quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

GUAXUMA

Antonio Carlos Egypto






Os curtas-metragens podem trazer novas ideias e experimentações técnicas, além de revelar novos talentos de cineastas.  A produção brasileira é importante e significativa no formato.  O acesso a eles é que é um pouco complicado.

É possível ver curtas em festivais, que dedicam espaços específicos para eles.  Há o Festival de Curtas, o Anima Mundi e outros.  Além disso, é possível vê-los em programações de alguns canais de TV pagos.  Ou encontrá-los disponíveis pela Internet.  É pouco.  Exige uma garimpagem, uma busca deliberada. Por isso é importante a iniciativa da distribuidora Arteplex Filmes e da programação dos cinemas Itaú de abrir espaço permanente aos curtas em sessões de cinema, a preços acessíveis (R$14,00 a inteira e R$7,00, a meia).

O programa que inaugura essa tendência não podia ser melhor.  É o curta-metragem GUAXUMA, agraciado com o prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) para o melhor curta brasileiro de 2018.  A sessão chamada de “GUAXUMA e Outras Histórias” mostra o trabalho da diretora alagoana Nara Normande.  Inclui o curta de ficção “Sem Coração”, de 2014, e o curta de animação, “Dia Estrelado”, de 2011.

GUAXUMA é um trabalho criativo, que envolve uma combinação de recursos e técnicas a serviço de uma narrativa em primeira pessoa, supostamente autobiográfica, da diretora.  Ela trata de memória, real ou imaginária, que remonta à sua infância, vivida na praia de Guaxuma, Alagoas, e de sua melhor amiga, Tayra, da mesma idade, com dez dias de diferença no nascimento.  Nara e Tayra formam uma dupla inseparável, que afinal se separa, mas mantém uma relação duradoura de amizade.  Com a separação, a praia idílica é substituída pela cidade, mas o mar vai dentro de Nara.  E ela sempre volta, até no inverno, quando uma praga nos cajus se espalha ao vento, produzindo uma espécie de neve.  A narração dá conta dos sentimentos, lembranças, perdas e mudanças.




A combinação de filmagens, do mar e da praia, com suas ondas e árvores, se associa aos bonecos, desenhos, origamis, fotos antigas e areia em relevo construindo esculturas, mais a aceleração de imagens gravadas, compõem um painel fascinante.  Associado a um uso muito criativo do som, produz uma pequena joia fílmica, de apenas 17 minutos, que justifica a ida ao cinema.

GUAXUMA estreou em Annecy, na França, foi premiado nos festivais Anima Mundi, de Gramado, de Brasília, e no de curtas em São Paulo, com o prêmio do público.  Foi escolhido como o melhor filme narrativo, no Festival de Animação de Ottawa, no Canadá, melhor curta-documentário em Hamptons, USA, em Amsterdã, Holanda, e em Toronto, Canadá.  Tão inovador, que classificá-lo em um único gênero fica difícil.

Quem for ver “GUAXUMA e Outras Histórias” poderá conferir o talento da diretora também em ficção com atores, ao tratar de meninos em iniciação sexual, fazendo de uma menina, a “sem coração” do título, um objeto e público, para seus desejos egoístas.  Mas o significado de dar e receber pode ir além do mero impulso.  “Sem Coração”, codirigido por Tião, tem 25 minutos de duração.  Também recebeu muitos prêmios.

“Dia Estrelado”, com 17 minutos, complementa o programa, mostrando a diretora já com domínio das técnicas de animação.  Com certeza, Nara Normande tem muito mais a oferecer ao cinema brasileiro, daqui para a frente.  Vale acompanhar.




terça-feira, 29 de janeiro de 2019

FEVEREIROS

Antonio Carlos Egypto





FEVEREIROS.  Brasil, 2017.  Direção: Márcio Debellian.  Documentário.  Com Maria Bethânia.  75 min.


Maria Bethânia, uma das maiores intérpretes da música brasileira, com 50 anos de uma brilhante carreira, já recebeu inúmeras homenagens, foi cantada em prosa e em verso, por meio de todas as mídias possíveis.  Um desafio para o documentarista Márcio Debellian.  O que ainda faltaria dizer ou abordar sobre ela?

