quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

2 FILMES DO IRÃ

              Antonio Carlos Egypto

 



A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO (Dãne-ye anjir-e ma’ãbed).  Irã/Alemanha, 2024.  Direção: Mohammad Rasoulof.  Elenco: Missagh Zareh, Mahsa Rostami, Soheila Golestani, Setareh Maleki, Niousha Akhshi.  166 min.

 

O título poético “A Semente do Fruto Sagrado” é uma metáfora para se referir àquilo que as pessoas internalizam, aderem, que as destrói e contamina o ambiente em que elas vivem.  E a referência ao sagrado não é aleatória.  É em nome de Deus que se cometem os crimes mais cruéis. Aqui, o contexto coletivo é o da teocracia que vigora no Irã.  O personagem central da trama é Iman (Missagh Zareh), que alcança a condição de Juiz de Instrução nos processos da Polícia da Moral, no mesmo momento em que pipocam manifestações populares nas ruas de Teerã e outras cidades do país, por conta da morte de uma jovem relacionada ao uso inadequado (ou ausente) do véu obrigatório.  E o filme se vale de imagens reais, captadas nas ruas.  A narrativa, então, focaliza a família de Iman, sua mulher e duas filhas, dentro de casa, oprimidas pela situação e tendo de se comportar estritamente segundo as regras do regime, para não prejudicar a carreira do pai.  Ocorre que a revolta invade a casa e atinge uma amiga das meninas, que é fortemente agredida pela polícia, o que era a regra das ruas.  Nesse momento, uma sequência longa e detalhada faz questão de mostrar os ferimentos que afetam seriamente o rosto da moça, sendo cuidada pela mãe das meninas, Najmeh (Soheila Golestani).  Não era necessário esse alongamento, não é isso que convence alguém de que o autoritarismo e a violência vigoram em regimes como esse.  Em seguida, a narrativa vai se concentrar na perda da arma de Iman e nas relações familiares que refletirão, reproduzirão, a opressão e as injustiças da teocracia dominante.  Aí também há um alongamento da situação, mas novos elementos serão revelados.  E sequências que exploram amplamente os espaços externos e os internos até chegar ao labiríntico final são recursos cinematográficos bem empregados.  Assim como a câmera explora o conjunto, também é bastante criativa nos detalhes, como os pingos de uma chuva ou objetos que têm significado na história.  O elenco formado pelas três mulheres da casa, pela amiga e por Iman é muito eficiente, e na contenção expressa o medo.   O medo é o grande mote de toda a ação do filme, na minha visão.  O que bloqueia, o que paralisa, o que move, o que oprime e o que destrói é o medo.  “A Semente do Fruto Sagrado” é a denúncia da opressão pelo medo.  Não surpreende que o cineasta Mohammad Rasoulof tenha fugido do Irã e o filme esteja proibido de ser exibido no país.  Da mesma forma, não chega a ser estranho que esse filme tenha sido o escolhido pela Alemanha para representá–la no Oscar de filme internacional.  O Irã jamais o indicaria.  É um filme corajoso, que toca na ferida, o que nenhum regime opressor pode admitir.  Uma boa razão para que a gente continue cultivando a nossa democracia.

 



MEU BOLO FAVORITO (Keyke Mahboobe Man).  Irã, 2024.  Direção: Maryam Moghadam e Behtash Sangeeha.  Elenco: Lili Farhadpour, Esmaeel Mehrabi, Mansore Ilkani.  96 min.

 

Um filme iraniano simples, de baixo orçamento, consegue alcançar um alto grau de sensibilidade ao tratar de solidão e velhice.  A rotina da solidão pode ser muito cruel, na ausência do ser amado, que se foi, ou de um passado que já ficou para trás, das amigas, amigos ou colegas de trabalho, que envelhecem, perdem força e vigor.  Mas os sonhos e os desejos continuam lá.  A cabeça sonha coisas que o corpo já não dá conta.  O espectro da doença e da morte é um desafio real e concreto.  Acomodar-se ou desistir desses sonhos gera frustração, amargura.  E nem o recurso à ironia alivia o problema.  As respostas individuais, no entanto, variam muito.  Às vezes, um gesto ousado pode gerar esperança, amor.  A repressão e o controle do comportamento feminino são fatores complicadores.  Em especial, numa sociedade autoritária, que controla do uso correto do véu às pessoas que são recebidas em casa.  É contra a lei de Deus, por exemplo, uma mulher receber um homem em casa.  Por qualquer que seja o motivo. Uma sociedade que pulsa e clama por liberdade, mas que está presa a valores arcaicos, sujeita à Polícia da Moral, torna radical a experiência do envelhecer e da solidão.  No filme “Meu Bolo Favorito”, todas essas questões se fazem presentes, bem como o revigorar da vida pela emergência do afeto, do amor e do companheirismo.  Diálogos surpreendentemente claros e diretos revelam o que está envolvido nessa temática. A personagem central da trama, Mahin, papel vivido brilhantemente por Lili Farhadpour, explora uma série de nuances da situação feminina, que remetem ao país, mas vão além dele, com certeza.  Faramarz, papel também de ótimo desempenho de Esmaeel Mehrabi, nos mostra que o poder masculino se esvai, desaparece no viver solitário.  O grupo de homens idosos do bar também remete à perda dessa força, em que pese o modelo social privilegiar tão claramente o homem, frente à liberdade e à capacidade de decidir a própria existência.  O fato é que a vida pulsa na tela com muita verdade nesse simpático “Meu Bolo Favorito”.  O bolo é aquele que é feito na espera de alguém para comer e compartilhar.

 

FILMES EM CARTAZ

Já comentei por aqui vários filmes que estão entrando na programação dos cinemas, quando da 48ª. Mostra Internacional de São Paulo: MARIA CALLAS, TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ, SOL DE INVERNO, BABY, MALU e LUÍS MELODIA, NO CORAÇÃO DO BRASIL.  Quem não viu e quiser conferir entre nas postagens da Mostra em outubro e começo de novembro por aqui:  https://cinemacomrecheio.blogspot.com 





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