sábado, 27 de junho de 2015

CASADENTRO


Antonio Carlos Egypto




CASADENTRO (Casadentro).  Peru, 2013.  Direção e roteiro: Joanna Lombardi.  Com Elide Brero, Grapa Paola, Delfina Paredes, Anneliese Fiedler.  87 min.


O envelhecimento costuma trazer quase inevitavelmente limitações físicas.  Pode também trazer a solidão, a acomodação e a rotina, como uma espécie de ritual protetor.

É o caso da senhora Pilar, de 81 anos, vivendo num vilarejo do interior do Peru, apegada a sua cadela Tuna, em relação afetiva muito intensa com ela.  Quase nada acontece em sua vida, dia após dia.  Todo dia ela faz tudo sempre igual, como diria Chico Buarque.




Até que sua monotonia é quebrada por um telefonema.  Sua filha Patrícia vem vindo visitá-la, acompanhada da própria filha, neta de Pilar, e de seu bebê, recém-nascido.  Uma reviravolta se processará na vida de D. Pilar, ou, pelo menos, ela sente isso assim, como uma intromissão, uma ameaça.

Mulheres, mães de três gerações, irão conviver por um tempo, evidenciando as diferenças que o papel materno foi tomando no mundo de cada uma delas.  E ao longo do tempo histórico de suas vidas.




“Casadentro”,  primeiro longa-metragem de Joanna Lombardi, é convincente ao falar de quase nada, ou seja, da rotina dessa mulher idosa dentro de casa, às voltas com sua cachorra, e recebendo a visita da família da filha.  Onde aparentemente nada acontece, podem-se compreender as marcas emocionais do passado, os significados da rotina na sobrevivência psíquica e da maternidade.

Destaque para o desempenho de Elide Brero como D. Pilar, atriz veterana de grande talento, incentivada pela jovem diretora a aceitar o papel, quando já se considerava aposentada, o que acabou gerando novas atuações no cinema para ela, após essa interpretação marcante.




A diretora e roteirista de “Casadentro” é filha de um conceituado e premiado cineasta peruano, Francisco Lombardi, com 13 longas no currículo e pelo menos um êxito internacional, “La Ciudad y Los Perros”, de 1985.

Um filme simples, intimista, minimalista, com enfoque feminino, que resulta num produto artístico de boa qualidade, fonte de reflexão e demonstração de talento do cinema peruano, ainda muito pouco presente no nosso mercado exibidor.




quarta-feira, 24 de junho de 2015

O ÚLTIMO POEMA DO RINOCERONTE


Antonio Carlos Egypto





O ÚLTIMO POEMA DO RINOCERONTE (Fasle Kargadan).  Turquia/Irã, 2012.  Direção e roteiro de Bahman Ghobadi.  Com Behrouz Vossoughi, Monica Bellucci, Ylmaz Erdogan, Caner Cindoruk, Beren Saat.  103 min.


Quem conhece os longas “Tempo de Embebedar Cavalos”, de 2000, e “Tartarugas Podem Voar”, de 2004, sabe que os trabalhos cinematográficos de Bahman Ghobadi são esteticamente impecáveis e absolutamente sedutores.

Ghobadi é um dos mais importantes cineastas iranianos, faz parte de uma fantástica leva de criadores, como Abbas Kiarostami, de quem foi assistente, Moshen Makmalbaf, Jafar Panahi, Asghar Farhadi, entre outros. 




O cineasta tem origem curda, uma etnia sem Estado, mas presente numa ampla região cultural e geográfica que inclui Turquia, Irã, Iraque, Síria, Azerbaijão.  Tem se dedicado a contar histórias de exclusão e opressão de seu povo, em especial dos que habitam o Irã.

“O Último Poema do Rinoceronte”, produzido por Martin Scorsese, baseia-se nos diários do poeta iraniano-curdo Sadegh Kamangar e conta a história do poeta Sahel e sua esposa Mina, encarcerados sem justificativa plausível durante a Revolução Islâmica, dos aiatolás, que pôs fim ao regime do Xá, em 1979.




