quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Críticos - Neusa Barbosa

Tatiana Babadobulos

A jornalista, crítica e pesquisadora paulistana Neusa Barbosa, que trabalhou no jornal "Folha de S. Paulo" e na revista "Veja S. Paulo". Atualmente, ela edita o site "Cineweb" (www.cineweb.com.br), especializado em cinema, e colabora com as revistas "Bravo" e "Wish Report".

Especialista em crítica de cinema, a jornalista também costuma participar da cobertura de festivais internacionais, como Cannes e Veneza, e nacionais, como Brasília, Recife e Gramado. Além disso, dedica-se a cursos sobre cinema. Seus livros publicados são: "Gente de Cinema – Woody Allen" (Editora Papagaio, 2002), "John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida" (Imprensa Oficial SP, 2004), "Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente" (Imprensa Oficial SP, 2004) e "Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão: Analisando Cinema" (Imprensa Oficial SP, 2006).

Em sua opinião, qual deve ser a formação de um crítico de cinema?
Acredito que um crítico deva ter uma formação universitária e, de preferência, o jornalismo. Entendo que seja válido um outro tipo de reflexão sobre o cinema dentro da universidade, mas, em minha opinião, ela obedece a outros moldes. Acho fundamental que o crítico seja também um jornalista, não um teórico, porque isso pertence a uma esfera diferente (no caso, a universidade ou a docência).

Fora a formação universitária, propriamente dita, o crítico deve certamente acumular uma cultura bem ampla. Não só ver muitos filmes, mas também conhecer profundamente a história do cinema, ler muito, freqüentar exposições de arte, ir ao teatro, assistir a espetáculos de dança. Quanto mais o crítico de cinema tiver uma visão multidirecional, tanto melhor ele vai exercer o seu trabalho – até porque o intercâmbio entre as artes, que sempre existiu, está cada vez maior.

Acho muito importante também que o crítico de cinema seja informado em áreas diferentes, como história, sociologia, psicanálise, filosofia, política etc. Tudo vem somar. Um crítico centrado somente no conhecimento do cinema pode vir a bitolar-se em algum momento. Ou perder de vista novas interpretações do mundo que o ajudarão a exercer melhor seu próprio trabalho.

Qual é a função da crítica cinematográfica?
A crítica é o espaço da reflexão sobre a obra de arte, não meramente um indicador de estrelinhas, como muitas vezes acontece nos meios de comunicação (e não só no Brasil, é bom lembrar). Por “reflexão”, entendo uma interpretação, uma tentativa de ler as idéias, os sentimentos, as intenções, as contribuições que um determinado filme traga à sociedade, naquele momento em que está sendo feito. Fora isso, uma avaliação estética de como ele foi feito é sempre essencial.

Um crítico tem de ter um razoável conhecimento técnico (de roteiro, fotografia, montagem) para poder fazer isso. Acredito que a função crítica cinematográfica também seja uma forma de intercâmbio de idéias com o leitor. Uma visão possível, entre muitas. Não acredito em ditar o que o leitor deve assistir, deve gostar, embora recomendações sejam cabíveis, é claro.

A internet, especialmente, vem se mostrando um bom campo para essa troca. Se bem que ela ainda pode ser mais cordial, mais inteligente, mais fértil, mais produtiva. Muita gente usa a internet para expressar sua raiva, o que é válido, desde que fique dentro dos limites da boa educação. Podemos discordar, até radicalmente, diante de um filme, sem nos ofendermos mutuamente. Um mínimo de civilidade e respeito é preciso.

Quais os critérios que o crítico deve adotar ao exercer a sua profissão?
Ao exercer a profissão, o crítico deve ser atento, informado, conhecer a história do cinema, inclusive do nacional, ver todos os filmes. Esses são os pré-requisitos mínimos. Para se tornar profissional, o gosto do crítico fica em segundo plano. É preciso também despir-se de preconceitos, de idéias pré-concebidas sobre cineastas, atores, gêneros. Não raro somos surpreendidos por mudanças radicais dentro das carreiras das pessoas, para o bem ou para o mal. É preciso também manter os olhos abertos para o novo, sem nos viciarmos em uma espécie de ansiedade, que é muito comum ao crítico, que espera sempre a nova revolução que mudará o cinema a cada filme. Para concluir, o crítico nunca, nunca deve perder a paixão pelo cinema. Se isto acontecer por algum motivo, é melhor mudar de ramo. Parece óbvio dizer isto, mas não é.

