVIII, espalhadas pelo apartamento, ao lado de esculturas, uma vasta biblioteca, uma discoteca clássica e objetos de casa e de uso pessoal altamente requintados.  O personagem vive em seu mundo recluso com sua serviçal, com vinte e cinco anos de casa, e longe dos incômodos e problemas que as pessoas possam lhe causar.  Até que é literalmente invadido por uma marquesa (Silvana Mangano) de posses, mas de comportamento decadente, que praticamente o obriga o alugar o apartamento de cima e traz consigo a filha e o namorado, jovens, além de seu amante 12 anos mais novo, Konrad (Helmut Berger).  A vida do Professor muda radicalmente a partir daí, vira um caos e ele é obrigado a conviver com tudo aquilo de que se apartara até então.

Só que a questão é mais complexa do que a descoberta, ou redescoberta, dos afetos para um intelectual solitário, que essa mudança produz.  Ela traz a vida, com todas as suas contradições e conflitos, frente à inexorabilidade da morte.  O envelhecer, diante do vigor da juventude.  As pulsões sexuais, rompendo a barreira protetora da racionalidade e da própria arte. O uso de álcool e outras drogas psicoativas, em busca de prazer, de poder, ou tentativa de aliviar o desencanto com a vida. As pessoas reais, em contraste com as pessoas representadas pela arte.  A família imaginária, ou que é memória, frente a laços familiares que se podem construir sem relações consanguíneas.

O isolamento pode ser fuga de afeto, expressão do medo de viver, mas também proteção diante do conflito com o que a ciência pode produzir de horror prático para a humanidade.  Ou, ainda, desencanto com os rumos coletivos políticos e com o desmoronar de uma classe social frente a novas camadas sociais que ascendem e transformam, de alguma forma, o mundo.  Por trás de conflitos pessoais, há escolhas políticas, como a direita fascista rediviva nos anos 1970 e a esquerda dos movimentos sociais e das revoltas estudantis.

Há inúmeras dimensões a descobrir e explorar, no convívio entre os personagens que Visconti nos apresenta em seu ambiente peculiar de beleza, arte e sofisticação, coisas que ele não dispensa nunca, nem quando fala de carência e pobreza, como fazia na época do neorrealismo italiano do pós-guerra.

O conde vermelho, como era conhecido o cineasta Visconti que, sendo aristocrata, optara pelo marxismo, fez do cinema um veículo de esplendor, crítica, informação e reconstituição históricas, sendo um de seus recursos as adaptações literárias.  O seu cinema também leva a uma reflexão sobre as relações humanas, num nível amplo e profundo, sem concessões à manipulação emocional, preservando sempre o distanciamento crítico e a racionalidade diante dos personagens e da trama.

O cinema de Luchino Visconti é uma obra autoral maiúscula, realizada dentro dos cânones clássicos, única e insuperável.  Vê-la na tela grande da sala de cinema é comprovar isso de forma cabal.