terça-feira, 24 de janeiro de 2023

TÁR

Antonio Carlos Egypto

 



TÁR (Tár).  Estados Unidos, 2022.  Direção: Todd Field.  Elenco: Cate Blanchett, Nina Hoss, Noémie Merlant, Sophie Kauer, Mark Strong.  158 min.

 

O filme aborda uma personagem ficcional, Lydia Tár, que seria a primeira mulher a reger e comandar a Orquestra Filarmônica de Berlim.  Um feito e tanto para quem ainda compõe, é instrumentista e escreve suas memórias como top da música clássica, um ambiente marcada e predominantemente masculino. 

 

Essa é a maestro Tár.  Lendo isso, você vai dizer: está errado, maestro, não, maestrina.  Não para a personagem, que faz questão de ser chamada de maestro, assim, no masculino.  E isso é reiterado no filme, várias vezes.  Qual o propósito disso?  Identificá-la ao mundo masculino para enfrentá-lo?  Ou acentuar, assim, suas relações homoafetivas, que ela manipula e maneja conforme seus desejos, na gestão da orquestra?

 

Em vários momentos, discutindo compositores clássicos, levanta-se a questão da separação, possível ou não, entre a obra e o artista, na compreensão e avaliação do trabalho artístico-cultural.  No caso da “maestro”, no entanto, é evidente que sua personalidade e suas atitudes contaminam seu trabalho.  É o que vai acontecer quando sua empáfia, suas manipulações, desrespeitos e mentiras, vierem à tona e seu poder ruirá.  O filme leva intermináveis 2 horas e 38 minutos para descrever esse processo previsível e, mesmo assim, o período final de sua queda e, sobretudo, de sua volta, se revela de forma abrupta.  Com um exagero brutal na cena em que ela ataca, tromba e cai diante da plateia de um grande teatro lotado.

 



A fotografia mostra a opacidade, a pouca luz e cor, nesse ambiente de poder que se desintegra, enquanto a personagem se afasta de nós, nos incomoda.

 

“Tár” é desagradável, em princípio.  Aquilo que seria indicativo dos méritos ou características da personagem, na verdade, é colocado contra ela na narrativa.  E a gente se pergunta, por que criar tal personagem? 

 

Uma pena, já que Lydia Tár é vivida por uma grande atriz, como é Cate Blanchett.  Ela está ótima neste papel, pode levar o Oscar.  Inegavelmente, seu desempenho acentua competentemente a ojeriza pela figura que dá nome ao filme.  Exigiu muito desgaste dela na atuação.  Infelizmente, esse desgaste também atinge o público.  E não por uma razão mais profunda, “Tár” tem uma trama banal.  Tem momentos musicais interessantes.  Cate Blanchett.  E só.

 


quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

GAROTO DOS CÉUS e AFTERSUN

 Antonio Carlos Egypto




Destaque da 46ª. Mostra Internacional de Cinema, onde foi exibido com o título de BOY FROM HEAVEN (Walad Min Al Janna), GAROTO DOS CÉUS, embora não pareça, é um filme sueco, com a participação dos demais países escandinavos e da França, na produção.  O diretor Tarik Saleh, apesar do nome, também é sueco, sua mãe é sueca, seu pai, egípcio.  É no Egito que se passa toda a trama do filme, que não pôde ser filmado lá e foi, então, realizado na Turquia.

 GAROTO DOS CÉUS é um magnífico thriller, que mexe com todo o jogo de poder dentro de uma estrutura religiosa, no caso, a do islamismo sunita.  A instituição retratada é a Universidade Al-Azhar, no Cairo, principal instituição mundial dessa tendência, que parece ter um forte poder paralelo que tanto fustiga, incomoda, quanto apoia o Estado egípcio. E é influenciada e manejada por esse mesmo Estado, numa relação perigosa e conturbada.

 A trama se baseia num jovem personagem decidido, mas simples, oriundo de uma aldeia de pescadores egípcia, que recebe uma Bolsa para estudar em Al-Azhar e se mete no intrincado jogo político para a escolha do novo Grande Imã, em substituição ao que acabou de falecer. 

 A eleição desse Imã acontece por imposições pessoais, assassinatos, denúncias comprovadas que tiram do páreo o favorito do momento, tudo numa espécie de concílio para lá de comprometido e comprometedor.