O que é cinema?
Cinema é uma arte, um olhar múltiplo para a realidade, um sonho acordado, um caminho de ida e volta entre o imaginário e a razão do cineasta, dos atores e do público. É um ritual de exposição, de comunicação, de troca de emoções. Senão, não é nada.

Qual é a sua opinião a respeito do cinema nacional e suas sugestões para a produção brasileira?
O cinema nacional é muito rico, competente, sensível, diversificado. Somos capazes de uma produção em quantidade e qualidade altamente respeitáveis. Não temos nenhum motivo para ter complexo de inferioridade, muito menos de ficarmos preocupados demais com essa “falta de um Oscar”. Isto é bobagem. No entanto, o cinema nacional precisa ainda preocupar-se mais na formação de seu próprio público de amanhã. Ou seja: fazer mais e melhores filmes infantis, infanto-juvenis e juvenis. É preciso conquistar esse público, que fica muitas vezes cativo de grandes produções internacionais – que são altamente competentes, talvez, mas podemos ganhar uma parte do mercado deles. Para isso, é só encontrar a nossa originalidade, não copiar modelos que funcionam lá fora, em um esquema de produção completamente diferente.

Sobre o que você falou da prática de crítica na internet, o que você poderia acrescentar a respeito da interatividade? Os leitores participam das suas opiniões, costumam expressar os seus sentimentos a respeito daquilo que você escreveu, por exemplo? Tente oferecer alguns exemplos.
Os leitores (de internet, principalmente) sempre querem manifestar seus sentimentos e opiniões – em geral, quando são diferentes da opinião do crítico (e textos na internet favorecem a interatividade). Acho que a reação mais forte de que me lembro foi contra a crítica do filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson. Fui bem veemente contra a produção, que considero péssima e manipuladora, desonesta mesmo. Um leitor, certamente ultra-religioso, mandou mensagens me detonando e perguntando se eu tinha lido a Bíblia. O que não vem ao caso. Eu até tenho formação católica, estudei emcolégio de freiras, mas nada disso importa. Eu fiz uma crítica do filme, não da fé. O leitor não entendeu isso. Há pessoas que escrevem também para elogiar uma determinada crítica, manifestar que descobriram um filme por conta de alguma coisa que a gente escreveu. Isso é bem agradável.

Quais são as suas preferências estéticas?
Não sei se tenho preferências estéticas tão rígidas. De escolas de cinema, certamente não. Meus diretores favoritos são muitos: Orson Welles, David Lynch, Stanley Kubrick, Paul Thomas Anderson, Federico Fellini, Emanuele Crialese, Robert Altman, Ken Loach, Billy Wilder, Wim Wenders, Jean Renoir. Dos brasileiros, Walter Salles, Beto Brant, Karim Ainouz, Tata Amaral, Ana Carolina. Estou esquecendo muitos...

Entre as suas preferências estéticas, você mencionou alguns cineastas brasileiros e estrangeiros. No entanto, não citou Woody Allen, um cineasta sobre quem você já escreveu um livro. Embora uma coisa não tenha nada a ver com a outra, eu me lembro que, ao final da exibição de "Ponto Final - Match Point", durante uma cabine destinada a jornalistas, você comentou que já o tinha visto em Cannes e que gostava muito do filme. Lembro até que você falou assim: “É um mestre, né?”. De alguma maneira, ele entraria em sua seleção de melhores diretores?
Listas são injustas porque sempre deixamos de fora alguns nomes essenciais. Woody Allen sempre entra na minha lista dos dez mais, até porque ele é um dos mestres da comédia, autor de algumas das tramas mais originais (aí, não só as cômicas) e de vários dos melhores diálogos da história do cinema. Ele é um mestre (conforme comentário feito após a sessão do filme) e "Ponto Final - Match Point" é uma das provas disso.

No entanto, ele não entrou na lista, como assim ficaram de fora outros dos meus mestres, que aproveito para acrescentar agora: Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Jia Zhang-Ke, Hirokazu Koreeda, Denys Arcand, Jane Campion, Ang Lee e, dos brasileiros, não podem faltar João Moreira Salles e Eduardo Coutinho, dois mestres do documentário mundial (Santiago e Jogo de Cena estão entre os melhores filmes de todos os tempos neste gênero) e, claro, Glauber Rocha. Como esquecer Charles Chaplin? Não dá.