Quem mostrou o caminho foi a escola de samba Estação Primeira de Mangueira.  Em 2016, a Verde e Rosa homenageou Bethânia com o enredo “Menina dos Olhos de Oya”, dando destaque ao lado religioso da vida dela.

O sincretismo religioso de Maria Bethânia combina o candomblé, a devoção católica, sobretudo, à Nossa Senhora e sabedorias herdadas dos índios.  Esse amálgama traz a fé temperada pela diversidade e pela tolerância.  E o convívio muito próximo e intenso com o mano Caetano acrescenta os elementos de ceticismo e ateísmo à mistura.  Caetano Veloso, aberto a tudo, como ela, compartilhando experiências, mesmo sem crer verdadeiramente.  Belos exemplos de respeito à ampla diversidade de cultos, crenças e não crenças.  Que celebra a vida e a história, com festa.

O filme “Fevereiros” explora bem esse caminho, ao mostrar e tratar do desfile campeão da Mangueira, que levou em conta a história do samba, a tolerância religiosa e o racismo, ao homenagear a carreira da cantora, que explodiu em 1964, no show Opinião, com a célebre interpretação de “Carcará”, de João do Vale.  A ave, em grandes dimensões, foi um dos destaques do desfile.

Márcio Debellian buscou explorar o universo familiar, festivo e religioso de Bethânia, acompanhando-a a Santo Amaro da Purificação, cidade natal dela, no Recôncavo Baiano, a região brasileira que recebeu mais negros escravizados da África.  E a cidade que cultua Santo Amaro, Nossa Senhora da Purificação e outros santos em todos os fevereiros, com grandes rituais e festas populares.  Maria Bethânia nunca deixa de estar lá, a partir de 31 de janeiro, em todos os fevereiros, luminares,  marcantes de sua vida.




“Fevereiros” traz a boa conversa de Bethânia, de Caetano Veloso, de outros familiares dela, participações de Chico Buarque e da turma da Mangueira. Tudo muito bom de se ver e ouvir.  Pena que haja pouca música cantada por ela, mas isso se perdoa.  Afinal, o que mais se conhece dela são suas canções gravadas, os poemas que ela recita lindamente, suas aparições mágicas nos palcos.  O recorte de “Fevereiros” é outro, não exatamente original, mas bastante oportuno.  Em tempos de fundamentalismos religiosos idiotas e opressores, é bom celebrar a vida, a festa, a tolerância e, sobretudo, a diversidade.

“Fevereiros”,  lançado no festival do Rio 2017,  já exibido em 29 festivais de cinema pelo mundo, foi escolhido como o melhor filme do 10º. In-Edit Brasil e recebeu menção honrosa do Júri Latino-americano do Festival Internacional do Uruguai.




segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

TEMPORADA

  Antonio Carlos Egypto





TEMPORADA.  Brasil, 2018.  Direção e roteiro: André Novais Oliveira.  Com Grace Passô, Russo Apr, Rejane Faria, Hélio Ricardo, Ju Abreu, Sinara Teles.  113 min.


“Temporada”, de André Novais de Oliveira, o filme que levou mais prêmios no último Festival de Brasília, mostra-nos realisticamente o trabalho dos agentes de saúde que partem, de casa em casa, para atuar no combate à dengue e a outras endemias.

O foco está em Juliana, que se muda de Itaúna, no interior de Minas Gerais, para assumir um posto de agente de saúde em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte.  O seu processo de adaptação ao trabalho, aos seus novos colegas e à ausência do marido, que ficou de vir depois, exige dela muito empenho para lidar com essas dificuldades.  E algumas situações pouco comuns podem mudar aspectos importantes da sua vida.

O grande trunfo de “Temporada” é a atriz que faz Juliana: Grace Passô.  Com grande domínio de cena, muita expressividade e forte desempenho, ela leva o filme com muito êxito.  Até quando o que está sendo exibido não empolga tanto assim.