Ao componente da opressão política, se agrega uma estranha questão amorosa: um dos motoristas-seguranças do novo regime se enamorou de Mina e procurou protegê-la, enquanto o poeta Sahel amargaria longa prisão.  Mais do que isso: o poeta foi declarado oficialmente como morto, tendo até um simulacro de túmulo, mesmo sem que o corpo tivesse sido mostrado. 

O retorno do poeta ao mundo dos vivos, 30 anos depois, é o centro da filmagem de “O Último Poema do Rinoceronte”, em que percepções, sentimentos, estranheza e exclusão ocupam a cena, sem preocupação com a cronologia dos fatos ou explicações de nenhuma ordem.  Isso pode dificultar um pouco o entendimento de um caso desconhecido para nós, mas, por outro lado, dá margem a uma elaboração estética absolutamente admirável.




O que se vê são maravilhosos e variados enquadramentos, uso criativo da luz, da água, de fusões de imagens, de belas e estranhas locações na Turquia.  A estética é tão envolvente que revela, mas quase chega a sufocar, a temática política, mesmo sendo concebida para ela e se colocado a seu serviço.  Cada plano é digno de admiração e as sequências são brilhantes.  Referências a seus outros filmes também aparecem: há cavalos em close e tartarugas que voam por aqui, além, é claro, dos rinocerontes do poema.  A história vai sendo tecida a partir das citações poéticas de Sahel, palavras que para ele são salvação e maldição a um só tempo.

A atriz italiana Monica Bellucci, em belo desempenho, diz: “Para mim, esse é um dos papéis mais fortes que já fiz.  Eu não sou iraniana, mas consigo entender as mulheres de lá”.  O ator Behrouz Vossoughi deve ter se inspirado em sua própria experiência de ser removido de sua cultura, fugiu do Irã em 1978 e trabalha para a TV americana, atualmente.  O diretor Bahman Ghobadi, assim como quase todos os expoentes do cinema iraniano, também  teve de se exilar em 2009.  Arte e fundamentalismo religioso definitivamente não combinam.  


segunda-feira, 22 de junho de 2015

O CIDADÃO DO ANO

     Antonio Carlos Egypto                                                                                                                       
                                                                                                       
  
                                                                                                          

                                                
O CIDADÃO DO ANO (Kraftidioten).  Noruega, 2014.  Direção: Hans Petter Moland.  Com Stellan Skarsgard, Birgitte Hjort Sorensen, Kristofer Hivju, Bruno Ganz.   116 min.


“O Cidadão do Ano” é um thriller de grande intensidade dramática, boas doses de sangue, muitas reviravoltas e imagens muito atraentes.  Vem da Noruega, dirigido por um dos mais destacados cineastas da Escandinávia, Hans Petter Moland. Exibido na mostra competitiva do Festival de Berlim 2014 traz no elenco um ator sueco, a esta altura já bem conhecido do público brasileiro: Stellan Skarsgard, presença frequente nos filmes do diretor dinamarquês Lars von Trier e de muitas outras produções, inclusive de Hollywood.  Grande ator, aqui em mais um papel marcante. E contracenando com outro grande ator, o suiço Bruno Ganz, de larga carreira no cinema europeu.




Stellan Skarsgard faz Nils, que dirige um caminhão pesado, limpador de neve, nas montanhas norueguesas.  Recentemente recebeu um prêmio como Cidadão do Ano na sua cidade.  Mas quando um filho dele é assassinado por algo que não fez, esse cidadão decide fazer justiça na base da vingança e se propõe a matar os culpados.  O problema é que suas ações desencadeiam uma guerra entre um gângster vegetariano e o chefe de uma máfia sérvia, que tinham até então um acordo de não-agressão.  É daí vêm a violência que por meio do sangue tinge a paisagem branca da neve com frequência.