O que você pensa sobre escolas de cinema? Um bom cineasta precisa ter freqüentado a escola?
Em geral, um bom cineasta precisa ter freqüentado a escola. Acho que ela, pra qualquer profissão, dá um mínimo de ferramentas, inclusive um pouco de cultura geral. Sem contar a convivência com um grupo que gosta das mesmas coisas. Esse intercâmbio é fundamental. Até porque o contrário seria um diretor genial, que nascesse pronto magicamente. De maneira geral, isso não existe.

Qual é o papel da imprensa/mídia especializada em cinema?
A mídia especializada em cinema deve oferecer textos inteligentes, bem-escritos, bem-fundamentados, que levem à descoberta dos filmes, que incitem os cineastas a pensar em coisas que não pensaram quando fizeram os filmes, contribuindo, assim, para o aperfeiçoamento da atividade cinematográfica como um todo. Uma coisa que muita gente não lembra é que os críticos vêem muitos filmes, e por isso têm muita bagagem para comparações. Alguns cineastas não podem dizer o mesmo, pois eles mesmos não conhecem tanto os filmes dos colegas como deveriam. Em geral, os bons cineastas são também cinéfilos.

Qual, na sua opinião, deve ser o papel do Estado na atividade cinematográfica?
O Estado deve estimular a produção cinematográfica de todas as maneiras, diretamente, indiretamente, por todos os mecanismos que forem viáveis. Também deve contribuir para a distribuição e exibição, dois pontos críticos no caso do cinema brasileiro. Muito se produz no Brasil, mas os filmes não chegam a todos os espectadores potenciais. Seria preciso haver mais salas populares no Brasil. Só o Estado pode estimular isso, já que as grandes redes internacionais não querem saber disso.

Você poderia selecionar os melhores momentos de filmes e de diretores? Dê alguns exemplos.
No quesito melhores momentos de filmes e de diretores seria outra lista interminável, mas cito alguns poucos: a chuva de sapos de "Magnólia", de Paul Thomas Anderson; a conversa do filho com a mãe “no céu” de "Édipo Arrasado", de Woody Allen, parte de "Contos de Nova York"; a seqüência em que o ator desce na tela em "A Rosa Púrpura do Cairo", também de Woody Allen; as seqüências em que os anjos descem sobre a Berlim dividida sobre o muro no início de "Asas do Desejo", de Wim Wenders; a fala final de "Quanto Mais Quente, Melhor", de Billy Wilder; a dança dos pãezinhos na mesa de "A Corrida do Ouro", de Charles Chaplin.

De acordo com a história do cinema, o que se pode esperar do futuro do cinema nacional e mundial?
Não dá para prever o futuro do cinema mas, tanto para o cinema nacional como internacional, é fato que a revolução tecnológica, como sempre, desde o começo da história do cinema, está produzindo uma grande renovação. Se as pessoas, como parece, vão assistir a filmes em mídias móveis, como palms e celulares, com certeza isto afetará sua estética. Os cineastas vão ter de mudar completamente seu modo de trabalhar. As câmeras digitais já estão propiciando muitas mudanças, especialmente por sua agilidade e redução de custos. Falta agora os cineastas se ligarem num fato: nem tudo é estética. Tem de haver uma boa história para contar e contá-la de maneira original. É a velha história da câmera na mão e da idéia (aliás, muitas idéias) na cabeça.

Qual é, na sua opinião, o papel do circuito de cinema? E das produções alternativas?
As mídias digitais vieram para ficar, não tenho dúvida disto. E, com elas, a pirataria, infelizmente, também ficou mais fácil. De um lado, sou realista – acho que não há como evitar algum nível de pirataria. Mas ela pode ser reduzida se as empresas produtoras e distribuidoras criarem mecanismos mais eficientes para download pago (a preço bem acessível), legal e controlado em seus sites, por exemplo. Sem contar medidas mais duras contra os piratas. Isto cabe a governos e à polícia. O “circuito de cinema” é a produção que sustenta a própria idéia do cinema como indústria. Isso existe desde sempre e é um tremendo desafio. Criar produções que falem com todos os públicos e de todos os países é uma ambição imensa e cara. Depende de uniformização das informações e do gosto, o que Hollywood tem feito com muita agressividade, usando inclusive mecanismos políticos do governo americano para impor o seu “padrão de qualidade”.