O tema, importante na área da saúde, é bem trabalhado, do ponto de vista descritivo. Talvez fosse importante aprofundar mais o assunto, com questionamentos que levassem a uma reflexão mais intensa, já que aí está um dos nós da questão da saúde no Brasil.

O objetivo do diretor, no entanto, priorizou a personagem em processo de adaptação e mudança, alçando-a ao primeiro plano.  O ótimo desempenho de Grace Passô, premiada como melhor atriz nos Festivais de Brasília e de Turim, na Itália, justifica isso.  Os demais prêmios conquistados no Festival de Brasília incluem melhor filme, ator coadjuvante, direção de arte e fotografia.





quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

WAJIB

Antonio Carlos Egypto




WAJIB – UM CONVITE DE CASAMENTO (Wajib).  Palestina, 2017.  Direção: Annemarie Jacir.  Com Mohammad Bakri, Saleh Bakri, Maria Zreik.  96 min.


Estamos na Palestina, mas o hábito de entregar convites de casamento só pessoalmente, envolvendo uma rápida visita a cada convidado, é algo que também foi, e é, bastante praticado entre nós.  Especialmente nas cidades menores.  Enfim, o filme “Wajib” fala desse dever social (que é o que a palavra wajib significa) que tem de ser praticado pelos homens da família, geralmente pai e filho.  É o caso do filme.

Diante do casamento de Amal (Maria Zreik), seu pai Abu (Mohammad Bakri), que sempre viveu em Nazaré e tem concepções tradicionais do mundo, e seu irmão Shadi (Saleh Bakri), arquiteto, que mora na Itália, assumem essa tarefa.




Enquanto Abu desenvolveu uma espécie de resignação diante de condições de vida que impõem humilhações aos palestinos, por parte do Estado israelense, Shadi, que teve de sair de lá por razões “políticas”, adaptou-se à vida da Itália, mais livre e moderna.  Isso é representado em “Wajib” a partir da sua aparência, usando uma calça vermelha, camisa rosa estampada sob um paletó escuro e cabelo amarrado atrás, numa espécie de rabo de cavalo.  Dito assim, pode parecer ridículo, mas não é.  Ele está bem vestido.  Só que de uma forma que incomoda conservadores.

Há, no entanto, muitas coisas comuns entre pai e filho, sobretudo sentimentos pouco ou nada explicitados.  De qualquer modo, essa tarefa, que perpassa todo o filme, não teria como ser harmoniosa, sem conflitos. A diretora Annemarie Jacir enfatiza as sutilezas, tanto das convergências, quanto das diferenças entre eles.  E o ambiente conflitivo que os envolve.

Mais do que centrar-se nas individualidades dos dois personagens principais, o que se apreende é um clima social opressor, que os divide.  A busca de reações independentes e libertárias por parte de Shadi, no entanto, só é possível pelo afastamento do seu contexto cultural de origem.  A Itália aparece como um lugar onde se respira liberdade e cultiva-se a beleza, em contraste com o belo ambiente nazareno, porque milenar, mas descuidado e sujeito à destruição, permanentemente.




A mulher tem ainda papel secundário, mas envolvendo elementos decisivos para entender como se vive sob amarras moralistas.  A mãe, que saiu de lá e construiu uma nova relação no exterior, ameaça não vir ao casamento da filha e isso é fonte de sofrimento para Amal e vergonha, para a família.  Shadi vive com uma moça em Roma,  mas isso é escondido, já que ele não é casado.  O que se fala é, portanto, uma aparência, uma falsidade.  Assim como a ideia, professada por Abu, de que lá é que se vive bem e pode-se ser feliz.  Será?  É a pergunta que está sempre presente, em cada cena, em cada expressão, em cada visita para entregar convites de casamento.  Sobre o próprio casamento de Amal, o que ele realmente significa? 