Mas não é preciso se assustar: o filme explora o visual da neve com tamanho encanto, movimentos de câmera sofisticados  e sutileza em algumas das mortes que conquistam até o espectador que tenda a rejeitar filmes considerados violentos.

A neve ocupa a tela sob muitas formas todo o tempo, ela é central na narrativa.  A história não faria sentido sem ela. Funciona como elemento opressor, sufocador, encobridor, ao mesmo tempo em que é elemento decorativo, sedutor, revelador de uma paisagem de grande beleza e fonte de dinamismo para as cenas.  Além disso, o filme tem um roteiro muito bem engendrado, cheio de situações inusuais, com tensão e suspense constantes e uma resolução criativa e surpreendente.




Um filme todo branco, mas que não deveria passar em branco em sua temporada nos cinemas.  É um filme de primeira linha, no seu gênero cinematográfico. 


quinta-feira, 18 de junho de 2015

ENQUANTO SOMOS JOVENS

  
Antonio Carlos Egypto




ENQUANTO SOMOS JOVENS (While We’re Young).  Estados Unidos, 2014.  Direção e roteiro: Noah Baumbach.  Com Ben Stiller, Naomi Watts, Amanda Seyfried, Adam Driver.  97 min.


“Enquanto Somos Jovens” é uma simpática, inteligente comédia do mesmo diretor de “Frances Ha”, êxito dos cinemas em 2013.  E que conta com um bom elenco.

Josh (Ben Stiller) e Cornélia (Naomi Watts) formam um casal quarentão de Nova York, que vive bem e feliz.  Eles não tiveram filhos, mas isso não é visto como problema, mas como opção.  Apelos evidentes vêm por meio de outros casais amigos, que estão engravidando ou cuidando de crianças pequenas, aí incluídos os programas e festinhas a que eles também costumam ser convidados.




A aproximação com um casal mais jovem, na faixa dos 25 anos, põe em xeque a aparente acomodação que tomou conta da vida de Josh e Cornélia. 

Jamie (Adam Driver) e Darby (Amanda Seyfried) são espontâneos, têm espírito livre e aventureiro.  A juventude de que desfrutam exerce um forte atrativo para o casal quarentão, que começa a querer se renovar, sintonizar com os novos tempos.

Desse confronto entre acomodação versus liberdade, próprio de diferentes faixas etárias, se alimenta o espírito da comédia.  Mas há dados muito interessantes, que irão mostrar a relatividade dessa história.  A constatação de que os mais jovens se sentem atraídos por uma tecnologia antiga, revalorizando as máquinas de escrever, as vitrolas, os LPs e os videocassetes, por exemplo, enquanto os mais velhos não dispensam seus smartphones, Ipads, netflix.




As diferenças geracionais, no entanto, estão mais relacionadas a questões éticas, jeito de viver a vida, ambições e caminhos para solucionar problemas profissionais e a forma de lidar com o dinheiro do que às questões tecnológicas.  E é por aí que o filme vai enveredar.  Não só para produzir o riso, mas para questionar o valor dessas diferenças.  O grande mérito dessa comédia é não ficar na mera superfície e nos fazer ver que, muitas vezes, o que nos parece errado, inadmissível, pode não significar maldade, falta de caráter ou bandidagem, mas obedecer a outro padrão ético.   Questionável como todos os outros, mas não certo ou errado por princípio.  Afinal, a ética e a moral são frutos do tempo e da estrutura social vigente ou em gestação. Não há como escapar disso.  Nem há valores ahistóricos.




Mas também é difícil estabelecer valores amplos que valham para os diferentes extratos geracionais, as diversas classes sociais e os diferentes referenciais da cultura a que as pessoas e os grupos se vinculam.

Como se entender em meio a todas essas distinções e perceber que o seu modo de pensar e agir pode não servir de baliza aos outros e até soar estranho a eles?  E o que fazer com isso?  Desesperar-se, tentar mudar o mundo, relaxar e gozar?  Façam suas apostas, enquanto se divertem com “Enquanto Somos Jovens”.