Toda uma teia de relações e acontecimentos vai sendo tecida, pouco a pouco, por meio de um roteiro muito bem elaborado, reconhecido e premiado em Cannes.  Enquanto enlaça o espectador na narrativa, o filme desnuda o sórdido esquema político, o jogo de poder que está por trás, onde não se vê verdade alguma, lisura, comprometimento espiritual e outras coisas que deveriam caracterizar uma instituição de ensino e formação religiosos.  Veem-se as relações do poder político com o poder religioso, em confronto interno, por meio de suas linhas e divisões.

Percebe-se que o diretor e roteirista, Tarilk Saleh, conhece bem os meandros dessa luta político-religiosa no Egito e nos ambientes muçulmanos, pelos elementos e detalhes que aparecem na trama.  Quanto à crueldade e à barbárie que se esconde sob a capa da devoção a Alá, não são muito diferentes das de outras crenças e instituições poderosas, religiosas ou não, que comandam e sempre comandaram o mundo.  Shakespeare que o diga!  Para não entrar em questões mais próximas de nós, do que está por aqui mesmo.

Elenco: Tawfeek Barhom, Fares Fares, Mohammad Bakri, Makram Khoury, Mehdi Dehbi. 119 min.

 




AFTERSUN, do Reino Unido, primeiro longa da cineasta escocesa Charlotte Wells, também foi destaque e venceu o prêmio do Júri de novos diretores, da mesma Mostra. Apresenta uma narrativa inteiramente centrada na relação de um pai de 30 anos com a filha de 11, que acontece num pacote de férias na Turquia. Por meio de pequenos momentos, rotinas de lazer, contatos que surgem, detalhes de todo tipo, com inteligência e perspicácia, vamos percebendo o que está em jogo nessa relação não habitual, já que eles não vivem juntos. Há muito afeto e frustração no ar. E muita fluidez numa trama ao mesmo tempo simples e complexa.

Elenco: Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson Hall. 98 min.

 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

OS FABELMANS

                            Antonio Carlos Egypto

 

 



OS FABELMANS (The Fabelmans).  Estados Unidos, 2022. Direção: Steven Spielberg.  Elenco: Gabriel LaBelle, Michelle Williams, Paul Dano, Seth Rogen, Mateo Zoryan. 151 min.

 

Em “Os Fabelmans”, o cineasta Steven Spielberg mergulha em suas recordações de infância e adolescência, até os 18 anos de idade, num belo e honesto registro autobiográfico.  Belo, porque tem sequências inspiradas, com enquadramentos magníficos, que combinam drama com leveza e humor, destacando o fazer cinematográfico de uma forma apaixonante e reveladora de pessoas e situações.  Cinema como compreensão da realidade, pessoal e social.  E também como dom, já que a capacidade criativa do menino Sam (Mateo Zoryan, na infância, e Gabriel LaBelle, na adolescência) está lá desde os primórdios, com parcos recursos, que vão se desenvolvendo através do tempo e do domínio da técnica.  Tudo mostrado com simplicidade e com muito amor pela captação e edição das imagens, o que já incluiria até efeitos especiais para dar som aos tiros gravados em encenações com armas de brinquedo.

 

Cinema como meio de expressão, que pode acabar revelando até algo inesperado: um segredo familiar capaz de abalar os alicerces de um convívio pretensamente harmônico.  Ao penetrar nesse segredo e expô-lo, Spielberg encara o conflito e a forma como o menino lida com ele.  Assim como expõe outros problemas da meninice e juventude em que inseguranças, vulnerabilidade ou deficiências, aparecem e são fonte de sofrimento.

 

A questão da identidade judaica também tem seu peso nas relações com as meninas e com outros jovens.  O preconceito se manifesta de forma evidente numa mudança de cidade e de escola.  O talento para captar imagens por meio do cinema aparece, então, como elemento restaurador.  Oportunidade de superar as dificuldades, explorando algo que se pode fazer bem.

 



Embora o cinema tenha essa força restauradora, a vida não é fácil.  É bastante desafiadora, sob todos os pontos de vista.  As decisões são complicadas, o convívio com pai, mãe, irmãs, é acolhedor, mas muitas vezes incômodo, cheio de mentiras e incompreensões.  Exige que se contornem situações, que se suporte a ausência ou a distância dos sentimentos.  Por trabalhar com estas questões que, afinal, formam a vida como ela é, “Os Fabelmans” é um trabalho cinematográfico honesto, que não foge da complexidade da existência, como ela pode ser sentida em qualquer idade.