“Wajib” tem consistência, profundidade e personagens bem construídos e representados por Mohammad Bakri e Saleh Bakri,  pai e filho também na vida real, que sustentam o filme todo o tempo.  Muito bem dirigidos por uma cineasta talentosa, sem dúvida.




quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

PRÊMIO ABRACCINE - MELHORES FILMES DE 2018

Antonio Carlos Egypto




A ABRACCINE, Associação Brasileira de Críticos de Cinema, congrega uma centena de críticos em 16 estados brasileiros.  Também faço parte dela.  Como em todos os anos anteriores, votamos nos melhores filmes lançados e exibidos ao longo do ano, em dois turnos.  Inicialmente, cada um indicando os seus três favoritos em cada categoria, depois, escolhendo entre os três mais votados por todos, os melhores longa e curta brasileiros e o melhor longa estrangeiro.

Como sempre, são considerados elegíveis os filmes lançados no circuito cinematográfico durante o ano todo, exceto festivais e mostras especiais.  A novidade neste ano foi a inclusão dos filmes lançados em streaming, como foi o caso do longa estrangeiro vencedor.

O prêmio ABRACCINE relativo aos melhores de 2018 vai para:
Longa estrangeiro – ROMA, de Alfonso Cuarón.
Longa brasileiro – ARÁBIA, de Affonso Uchoa e João Dumans.
Curta brasileiro – GUAXUMA, de Nara Normande.

Leia, a seguir, as minhas críticas dos dois longas premiados.

ROMA (Roma).  México, 2018.  Direção: Alfonso Cuarón.  Com Yalitza Aparício, Marina de Tavira, Marco Graf, Daniela Demesa, Enoc Leaño, Nancy García.  135 min.





ROMA, filme mexicano de Alfonso Cuarón, com uma bela fotografia em preto e branco, é focado nas mulheres.  Coloca-nos dentro do espaço doméstico de uma família de classe média-alta do México, anos 1970.  A empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparicio) e sua colega Adela (Nancy García), de ascendência indígena, trabalham, sem conflitos aparentes, para Sofia (Marina de Tavira), a dona da casa, com quatro filhos, cujo marido está sempre ausente.

Cleo cuida dos filhos de Sofia como se fossem seus.  E o filme mostra uma rotina em que fica claro o trabalho extenuante, semiescravo, das serviçais, mas também um convívio pacífico e mesmo acolhedor da patroa.  Sem tempo de ter vida própria, Cleo parece realizar-se por meio da vida da família que a emprega.

O incômodo inicial fica por conta de um carro grande, o velho Galaxy, que vive arranhado, porque não cabe direito na garagem da casa.  Algo ali não se sustenta.  Os dramas que se desenvolverão a partir daí na vida das duas mulheres protagonistas, Cleo e Sofia, provocarão um turbilhão de eventos, que se entrelaçam com as lutas políticas do período, entre milícias e manifestantes estudantis, que acabarão por exercer papel decisivo no desenrolar da trama.  Mas os homens que se relacionam com as protagonistas são os grandes responsáveis pela dor e sofrimento que elas têm de viver.  A condição de mulher aproxima ambas.  Aquilo que as diferenças de classe separam a condição feminina agrega.

Sequências muito bem construídas, ao longo de todo o filme, encantam, da lavagem do pátio da casa ao impressionante encontro nas ondas do mar, sempre com a figura marcante da empregada Cleo. Tanto quando nada parece estar acontecendo, como quando tudo se desencadeia com grande intensidade.

A atriz indígena Yalitza Aparício obtém um desempenho notável para uma iniciante.  É um dos grandes trunfos do filme.  Será a primeira indígena indicada a melhor atriz no Oscar.  E já na sua primeira atuação no cinema.