---------------------------------------------- 
Aproveitem para conferir a programação do PANORAMA DO CINEMA SUIÇO CONTEMPORÂNEO, já em andamento. Há muita coisa boa para ver. No CINESESC e Centro Cultural do Banco do Brasil.  E a programação do cinema sueco atual na Cinemateca Brasileira.




quarta-feira, 17 de junho de 2015

MINHA QUERIDA DAMA


Antonio Carlos Egypto



MINHA QUERIDA DAMA (My Old Lady).  Estados Unidos/Reino Unido, 2014.  Direção e roteiro: Israel Horowitz.  Com Kevin Kline, Maggie Smith, Kristin Scott-Thomas.  106 min.


“Minha Querida Dama” marca a estreia na direção cinematográfica do escritor Israel Horowitz.  Ele também fez o roteiro, adaptou para o cinema, a sua própria peça teatral: My Old Lady.

É uma daquelas peças que vão abrindo, camada a camada, os interditos, os segredos, as mágoas, as frustrações, as expectativas e dificuldades de relacionamento que acometem a vida familiar, desde sempre.  Revelações mudam a dimensão das coisas e dos fatos conhecidos, abrindo novas possibilidades.  É um texto intrigante, capaz de envolver o espectador na narrativa.




Embora fundamentalmente entrem em cena apenas três personagens num mesmo ambiente, um apartamento muito grande, o filme escapa da armadilha de virar teatro filmado.  O diretor e dramaturgo Israel Horowitz fez uma adaptação dinâmica, colocando alguns personagens secundários para contracenar com dois dos protagonistas pelas ruas e ambientes parisienses, acrescentando dados novos ao cerne da história e arejando a cena.  O resultado é bastante convincente.

Um dos protagonistas da trama é Mathias, um homem atormentado, triste, insatisfeito com a vida, umbilicalmente ligado à sua infância e às carências que identifica nela e nas relações conflituosas com o pai, a quem ele muito rejeita, e com a mãe, que sucumbiu diante do que não podia suportar.  O ator norte-americano Kevin Kline encara o desafio desse personagem com inegável competência.




Outra protagonista é Chloé,  uma mulher ainda jovem e muito ativa, mas que não se encontrou muito bem na vida, tanto profissional quanto afetiva, e, na realidade, gira ao redor de sua mãe, com quem sempre morou, num imenso apartamento em Paris.  A atriz inglesa Kristin Scott-Thomas é muito eficiente ao revelar, no seu desempenho, o que há por trás dessa mulher e as mudanças que se efetivarão.





A terceira protagonista é a velha senhora Mathilde, de 92 anos, vivida pela grande atriz inglesa Maggie Smith, num show de interpretação.  Ela é brilhante nos detalhes, nas sutilezas do que sente e faz a sua personagem e em como ela lida com o que desconhece da história.  Ela não sai de casa, pouco consegue se movimentar, mas é a figura mais forte e marcante da trama.  É em torno dela que tudo acontece.





Com um belo texto, bem trabalhado em termos cinematográficos por seu autor e atuações desse porte, o filme deslancha.  Tem muito espaço para reflexão e bom ritmo.  Envolve, surpreende, emociona.  Vale a pena ver.




sábado, 13 de junho de 2015

SAMBA


Antonio Carlos Egypto



SAMBA (Samba).  França, 2014.  Direção: Eric Toledano e Olivier Nakache.  Com Omar Sy, Charlotte Gainsbourg, Tahar Rahim, Izia Higelin, Issaka Sawadogo.  118 min.