O domínio mundial de Hollywood cria algumas distorções – em prejuízo dos filmes locais. Alguns países se dão melhor nesse enfrentamento, criando leis locais de proteção (França, Coréia, Índia). Mas não é fácil. O Brasil ainda não encontrou um modelo para essa grande produção comercial fora das novelas – esse sim, nosso grande produtor de entretenimento comercial que deu muito certo e é, inclusive, exportado. Acho que o nosso cinema não pode viver disso, pois o modelo televisivo é empobrecedor. Precisamos, no entanto, criar novos modelos de comunicação com o público, comédias (não deu certo com a Atlântida nos anos 1940?), musicais e filmes infanto-juvenis – é preciso criar platéias para o cinema nacional desde pequenas...

As “produções alternativas” são aquelas de menor porte – mas não necessariamente de menor criatividade –, que rompem o cerco da indústria dominante (sempre é Hollywood, exceto em países que conseguiram dominar seu mercado interno, caso da Índia). Elas são fundamentais até para oxigenar o mercado, que se enche rapidamente de filmes que procuram imitar o padrão que fez sucesso algum dia, o que fatalmente leva a uma estagnação. Pode-se ver que Hollywood está sempre comprando os direitos para refilmar alguns sucessos, especialmente franceses. Há uma desesperada busca de novas idéias no grande mercado competitivo mundial.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira

Tatiana Babadobulos

"Ensaio Sobre a Cegueira", livro escrito pelo português José Saramago, traz uma história comovente e ao mesmo tempo incômoda, pois trata-se de uma epidemia de uma cegueira que atingiu uma cidade inteira. Ao decorrer dos dias, conforme as pessoas vão "pegando", é possível conhecer as reações humanas. Para o cinema, o diretor Fernando Meirelles aceitou a empreitada de filmar a história que, na versão original (em inglês, já que é a origem dos produtores), chama-se "Blindness".
No início, em uma movimentada metrópole, um homem (Yoshino Kimura) está dirigindo e, de repente, não consegue avançar o semáforo porque ficou cego, de uma cegueira branca, leitosa. Quando consegue chegar em casa, vai com a esposa ao médico, que afirma não ter nada. Daí em diante, muitas pessoas passam a não ver e seguem para um local determinado pelo governo, onde ficarão em quarentena.
E é a partir daí que começa a segunda parte da trama, ainda mais incômoda, com imagens densas que desafiam a dignidade do ser humano, quando os obriga, cegos, a viverem com outras pessoas também cegas, que nunca conheceram na vida. E eles sofrem com a falta de comida e de medicamento, andam nus pelos corredores (afinal, apenas o espectador e um personagem podem ver - a Mulher do Médico, vivida por Julianne Moore). Ainda assim, ela não conta aos demais (exceto ao marido, personagem de Mark Ruffalo), que pode enxergar. Assim como no livro, os personagens não têm nomes.
Com roteiro escrito pelo canadense Don McKellar, o longa-metragem mostra em detalhes o sofrimento das pessoas, situa o espectador no local onde eles ficam "internados", principalmente por conta da sujeira proveniente das fezes, da urina, além dos corpos daqueles que morrem que vão ficando pelo chão, e da violência dos estupros, em cenas fortes, mas que não chocam o espectador pois apenas induz. Essa seqüência, aliás, conforme disse Meirelles em entrevista, foi cortada após os "screening tests", mas poderá ser vista no DVD.
Com fotografia de César Charlone, o mesmo que acompanhou Meirelles em "Cidade de Deus", o espectador quase pode ver tal como o personagem, já que o excesso de branco e a falta de foco dão essa impressão. Como foi filmado em diversas cidades, o filme não conta ao espectador onde a narrativa se passa, mas as imagens possuem orientação urbana. No início, as imagens, que lembram videoclipe (uma característica de Meirelles que pode ser conferida tanto em "Cidade de Deus" como em "O Jardineiro Fiel"), mostram o caos no trânsito, o barulho nas ruas. No entanto, é possível identificar que as cenas externas são filmadas em São Paulo. É fácil reconhecer a Avenida Paulista, a Ponte Estaiada antes de ficar pronta, a Marginal do Pinheiros, mas ao mesmo tempo agride o espectador porque as placas dos carros são maquiadas e a viatura da "Police" possui chapa de três letras e quatro números (exatamente como as brasileiras).
Ao mesmo tempo em que os personagens são estranhos, pelo fato de estarem sendo testados, o espectador consegue eleger um para o qual torcer. E boas interpretações, aliás, não faltam. Nisso, há de se dar todo o mérito a Meirelles, que pecou na direção de arte (que mostra, por exemplo, televisores antigos e carros modernos), mas deu um banho em fotografia e direção de atores.
No elenco, também está Alice Braga, que trabalhou com Meirelles em "Cidade de Deus" e interpreta a Mulher dos Óculos Escuros. Um dos destaques, porém, é o personagem Rei da Ala 3, interpretado por Gael García Bernal. Isso porque ele é apresentado como Barman do hotel, mas depois, quando vai para a quarentena, passa a controlar a comida e a exigir jóias e mulheres em troca. Um dos momentos engraçados é quando ele pinta as unhas e imita Steve Wonder cantando "I just call to say I love you".
Além de São Paulo, o longa foi filmado no Canadá (em uma prisão desativada) e nas ruas de Montevidéu, no Uruguai.
Sobre o cineasta
Fernando Meirelles começou no cinema comercial em 1999, quando dirigiu ao lado de Fabrízia Pinto, "Menino Maluquinho 2 - A Aventura". Nesta época, o cinema brasileiro vivia o ciclo da Retomada, iniciado em 1993. O primeiro filme que marca esta época é "Carlota Joaquina", dirigido por Carla Camurati. O diretor nasceu em São Paulo, no dia 11 de setembro de 1955. Sua infância foi dividida entre sua casa, que ficava próxima ao que hoje é a Praça Pan-Americana, no Alto de Pinheiros, e o interior, onde moravam os seus avós. Terceiro filho de quatro ao todo, Fernando Meirelles morou um ano nos Estados Unidos, quando tinha 11 anos de idade, pois seu pai foi fazer uma especialização na Universidade da Califórnia, Los Angeles (Ucla). Lá ele aprendeu a falar inglês fluentemente.