ROMA, vencedor do Leão de Ouro em Veneza, com dez indicações no Oscar 2019, é um trabalho autoral de Cuarón, que atuou como diretor, roteirista, montador e diretor de fotografia.  Pela sua qualidade merece ser visto na tela do cinema, mas é uma produção da Netflix, que está sendo vista nas telas da TV.  Está sendo exibida em poucas sessões gratuitas nos cinemas, em algumas cidades do Brasil.  Isso acaba dando acesso a pouca gente.  Por outro lado, o lançamento em streaming deu uma dimensão maior à divulgação do filme.  O que é especialmente interessante em se tratando de um trabalho artístico autoral, que dificilmente alcançaria grande repercussão.  Mesmo considerando que o cineasta mexicano Alfonso Cuarón já tem uma larga filmografia de sucesso também em Hollywood.  São filmes dele, por exemplo, “E Sua Mãe Também” (2001), “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban “ (2004), “Filhos da Esperança” (2006), e “Gravidade” (2013).
__________________________________

ARÁBIA.  Brasil, 2017.  Direção:  Affonso Uchôa e João Dumans.  Com Aristides de Souza, Murilo Caliari, Renata Cabral, Gláucia Vanderveld, Renan Rovida.  96 min.



  
O cinema dispõe de recursos poderosos para nos trazer, reportar, realidades, que podem estar distantes de nós, não apenas por meio de uma riqueza de informações, mas também com a carga emocional que a situação apresentada requer.  Bons personagens, dentro de uma boa estrutura dramática, são capazes de nos levar a viver a experiência de vida intensa e sofrida de pessoas que estão mergulhadas em contextos sociais diversos dos nossos.

 O filme brasileiro ARÁBIA, por meio do personagem Cristiano (Aristides de Souza) e seu diário encontrado após sua morte pelo jovem André (Murilo Caliari), nos coloca em cheio na realidade do trabalhador operário no Brasil dos últimos anos e da atualidade.  Conhecemos sua existência bem de perto, o que faz, como trabalha e se relaciona com as pessoas, suas andanças e mudanças, desejos, esperanças, desilusões.  Uma vida muito dura, penosa, mas enfrentada com vigor e resignação.  Emocionalmente nos transportamos para um universo psíquico, que requer um equilíbrio precário e difícil, como fator de sobrevivência, para além das circunstâncias materiais propriamente ditas.

Quem nos conta sua vida no cotidiano é o próprio personagem, na narrativa descritiva e também reflexiva de seu suposto diário, escrito em linguagem simples, mas nem por isso menos elaborada, enquanto dimensão humana. Os diretores evitaram a intelectualização da escrita, mas a deixaram consistente e profunda.  Detalhada demais para a situação, talvez.  É essa narrativa simples e forte que conquista o jovem leitor, que vive no mesmo ambiente e nas mesmas condições de penúria e vulnerabilidade.

ARÁBIA é um nome estranho à narrativa do filme.  Refere-se apenas a uma piada contada no bar, que ilustra uma percepção simplista de uma situação inusitada, essa, sim, ligada ao contexto árabe.  Mas é um título que esconde o que é o filme.

Grande vencedor do Festival de Brasília, premiado como melhor filme. ator, montagem, trilha sonora e prêmio da crítica.  Foi bem recebido e premiado em muitos outros festivais internacionais, especialmente em competições latino-americanas.





terça-feira, 15 de janeiro de 2019

YARA

Antonio Carlos Egypto





YARA (Yara).  Líbano, Iraque, 2018.  Direção e roteiro: Abbas Fahdel.  Com Michelle Webbe, Elias Freifer, Mary Alkady, Charbel Alkady.  101 min.


‘Yara” nos leva a uma região de grande beleza natural, no norte do Líbano: o Vale de Qadisha, uma localidade rural isolada, cercada de belas montanhas e uma paisagem verde exuberante.  Circulam por lá as cabras, as galinhas, gente que cozinha, lava roupa, toma sol.  Muito pouca gente.

Num ambiente tranquilo e de muita paz, tão perto de uma zona conflagrada, vivem a adolescente Yara (Michelle Webbe) e sua avó uma rotina em que, a rigor, nada acontece e tudo se repete.

No entanto, a entrada em cena de um jovem andarilho, Elias (Elias Freifer), meio perdido naquela região, acaba trazendo uma inesperada amizade e a perspectiva de um amor de verão para Yara e para ele.  A narrativa rarefeita de “Yara” se resume a isso, num ritmo bastante lento, contemplativo. 