 

As coisas podem também ser engraçadas, estimulantes, mas, de qualquer modo, exigem esforço.  Viver é cansativo, claro.  E implica muitas concessões.  De todo modo, aquilo que realmente nos move tende a ficar.  No caso de Sam, o cinema é sua fonte de vida, se transformará de hobby em profissão, apesar de momentos de hesitação e desistência.  Algumas coisas podem durar poucos minutos e serem definitivas.  A sequência em que Sam tem a oportunidade de falar com John Ford, um dos maiores diretores de toda a história do cinema, ganha uma grande dimensão pelo toque decisivo que ali aparece e valorizado pela participação especial de David Lynch, outro grande diretor, no papel de Ford.

 



O elenco de “Os Fabelmans” é muito bom.  Tem em Gabriel LaBelle uma atuação que dá bem conta da complexidade da figura do adolescente Sam.  O garoto Mateo Zoryan também convence como o menino Sam.  Michelle Williams (Mitzi), a mãe, explora magnificamente todas as nuances de uma figura viva, intensa, ambígua, acuada, em busca de algo, sempre.  Paul Dano (Burt), o pai, compõe um personagem algo tolhido e distante, mas firme no conhecimento, na aceitação e no afeto.  É também um grande desempenho.  Seth Rogen (Bennie), “o tio”, é expansivo e expressivo em sua caracterização.  Os demais atores e atrizes compõem um belo painel de atuações.

 

John Williams, o compositor notável, responsável pelas trilhas sonoras espetaculares de filmes de Spielberg, oferece, mais uma vez, seu talento ao cinema.

 

De Steven Spielberg não há mais o que falar.  Com uma obra cinematográfica que inclui de “Tubarão” ao “E.T.”, de “A Lista de Schindler” a “O Resgate do Soldado Ryan”, passando pela série de filmes do personagem Indiana Jones, ele já mostrou a todos, cabalmente, do que é capaz.  Pelo que vemos no filme “Os Fabelmans”, do que ele foi capaz desde a infância, ou seja, desde sempre.   



 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

NAS ONDAS DA FÉ

                    Antonio Carlos Egypto

 

 



NAS ONDAS DA FÉ.  Brasil, 2021.  Direção: Felipe Joffily.  Elenco: Marcelo Adnet, Letícia Lima, Thelmo Fernandes, Tonico Pereira.  110 min.

 

Marcelo Adnet é um dos maiores talentos do humor nacional na atualidade.  Ator cômico de primeira linha, fantástico imitador, faz um humor inteligente, crítico, ousado, irônico, político.  Quando ele se coloca  por inteiro num projeto cinematográfico, como a comédia “Nas Ondas da Fé”, no mínimo, merece atenção.  Ele é o ator principal, criou o argumento e participou do roteiro do filme, além de ser um dos produtores.  Ou seja, é um filme em que ele jogou suas fichas.

 

A história mexe com o que podemos chamar de mercado da fé, em que se sobressaem pastores e apóstolos de igrejas evangélicas diversas.  Embora bastante reconhecível nas posturas, atitudes e consequências do que é mostrado, a trama evita generalizar.  Ou seja, supostamente, retrata os que se aproveitam da boa-fé das pessoas para lucrar – e muito – com isso.  Os que abusam da simplicidade de crentes um tanto ingênuos, que buscam alívio e apoio para os seus sofrimentos.

 

O personagem de Marcelo Adnet é Hickson, carioca do subúrbio, técnico em informática e locutor de telemensagens, que tem como grande pretensão na vida tornar-se radialista.  Talento para isso ele tem, tanto que, a partir de um emprego conquistado numa rádio evangélica, com o auxílio da mulher Jéssika (Letícia Lima), ele acaba virando pastor.  Com o seu sucesso arrecadando dinheiro e com sua notoriedade, gera inveja naqueles a quem ultrapassou, sem dificuldade. 




E por aí a narrativa vai, desnudando meandros da luta pelo poder entre os religiosos, seus valores (ou a falta ou tibieza deles), em que o dinheiro, mas também o sucesso e o prestígio, contam muito.  Muito mais do que qualquer questão espiritual.  Até porque os estudos a que o pastor Hickson se dedica não vão exatamente por aí.