Meirelles não se lembra qual foi o primeiro filme a que assistiu, mas se lembra que seu pai filmava com câmera 8 mm e costumava projetá-los na parede. Mas foi aos 13 anos que começou a fazer filmes domésticos em Super-8. Quando começou a freqüentar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, porém, Meirelles também realizou trabalhos em Super-8, como o "Arquitetura Animada". Seu trabalho de conclusão foi entregue em vídeo, mas lhe valeu apenas a nota mínima para aprovação.

Estudou francês em Paris e em Aix en Provence, na França, e tinha a intenção de estudar Biologia e Oceanografia na Sorbonne, mas desistiu antes mesmo de fazer a matrícula e tratou de voltar para o Brasil após um passeio por outros países. Foi a partir daí que começou a cursar arquitetura na FAU. Embora gostasse da profissão, Fernando Meirelles nunca chegou a trabalhar na área. Na verdade, seu primeiro trabalho remunerado foi para um professor da Universidade que encomendou fotografias para documentação na beira do Rio Paraná. Foi a partir de então que começou a trabalhar por prazer, e a receber por isso. Junto com outros colegas, Paulo Morelli e Dario Vizeu, fundou a Aruanã Filmes. Foi esta produtora que deu forma às animações em 35mm, usando umacâmera da Escola de Comunicações e Arte da USP.

Q sofreu um acidente de moto e ficou seis meses preso à cama e a uma cadeira-de-rodas que Fernando Meirelles leu sem parar clássicos da literatura e terminou a faculdade entregando o trabalho final em vídeo. Na USP, aproveitava para assistir ao filmes que eram projetados ali, principalmente o cinema alemão, além de freqüentar cinemas da cidade, onde desenvolveu seu gosto pela sétima arte e admiração por diretores, como Terrence Malick, Martin Scorsese, Coppola e Robert Altman, além dos clássicos Akira Kurosawa, Satyajit Ray, Ingmar Bergman e Gillo Pontecorvo. Entre os ingleses, Mike Leigh, Ken Loach. Entre os brasileiros, gosta de obras dirigidas por Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Nelson Pereira dos Santos, Sérgio Person, Arnaldo Jabor, Roberto Farias, Hector Babenco, Walter Lima Jr., entre outros.