Durante uma hora e meia vivemos nesse paraíso de beleza e paz, sorvendo cada instante, percebendo nuances, detalhes.  É um tipo de filme, hoje já disseminado, que se contrapõe à tendência não só do cinemão comercial, agitado e enlouquecido, como da vida diária das grandes cidades do mundo, seus conflitos e suas guerras.  Um bálsamo para tempos bicudos.




É curioso que essa tenha sido a escolha do diretor Abbas Fahdel, nascido no Iraque, vivendo na França desde os 18 anos de idade.  Ele atuou como documentarista em função da terrível situação da guerra em seu país, procurando entender o que teria acontecido com seus amigos de infância que lá permaneceram, registrando um Iraque abalado pela violência, pelo pesadelo da ditadura e pelo caos que lá se instalou.  Outro documentário em duas partes, “Antes da Queda” e “Depois da Batalha”, aborda a invasão norte-americana do país.  Um longa de 2008, “Down of The World”, é um drama sobre os múltiplos impactos da Guerra do Golfo, numa área conhecida como Jardim do Éden.

Com esse histórico e essa identidade geográfica, chega a ser surpreendente esse conto de amor, emoldurado pela beleza natural, pela juventude, pela inocência e pela sutileza.   O diretor foi em busca de uma fábula que traz o reverso da moeda.  Um alívio, depois de tanta guerra e destruição.  Um filme extremamente delicado e sensível, ambientado num Líbano pacífico.  Um filme para relaxar e curtir, sem pressa.

                    +++++++++++++++++++++

CURSO CINEMA: HISTÓRIA E LINGUAGEM 2019

Se você gosta de cinema e quer ter maior conhecimento de causa, recomendo o curso que fiz há alguns anos e que muito me ensinou.  Ministrado por um mestre da crítica, INÁCIO ARAÚJO, com a duração de um ano, ocorre sempre às segundas-feiras (19:30 a 23:00 h) ou às terças (9:30 a 13:00 h), no Espaço Itaú de Cinema – Anexo, na rua Augusta, 1470, São Paulo, SP.  Existem opções por acompanhar módulos por um mês, um trimestre ou um semestre.  Informações e inscrições: www.cursoinacioaraujo.blogspot.com , pelo e-mail cinegrafia@uol.com.br
 ou pelo telefone (11) 3926-2538.  Começa nos dias 11 ou 12 de fevereiro, dependendo de sua escolha.  Vale mesmo a pena.





domingo, 13 de janeiro de 2019

MEU QUERIDO FILHO

Antonio Carlos Egypto





MEU QUERIDO FILHO (Weldi).  Tunísia, 2018.  Direção e roteiro: Mohamed Ben Attia.  Com Mohamed Dhrif, Mouna Mejri, Zaharia Ben Ayyed.  104 min.
 

O que o filme tunisiano “Meu Querido Filho’, dirigido por Mohamed Ben Attia, nos mostra é uma relação simbiótica entre pai e filho.  Conta também com a participação da mãe, Nazli (Mouna Mejri), mas de modo mais distanciado e crítico.  Já o pai, Riadh (Mohamed Dhrif), que acaba de se aposentar, vive agora em tempo integral a vida de seu filho único, em vias de prestar o vestibular.  O menino Sami (Zaharia Ben Ayyed), sufocado nessa relação, se comporta como um boi que vai ao matadouro.  Depressivo e sem reação aparente, a não ser as constantes enxaquecas, que denunciam seu mal-estar permanente.  O que só reforça a atitude familiar de viver em função das necessidades do filho.  Como sair dessa enrascada?

O filme dá uma pista: Sami sai correndo de algum lugar para chegar a tempo de ser buscado pelo pai no colégio.  E de lá sai como se tivesse se dedicado às aulas durante aquele período.  Às vésperas do vestibular, desaparece, deixando os pais sem rumo.

Até aí, o processo é compreensível e bem descrito.  A maionese desanda quando a gente fica sabendo que Sami foi para a Síria, em plena guerra, e o pai resolve ir atrás dele.  Estranho esse caminho.  Para se diferenciar e encontrar sua identidade, foi preciso ir em busca de uma forma de terrorismo islâmico?  Por que a Síria?  Para se casar e ter filhos lá?  Mais estranho ainda.  Teria sido convencido a ir lutar, por meio da Internet?  Ou teria sido sequestrado?