A história de um imigrante, do Mali ou do Senegal, fugitivo das guerras africanas, vivendo há dez anos em Paris, tentando obter seu visto de residência, sem conseguir, e sofrendo todo tipo de dificuldades para sobreviver, pode ser um bom mote para uma comédia?  A julgar pelos cineastas Eric Toledano e Olivier Nakache, sim.  Afinal, eles dirigiram “Os Intocáveis”, em 2011, que tratava de um tetraplégico e seu cuidador nesse tom e se deram bem.  O filme foi um sucesso.  Repetem a dose agora e com o mesmo ator, Omar Sy, muito bom, protagonista nos dois trabalhos.




Confesso que assisti a “Samba” um tanto incomodado.  Não porque o filme não funcionasse, mas por achar que a questão do imigrante clandestino, excluído, rejeitado, explorado, extremamente sofrido, sem conhecer os seus direitos e sem dominar os caminhos para se integrar, era algo dramático demais para o tom leve adotado pelo filme.  Também, porque as questões ficavam um tanto esvaziadas de sentido em algumas cenas engraçadas ou em algumas brincadeiras.  A questão social, as diferenças de classe, os problemas de identidade gerados pela clandestinidade e as revoltas, ficavam escamoteados.  Ao serem particularizados, perdiam sua real dimensão.

Também me incomodaram alguns clichês, como o argelino que se passava por brasileiro e falava algumas palavras em português para exibir sua desinibição, sua alegria, sua dança e, assim, ter mais chance de conquistar mulheres.  Ainda bem que algumas das músicas escolhidas para pontuar aparições dele traziam o talento de Gilberto Gil ou Jorge Benjor.  Mas o personagem Wilson (Tahar Rahim) é apenas uma caricatura carnavalizada de uma situação muito séria. O envolvimento de Samba (Omar Sy) e Alice (Charlotte Gainsbourg) carecia de aprofundamento e mostrava pouca consistência.  Enfim, o tom do filme não me satisfez.




Fui ler, então, o livro no qual se baseia o filme, também recém-lançado e com os atores na capa.  E a sensação foi de perplexidade. A autora de Samba, Delphine Coulin, é escritora e cineasta.  Fiquei imaginando que filme ela faria de seu próprio livro.  Com a certeza de que algo muito diferente teria que sair dali.  O livro é bem escrito e especialmente interessado em mostrar os sentimentos, as percepções, as expectativas, os desejos e os sonhos, tanto os de olhos abertos quanto os vividos sob a proteção de Morfeu.

A França, tradicionalmente associada ao acolhimento do estrangeiro e à democracia, é fortemente questionada nos relatos das ações legais, burocráticas e policiais, que envolvem os imigrantes.  O sofrimento é mostrado em detalhes, às vezes sujos, às vezes sórdidos, a dor é sempre presente e o respeito aos personagens oferece uma dimensão que está perdida no filme. 




Não se trata de comparar resultados: evidentemente, as linguagens literária e cinematográfica são coisas diferentes.  Só que a escritora, por ser também cineasta, tem uma escrita própria para adaptação ao cinema, ela descreve cenas inteiras que estão prontas para serem filmadas.  São fortes, dramáticas.  O tom é completamente outro.  Dá conta, de uma forma muito mais apropriada, da temática abordada.

A impressão que se tem é de que o filme “Samba” traiu a proposta da autora, quase invertendo o seu rumo.  A busca pelo êxito comercial tornou tudo um tanto pasteurizado e a seriedade do assunto submergiu.  Isso acontece apesar de o filme contar com um elenco de alta qualidade.  Não só pelo excelente desempenho de Omar Sy e também do de Tahar Rahim, mesmo com as armadilhas de seu personagem, mas também por contar ainda com Charlotte Gainsbourg, no papel de Alice, quase inexistente no livro, mas que adquire uma importância central no filme.  Enfim, todos os atores e atrizes estão muito bem.




A pergunta que fica é: tudo pode ser objeto de comédia?  Podemos admitir que sim, haja vista que Roberto Begnini em “A Vida é Bela”, de 1997, conseguiu fazer de um campo de concentração nazista uma brincadeira, e há muitos outros exemplos.  Ou seja, poder, pode.  Resta saber se é o mais apropriado.  Em muitos casos, creio que não é.