A partir daí já tinha fundado a produtora independente Olhar Eletrônico ao lado de Paulo Morelli, Marcelo Machado, Dario Vizeu e Beto Salatini, onde começou a produzir vídeos para a TV em uma casa localizada na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde havia uma ilha de edição onde seria a sala. Os quartos no fundo eram usados para eles mesmos dormirem. Tudo foi intuitivo e os rapazes aprenderam sozinhos. Seus primeiros filmes foram "Marly Normal", "Garotos do Subúrbio", "Do Outro Lado da Sua Casa". A partir desses trabalhos eles foram convidados para trabalhar na TV, no programa 23ª Hora, a convite do jornalista Gourlat de Andrade. Fizeram também o programa Antenas e criaram o repórter Ernesto Varela, interpretado por Marcelo Tas, que se incorporou pouco tempo depois. Foi por conta deste repórter que a produtora foi convidada a produzir vídeos para a Abril Vídeo, onde produziram quadros para o programa "Olho Mágico". Outro programa criado para esta empresa foi o Crig-Rá, com assuntos de variedades, destinado a adolescentes. Na seqüência, fizeram programas políticos para o PT, mas não deu certo. Segundo depoimento de Fernando Meirelles à jornalista Maria do Rosário Caetano, para a sua Biografia Prematura, da Coleção Aplauso, "a Olhar Eletrônico foi dando certo não porque fazíamos TV bem feita, mas porque fazíamos diferente". Ele conta que o trabalho não era bem acabado, mas era original.

Antes de fazer sucesso com a série infantil "Rá-Tim-Bum", na TV Cultura, a partir de 1988, a Olhar Eletrônico passou ainda a fazer quadros para a TV Bandeirantes (Vídeo Surf), quadros para o Fantástico, da TV Globo, e para aextinta TV Manchete. Meirelles também dirigiu o "TV Mix" na TV Gazeta, de onde saiu muita gente que foi para a MTV, assim que ela foi implantada no Brasil.

Durante cinco anos seguidos recebeu o prêmio de Melhor Diretor de Publicidade Brasileiro pela revista Meio e Mensagem, além de vários Leões em Cannes, Clio Awards etc. A convite de Roberto Oliveira, Fernando Meirelles deixou os comerciais de lado por um tempo para criar 180 episódios, de meia hora cada um, do infantil "Rá-Tim-Bum".

Com a ida de muita gente embora para tocar outros projetos, a Olhar Eletrônico fechou e em 1990 Fernando Meirelles e o sócio Paulo Morelli criaram a O2 Filmes, no Alto de Pinheiros, em São Paulo. Ao lado de Nando Olival, o cineasta dirigiu os curtas-metragens "Bom Coração", em 1996, e "E no Meio Passa um Trem", em 1998. Como forma de um ensaio para "Cidade de Deus", dirigiu ao lado de Kátia Lund o curta "Palace II", que ganhou, entre os prêmios, o de Melhor Curta-metragem no Melbourne International Film Festival (2002 - Austrália); Best Interncaional Short - Festival de Brasília (2001 - Brasil); 30º Festival Internacional de Cinema do Algarve (Portugal).

Seu primeiro longa-metragem foi "Menino Maluquinho 2 - A Aventura", em1998, com direção ao lado de Fabrízia Alves Pinto, filha de Ziraldo, autor do livro. Em 2001, ao lado de Nando Olival, dirigiu "Domésticas - O Filme", baseado em peça teatral homônima, sobre o universo das empregadas domésticas. Meirelles, então, iniciou outro projeto, embora já estivesse mergulhado no universo de "Cidade de Deus" desde 1998, quando comprou os direitos do livro escrito por Paulo Lins.