A questão assume contornos políticos que complicam a narrativa e flertam com preconceitos e com o uso da velha fórmula: o lado do bem e o lado do mal.




“Meu Querido Filho” conclui bem, depois disso, pois volta ao contexto pessoal e familiar de onde partiu, mas deixa um cheiro de manipulação no ar, que soa incômodo.  E não permite que a trama flua dentro da temática psicológica que nos apresentou.  Elementos exógenos a ela ficam mal explicados, inconvincentes.

O desempenho do elenco é bom, mas a figura do filho demandaria mais nuances interpretativas.  Já o pai é muito convincente na sua atuação, evocando sua dedicação, sua luta interna e seu sofrimento.  Talvez por isso seja mais fácil identificar-se com ele, em que pese a opressão inconsciente que o personagem pratica, do que com o filho, sufocado e inerte.  Bem, isso também dependerá da idade do espectador, por certo.

“Meu Querido Filho” foi exibido na 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  Participam dessa produção bem cuidada os irmãos Dardenne, conceituados cineastas belgas.




segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

A NOSSA ESPERA

Antonio Carlos Egypto





A NOSSA ESPERA (Nos Batailles).  Bélgica/França, 2018.  Direção: Guillaume Senez.  Com Romain Duris, Lucie Debay, Laetitia Dosch, Cédric Vieira, Laurie Calamy.  99 min.


Um operário vivendo do chão de fábrica, competente, dedicado ao seu trabalho, e também consciente de seus deveres e responsabilidades junto aos seus colegas e subordinados.  Atento à forma como a empresa trata seus empregados, disposto a lutar por direitos, justiça, respeito e melhores condições de trabalho.  Esse é o personagem Olivier (Romain Duris).  Ou melhor, a face trabalhista dele.

A outra face é a familiar, tão dura e cheia de percalços como a do trabalho.  O dinheiro é restrito, dois filhos pequenos demandam cuidado e atenção permanentes.  Mas enquanto a mãe Laura (Lucie Debay) está presente, dá para levar.  Só que um dia ela some, sem deixar explicações, e a vida de Olivier se complica enormemente.

O que o filme do diretor belga Guillaume Senez explora em estilo bem realista é a luta desse homem simples, operário, trabalhador, seu drama familiar com seus filhos e a participação de sua mãe e de sua irmã.  Uma história sobre abandono e perdas.




O título em português alude também á questão da indefinição e da espera pelo possível retorno de Laura.  Daí “A Nossa Espera”.  O título original, porém, prefere enfatizar as batalhas do personagem e de seu meio: “Nos Batailles”.

A narrativa faz uma boa conexão entre a vida pessoal e o aspecto coletivo, social, mostrando como uma coisa interfere fortemente na outra e como os valores se constroem, ou são vividos, lá e cá.

Um dilema moral muito relevante resultará disso tudo, envolvendo não só o protagonista Olivier, mas também seus dois filhos, que ainda pequenos experimentarão o significado da democracia.  Enfim, “A Nossa Espera” é um filme político, no sentido de que nossa atitude, nossas crenças, nossas ações, em casa ou no trabalho, são políticas e têm repercussões na vida dos outros.  Unanimidades são raras, por isso é preciso negociar, cultivar a alteridade, respeitar as diferenças e os sentimentos.

Romain Duris, com seu talento e discrição, constrói um Olivier fascinante, que a gente aprende a respeitar e torce por ele.  No entanto, ele não se comporta como um herói.  Ele luta para sobreviver com dignidade e para dar conta de tudo, dentro dos seus limites e com suas falhas.  Como todo mundo.  Só que, para alguns, a vida é mais penosa, mais difícil.  Às vezes, o desafio parece grande demais!  Mas a solução fácil pode ser mais lesiva do que a dura batalha do dia a dia, com suas escolhas complicadas.