Rir da pobreza, da exclusão, da exploração do ser humano, de grupos que são discriminados ou perseguidos é possível.  Mas só admissível com profundo respeito aos retratados, para superar preconceitos e estereótipos.  Ou seja, com espírito libertador e não de exploração comercial ou para subjugar ainda mais os que já estão subjugados.

“Samba” é um dos destaques do Festival Varilux do Cinema Francês, que acontece todos os anos por aqui e alcança vários Estados brasileiros.  Após o Festival, os filmes começam a ser lançados em sessões normais nos cinemas.




terça-feira, 9 de junho de 2015

MINHA IRMÃ


Antonio Carlos Egypto



MINHA IRMÃ (L’Enfant d’en Haut).  Suíça, 2012.  Direção: Ursula Meier.  Com Léa Seydoux, Kacey Mottet Klein, Martin Compston, Gillian Anderson.  97 min.


Estamos nas montanhas suíças, em plena temporada de inverno, de esqui na neve.  Acorrem a essas estações pessoas de posses que ostentam lindos pares de esqui novinhos, óculos de proteção, luvas e outros tantos objetos atraentes, além de lanches variados. 

O garoto Simon (Kacey Mottet Klein), de 12 anos, vive num condomínio ao pé da montanha, com sua irmã mais velha, Louise (Léa Seydoux), e levanta dinheiro praticando pequenos roubos.  Os objetos roubados são revendidos por ali mesmo, os lanches, consumidos em casa, e com isso ele acaba sustentando a família.  Ou seja, a si mesmo e à irmã, que vive perdendo os precários empregos que arruma.



O garoto sobe e desce a montanha ao longo de toda a temporada, com eficiência e regularidade, como um pequeno trabalhador.  Encontra lá em cima sua subsistência, já que não dispõe de outros meios.  Vive só com a irmã.  O título original, O Garoto de Cima, alude a isso e representa melhor a história do que a tradução “Minha Irmã”. O personagem principal, que conduz toda a narrativa, e a quem acompanhamos do princípio ao fim, é o garoto, embora sua irmã tenha grande significado no caso.

Simon tem uma desenvoltura e ao mesmo tempo uma capacidade de desaparecer em meio aos turistas que é notável.  E, tendo que se virar praticamente sozinho na vida, aprendeu o meio de fazê-lo, de um jeito simples e fácil.  As vítimas mal se dão conta de que estão sendo roubadas e repõem os itens “perdidos” sem maiores problemas.  Mas é evidente que nem tudo sai como o esperado ou planejado. 



Para além dessa trama que estou apresentando, o filme trabalha, e muito bem, as questões de motivação e relacionamento humanos.  Como é um garoto  que, sentindo  a rejeição da mãe, desenvolve precocemente tanto um papel de trabalhador quanto o de ladrão?  Pré-adolescente ainda, já entrando em cheio no mundo do crime.  Por enquanto, por conta própria.  Mas já envolvendo meninos menores do que ele.

O que uma mãe que engravidou sem desejar, e muito cedo, faz com o fruto de seus desejos sexuais, despreparada, incapacitada para assumir um filho?  E como se dará a relação mãe-filho, se houver, numa situação como essa?

“Minha Irmã” é um filme que aborda com muita sensibilidade essa questão da gravidez na adolescência por um ângulo inusitado, mas perfeitamente compreensível.  E, ao mesmo tempo, provocador e desafiador.  É um filme que envolve, faz pensar.  Um trabalho de uma cineasta que, sendo mulher, tem mais condições de tratar do tema com conhecimento de causa.



A produção suíça “Minha Irmã”, vencedora do Urso de Prata no Festival de Berlim, e que representou a Suíça junto ao Oscar, tem no elenco o garoto Kacey Mottet Klein, muito bom, e Léa Seydoux, que já havia se destacado em “Azul É A Cor Mais Quente”, em 2013, e compõe aqui um personagem repleto de instabilidades, com muitas nuances, num belo desempenho.