 

Adnet explora seus recursos com o uso de sua pirotecnia vocal, suas caras e bocas e o seu jeito natural e engraçado de ser.  Aproveita bem seu papel e se destaca em meio a uma profusão de outros talentos do humor, como a ótima Letícia Lima, coprotagonista do filme, Otávio Müller, Tonico Pereira, Stepan Nercessian, Gregório Duvivier e outros, em papéis pequenos, mas divertidos.

 

Não sei dizer se esse humor explorando o veio dos evangélicos, que abusam do seu povo e lucram com isso, vai incomodar os que professam a religiosidade pentecostal, como um todo.  Pelo menos, não parece ter sido essa a intenção de “Nas Ondas da Fé”, dirigido por Felipe Joffily.  Assim como há salafrários nessa religião, há em todas as outras, e entre os ateus e agnósticos, também.  Ou seja, diz respeito aos seres humanos de qualquer profissão ou fé.  E é bom que esses assuntos sejam explicitados e discutidos via humor, pelo riso, uma forma contundente de questioná-los.



segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

NOSSA SENHORA DO NILO

Antonio Carlos Egypto

 

 


 

NOSSA SENHORA DO NILO (Notre-Dame du Nil).  Ruanda/França, 2021.  Direção: Atiq Rahimi.  Elenco: Santa Amanda Mugabekazi, Albina Sydney Kirenga, Angel Uwamahoro, Clariella Bizimana.  93 min.

 

O liceu Notre-Dame du Nil é um colégio interno católico isolado no alto de uma colina, dirigido à formação de meninas da elite ruandense (hutu ou tutsi).  Esse liceu, em 1973, testemunhou fatos que demonstram como os antagonismos da sociedade ecoam, ainda que distantes do centro urbano e numa atmosfera aparentemente de ensino e harmonia, coordenada por freiras.  Na realidade, esses fatos prenunciaram o genocídio vivido em Ruanda em 1994.  Questões de poder político se desdobram em questões étnicas, de raça e de religião.  Regimes totalitários perseguem e atingem as elites e os intelectuais.

 

É isso que o filme “Nossa Senhora do Nilo” nos mostra sem sair do ambiente do liceu, no alto da colina.  Que acaba funcionando como o microcosmo da luta fratricida de Ruanda, atingindo moças adolescentes, inocentes de tudo e ingênuas da vida.  Questões simbólicas, no entanto, podem ser vividas ali, na etnia hutu ou na etnia tutsi, quando entram em cena um desenhista/pintor que cultiva tradições ou uma bruxa com poderes relevantes.

 

Filmado numa bela locação, justamente no alto das montanhas, em Ruanda, numa escola católica que ainda mantém edifícios antigos assim situados, cria o clima ideal para o desenvolvimento da história.  O filme se baseia em um romance autobiográfico de Scholastique Mukasonga, lançado em 2012.  A autora criou uma ficção para se distanciar um pouco das vivências que teve, mas reconhece que acabou espelhando sua própria história, mais do que desejaria.

 



A direção do filme coube ao cineasta afegão, que vive na França, Atiq Rahimi (de “A Pedra da Paciência”, 2012), que não conhecia muito a situação de Ruanda, mas viu bastante similaridade das questões tratadas no livro com a realidade do Afeganistão, no mesmo período abordado.  Ele é um diretor sensível às questões sociais, aos sofrimentos das pessoas em situação de guerra e opressão, e fez um filme que reflete tudo isso num momento de vida de juventude, em que cabem também as brincadeiras, os jogos, a alegria das meninas.  Pelo menos até que a polarização étnica invada esse mundo, inapelavelmente.

 

Com uma fotografia que exalta as cores da natureza e a beleza das jovens negras do liceu e com um elenco muito vibrante, o diretor Rahimi faz um belo filme.

 

Apesar da violência e do sofrimento que retrata, “Nossa Senhora do Nilo” também nos conquista nos momentos de vitalidade e alegria que estão lá, enquanto a tristeza não vem.  E a tristeza que se impõe acentua o disparate das disputas étnicas destrutivas que se valem da morte ao diferente, visto como inimigo pela simples existência, na luta pelo poder.  Como dizia o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, parece que, afinal, o ser humano não deu muito certo...