Ao lado de Bráulio Mantovani, Meirelles recorreu a elenco não conhecido para formar os atores e atrizes do longa-metragem que o projetaria internacionalmente e conquistaria diversos prêmios, incluindo quatro indicações ao Oscar. Seu penúltimo filme lançado foi "O Jardineiro Fiel", produção internacional, com elenco igualmente estrangeiro, e que se passa em Londres e em cidades do Quênia, na África. Neste ano, foi lançado "Blindness", filme baseado em romance do escritor português José Saramago, "Ensaio Sobre a Cegueira". O longa-metragem começou a ser rodado em julho de 2007 em estúdios do Canadá. De acordo com o blog publicado na internet sobre o filme, Meirelles já havia lido o livro assim que ele foi lançado no Brasil, em 1997 ou 1998. Ele conta, no primeiro post, que tentou comprar os direitos do filme, mas não houve interesse por parte do autor. Foi aí que resolveu se aprofundar em "Cidade de Deus". O convite aconteceu em meados de 2006, quando recebeu um e-mail do produtor canadense Niv Fichman perguntando se conhecia o livro de Saramago. Ao receber o roteiro pelo correio, Meirelles acenou positivamente e recomeçou o trabalho. Para aceitar o convite, Meirelles sugeriu a equipe que confia, César Charlone na fotografia e Daniel Rezende na montagem, além de ser uma co-produção brasileira.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

LINHA DE PASSE

Antonio Carlos Egypto


LINHA DE PASSE.  Brasil, 2008.  Direção: Walter Salles e Daniela Thomas.  Com Sandra Corveloni, Vinicius de Oliveira, Kaique de Jesus Santos, João Baldasserini, José Geraldo Rodrigues.  113 min.

“Linha de passe”, de Walter Salles e Daniela Thomas, é um retrato sem retoques do momento social brasileiro, visto a partir daqueles que têm menos esperanças para alimentar e que, no entanto, encontram meios de sobreviver.

Assim como a maioria das famílias brasileiras, é Cleusa, uma mulher sozinha, quem cuida de sua prole de quatro filhos, cujos pais estão ausentes e não são os mesmos. Ela, empregada doméstica, tem grandes dificuldades de tocar a casa, educar e acompanhar a vida dos filhos. São todos homens e, no entanto, é da presença masculina que ela sente falta, diante da pia entupida que nunca se conserta.

Ela não tem mesmo muita vocação para mãe, mas amplia suas agruras engravidando de novo, de alguém que não aparece na fita. Os outros são pálidas lembranças fotográficas, uma rasgada ao meio, para excluir o gerador do caçula, Reginaldo: aquele que vive perambulando de ônibus, sumindo de casa à procura do pai, ou de um pai.

Os outros filhos de Cleusa são jovens em idade de trabalhar e produzir. Dênis, o mais velho, já pai, é um motoboy e, por meio dele, vivemos tanto as experiências perigosas quanto as transgressoras, que podem fazer parte desse meio, emblemático de uma cidade enorme, agitada e que tem pressa, como São Paulo.

Dinho trabalha num posto de gasolina, mas o que o define como personagem é ser evangélico, um garoto que acolheu Jesus, assim como uma parcela cada vez maior da população brasileira.
O futebol tem sido uma saída para alguns jovens carentes superarem as barreiras da miséria e da falta de perspectivas. Esse é o caminho que vai trilhar Dario, depois de conhecer, e praticar, as safadezas associadas às “peneiras”, que buscam novos talentos para os clubes.

Uma cena pouca trabalhada, mas importante, remete ao mundo das drogas, outra opção para os que estão à margem. “Linha de passe” não se detém nisso, já muito mostrado pelo cinema brasileiro. Como não fixa o seu olhar na favela ou na violência. Tudo está lá, de alguma forma, porque faz parte dessa história. Assim como o outro lado, o das classes média e alta, assaltadas e acuadas.

O que interessa é investigar como viver nessas condições e eventualmente superá-las. O retrato que o filme nos apresenta é muito representativo de uma realidade, detectada por estudos e pesquisas, que se faz humana pela linguagem do cinema. Não há maniqueísmos, nem idealização na composição de nenhum dos personagens, e esse é um dos maiores méritos do filme.

Destaque para o desempenho do elenco, plenamente convincente nos diferentes papéis vividos pelos atores, entre eles, o Dario, de Vinicius de Oliveira, de “Central do Brasil”, o ótimo Reginaldo, do garoto Kaíque de Jesus Santos e, naturalmente, de Sandra Corveloni, que faz Cleusa, merecidamente premiada em Cannes por sua atuação em “Linha de Passe”.