Neste mês de junho, São Paulo recebe o 5º. Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo, com 16 produções recentes.  É muito oportuno que “Minha Irmã”, de 2012, entre em cartaz no mesmo período, em sessões regulares no Cinesesc.  É a Suíça mostrando que não faz só bons chocolates e relógios-cuco, mas muito bom cinema.

              

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A LIÇÃO


Antonio Carlos Egypto




A LIÇÃO (Urok).  Bulgária, 2014.  Direção: Kristina Grozeva e Petar Valchanov.  Com Margita Gosheva, Ivan Burnev, Ivanka Bratoeva, Ivan Savov.  105 min.


Sempre estive muito antenado com o cinema de todas as partes do mundo que chega até nós.  Não só nas programações normais, mas também nas mostras e festivais que acontecem em São Paulo.  Mesmo assim, não me consta que eu tenha assistido a nenhum longa-metragem búlgaro.  Da Bulgária, só tenho registro de um curta, muito inventivo, por sinal, chamado “O Ritual”, de 2005.  Sendo assim, “A Lição”, que está sendo lançado nos cinemas agora, e é um filme de 2014, adquire especial relevo.  E, independentemente da nacionalidade, é um filme que vale a pena ver.




Inspirando-se em notícias de jornal, os diretores realizaram uma narrativa que põe em evidência o dilema moral e a relatividade de princípios orientadores de conduta.  Trata-se de uma situação aparentemente corriqueira, a que se apresenta de início.  Nadezha ou Nade (Margita Gosheva) é professora de crianças e, frente a algo roubado em sala de aula, procura de todas as formas o culpado, para que possa lhe dar uma lição de vida, como educadora.  E, na ausência dele, ensinar a toda a classe que atitudes tomar em casos como esse.  Seus princípios não põem em dúvida o erro moral que é roubar.  No entanto, diante das situações em que ela terá de se envolver em sua vida, ao longo da trama, essa verdade se mostrará frágil, bem diferente de uma simples e inquestionável aplicação de princípios.

Se um roubo pode ser compreendido e até admitido, em algumas circunstâncias, que outros comportamentos inaceitáveis podem vir a ser acolhidos como possíveis?  E isso significa uma derrocada ética, se acontecer?




Que a vida nos exige algo mais do que seguir uma cartilha de bons princípios é evidente.  A realidade é muito mais complexa e desafiadora do que qualquer código moral possa abarcar.  Só vivendo certas situações para entender. É isso que o filme “A Lição” faz: nos leva a viver com a professora Nade o dilema de fazer escolhas que nos colocam numa saia justa ou no olho do furacão.  No limite do ridículo, do absurdo, o que pode até remeter ao humor.  Mas, não, é um drama e dos mais fortes.

A vida da professora é de penúria, muito digna, mas muito pobre.  O salário não dá para nada.  O jeito é tentar ganhar um dinheiro extra, fazendo traduções.  Mas, e se esse pagamento que se arrasta acabar não vindo, como viver, como pagar as contas?  É isso que está na base do drama da educadora. É, a vida dos professores na Bulgária não é mole, não.  Falta valorização, respeito, pagamento digno.  Ainda bem que é só na Bulgária, não é mesmo?




“A Lição” tem em Margita Gosheva uma grande atriz e um elenco de atores profissionais e amadores que convencem ao viver essa trama desafiadora dos comportamentos morais.

O filme pretende ser o primeiro de uma trilogia que se espelha no que os jornais noticiam e desenvolve uma história a partir disso; o segundo já está a caminho. “A Lição” tem sido exibido em muitos festivais mundo afora, já tendo conquistado prêmios em San Sebastian e nos festivais internacionais do Equador, do Thessaloniki, de Tóquio, de Gotemburgo, de Sofia e de Luxemburgo.