Antonio Carlos Egypto
A
SEMENTE DO FRUTO SAGRADO (Dãne-ye anjir-e
ma’ãbed). Irã/Alemanha, 2024. Direção: Mohammad Rasoulof. Elenco: Missagh Zareh, Mahsa Rostami, Soheila
Golestani, Setareh Maleki, Niousha Akhshi.
166 min.
O
título poético “A Semente do Fruto Sagrado” é uma metáfora para se referir
àquilo que as pessoas internalizam, aderem, que as destrói e contamina o
ambiente em que elas vivem. E a
referência ao sagrado não é aleatória. É
em nome de Deus que se cometem os crimes mais cruéis. Aqui, o contexto coletivo
é o da teocracia que vigora no Irã. O
personagem central da trama é Iman (Missagh Zareh), que alcança a condição de
Juiz de Instrução nos processos da Polícia da Moral, no mesmo momento em que
pipocam manifestações populares nas ruas de Teerã e outras cidades do país, por
conta da morte de uma jovem relacionada ao uso inadequado (ou ausente) do véu
obrigatório. E o filme se vale de
imagens reais, captadas nas ruas. A
narrativa, então, focaliza a família de Iman, sua mulher e duas filhas, dentro
de casa, oprimidas pela situação e tendo de se comportar estritamente segundo
as regras do regime, para não prejudicar a carreira do pai. Ocorre que a revolta invade a casa e atinge
uma amiga das meninas, que é fortemente agredida pela polícia, o que era a
regra das ruas. Nesse momento, uma
sequência longa e detalhada faz questão de mostrar os ferimentos que afetam
seriamente o rosto da moça, sendo cuidada pela mãe das meninas, Najmeh (Soheila
Golestani). Não era necessário esse
alongamento, não é isso que convence alguém de que o autoritarismo e a
violência vigoram em regimes como esse.
Em seguida, a narrativa vai se concentrar na perda da arma de Iman e nas
relações familiares que refletirão, reproduzirão, a opressão e as injustiças da
teocracia dominante. Aí também há um
alongamento da situação, mas novos elementos serão revelados. E sequências que exploram amplamente os
espaços externos e os internos até chegar ao labiríntico final são recursos
cinematográficos bem empregados. Assim
como a câmera explora o conjunto, também é bastante criativa nos detalhes, como
os pingos de uma chuva ou objetos que têm significado na história. O elenco formado pelas três mulheres da casa,
pela amiga e por Iman é muito eficiente, e na contenção expressa o medo. O medo é o grande mote de toda a ação do
filme, na minha visão. O que bloqueia, o
que paralisa, o que move, o que oprime e o que destrói é o medo. “A Semente do Fruto Sagrado” é a denúncia da
opressão pelo medo. Não surpreende que o
cineasta Mohammad Rasoulof tenha fugido do Irã e o filme esteja proibido de ser
exibido no país. Da mesma forma, não
chega a ser estranho que esse filme tenha sido o escolhido pela Alemanha para
representá–la no Oscar de filme internacional.
O Irã jamais o indicaria. É um
filme corajoso, que toca na ferida, o que nenhum regime opressor pode
admitir. Uma boa razão para que a gente
continue cultivando a nossa democracia.
MEU
BOLO FAVORITO (Keyke Mahboobe Man). Irã, 2024.
Direção: Maryam Moghadam e Behtash Sangeeha. Elenco: Lili Farhadpour, Esmaeel Mehrabi,
Mansore Ilkani. 96 min.
Um
filme iraniano simples, de baixo orçamento, consegue alcançar um alto grau de
sensibilidade ao tratar de solidão e velhice.
A rotina da solidão pode ser muito cruel, na ausência do ser amado, que
se foi, ou de um passado que já ficou para trás, das amigas, amigos ou colegas
de trabalho, que envelhecem, perdem força e vigor. Mas os sonhos e os desejos continuam lá. A cabeça sonha coisas que o corpo já não dá
conta. O espectro da doença e da morte é
um desafio real e concreto. Acomodar-se
ou desistir desses sonhos gera frustração, amargura. E nem o recurso à ironia alivia o
problema. As respostas individuais, no
entanto, variam muito. Às vezes, um
gesto ousado pode gerar esperança, amor.
A repressão e o controle do comportamento feminino são fatores
complicadores. Em especial, numa
sociedade autoritária, que controla do uso correto do véu às pessoas que são
recebidas em casa. É contra a lei de
Deus, por exemplo, uma mulher receber um homem em casa. Por qualquer que seja o motivo. Uma sociedade
que pulsa e clama por liberdade, mas que está presa a valores arcaicos, sujeita
à Polícia da Moral, torna radical a experiência do envelhecer e da
solidão. No filme “Meu Bolo Favorito”,
todas essas questões se fazem presentes, bem como o revigorar da vida pela
emergência do afeto, do amor e do companheirismo. Diálogos surpreendentemente claros e diretos
revelam o que está envolvido nessa temática. A personagem central da trama,
Mahin, papel vivido brilhantemente por Lili Farhadpour, explora uma série de
nuances da situação feminina, que remetem ao país, mas vão além dele, com
certeza. Faramarz, papel também de ótimo
desempenho de Esmaeel Mehrabi, nos mostra que o poder masculino se esvai,
desaparece no viver solitário. O grupo
de homens idosos do bar também remete à perda dessa força, em que pese o modelo
social privilegiar tão claramente o homem, frente à liberdade e à capacidade de
decidir a própria existência. O fato é
que a vida pulsa na tela com muita verdade nesse simpático “Meu Bolo Favorito”. O bolo é aquele que é feito na espera de
alguém para comer e compartilhar.
FILMES EM CARTAZ
Já comentei por aqui vários filmes que estão entrando na programação dos cinemas, quando da 48ª. Mostra Internacional de São Paulo: MARIA CALLAS, TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ, SOL DE INVERNO, BABY, MALU e LUÍS MELODIA, NO CORAÇÃO DO BRASIL. Quem não viu e quiser conferir entre nas postagens da Mostra em outubro e começo de novembro por aqui: https://cinemacomrecheio.blogspot.com
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