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terça-feira, 3 de setembro de 2024

VALERIO ZURLINI

                            

 Antonio Carlos Egypto 




Valerio Zurlini (1926-1982) é um dos grandes cineastas do chamado período clássico do cinema italiano, as décadas de 1950-1960 e 1970, em que se destacaram nomes como Fellini, Antonioni, Visconti, Pasolini, De Sica, Rossellini.  Zurlini faz parte desse timaço de realizadores com todos os méritos.  Mas seu cinema ainda é menos conhecido do que o dos chamados grandes mestres italianos.  Por isso ganha relevância uma mostra de seus filmes, que está acontecendo de 03 a 08 de setembro de 2024, no
Centro Cultural São Paulo, sala Lima Barreto, na rua Vergueiro, 1000.

 

Valerio Zurlini fez muitos curta-metragens e apenas oito longas em sua carreira.  Seis desses oito longas estão sendo exibidos nessa mostra.  Todos grandes obras do cineasta de Bolonha, que interagia com a literatura e a pintura, em busca de compreender, de forma esteticamente elaborada, as ações e sentimentos humanos em sua desafiadora complexidade.  Contextualizando os conflitos e relacionamentos com o seu tempo e os vínculos com as batalhas, tanto da vida amorosa e familiar quanto das guerras e disputas políticas na sociedade.

 

Comecemos por VERÃO VIOLENTO (Estate Violenta), de 1959, que aborda a política fascista de Mussolini, com um elenco que inclui Eleonora Rossi Drago, Jean-Louis Trintignant, Jaqueline Sassard, Enrico Maria Salerno. 

 




A MOÇA COM A VALISE (La Ragazza con la Valigia), de 1960, um dos meus favoritos, conta com Claudia Cardinale, esplendidamente bela, Jacques Perrin e Gian Maria Volonté no elenco.  DOIS DESTINOS (Cronaca Familiare), de 1962, destaca Marcelo Mastroianni e Jacques Perrin, nos papéis de irmãos distantes com diferentes visões de mundo, em grandes desempenhos.

 

Em 1965, MULHERES NO FRONT (Le Soldatesse) fala de prostitutas convocadas para a guerra para animar os soldados e traz atrizes como Ana Karina, Marie Laforet, Lea Massari e Valeria Moriconi.

 

A PRIMEIRA NOITE DE TRANQUILIDADE (La Prima Notte di Quiete), de 1972, traz o grande Alain Delon, recém falecido, como um atrativo a mais, ao lado de Giancarlo Giannini, Lea Massari e Alida Vali.  E O DESERTO DOS TÁRTAROS (Il Deserto dei Tartari), de 1976, traz um elenco nada menos que espetacular.  Vejam só: Jacques Perrin, Vittorio Gasman, Max Von Sydow, Francisco Rabal, Giuliano Gemma, Philippe Noiret e Fernando Rey, aquartelados à espera de um ataque tártaro, que parece nunca chegar.

 

Todos esses filmes também foram lançados em DVD, há algum tempo, pela Versátil Home Video, em versões remasterizadas, muito boas, que acredito ainda se encontrem no mercado.

 

Quem não conhece bem o diretor e gosta do cinema italiano, que foi um dos melhores do mundo nessa época, não deve perder essa mostra.  Com mais uma vantagem: todas as sessões são gratuitas.

 

  

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

CINEMA...EM CASA (2)

Antonio Carlos Egypto



 

No momento em que escrevo a mão este texto sobre o que tenho curtido de cinema, em DVD por aqui, estou numa varanda de casa, em Águas de São Pedro..  Acompanhado pela presença e pelo canto de inúmeros e variados pássaros, alguns até bem estridentes, pelo voo de urubus que aqui passeiam e quase sem notar os gatos da vizinhança que aparecem sempre, sem dar aviso, e circulam livremente pelos limites da casa.  A caravana não passa, mas os cães ladram mesmo assim.

 

Uma vez, há um tempo, um pato selvagem subiu em cima do nosso telhado, sabe-se lá por quê, fazendo um barulhão.  Há um lago, uma represa, perto de casa, mas nem tão perto assim.  Há poucos dias, fui colocar o saco de lixo no local de coleta, em frente de casa, à noite, e me deparei com um tatu.  Pena que não pude fotografá-lo.  No centro da cidade, há poucas semanas, passeavam tranquilamente quatis pela rua, esses deu para fotografar. Lagartos circulam amiúde por todos os cantos. Em tempos de isolamento, além da esposa, tenho os animais por perto.  A proximidade da natureza provê isso e dá o toque curioso dessa vida em compasso de espera que estamos vivendo.

 



Uma boa companhia na tela da TV foi o box de DVDs “Essencial Agnès Varda”, lançado recentemente pelo www.obrasprimasdocinema.com.br.  Gostei muito do material que veio nessa caixa, porque já conhecia e admirava o trabalho dessa grande mulher cineasta, de uma obra admirável, mas não conhecia os filmes aqui mostrados, exceto um.

 

Já comentei aqui no  cinema com recheio  vários filmes de Agnès Varda (1928-2019) e a profunda relevância da obra que ela nos legou, com destaque para filmes como “La Pointe Courte” (1954), “Cleo das 5 às 7” (1962), “As Duas Faces da Felicidade” (1965), “Sem Teto, Sem Lei” (1985), que estão em outro box do Obras Primas.  Além deles, vale citar “As Praias de Agnès” (2008), lançado em DVD pelo Instituto Moreira Salles, e “Visage, Villages” (2017).  Destaco ainda o último filme dela, “Varda por Agnès”, de 2018, autêntico testamento artístico costurado por ela, revisitando os principais aspectos de sua criação, ao longo do tempo.  Esse último filme foi recentemente lançado em DVD pela Imovision (loja.imovision.com.br) e é indispensável.

 

Agnès Varda


Para quem já conhecia tudo isso, foi muito interessante conhecer outros 3 longas e 13 curtas-metragens da cineasta.  Tudo muito bom, como toda sua obra, que é muito pessoal, afetiva, intensamente marcada pela arte e pela política e que combina o documentário e a ficção, em narrativas em que ela, Agnès, está sempre presente (até no título, como se pode ver).

 

O longa “Jane B por Agnès V” (1988) é um retrato poético da atriz Jane Birkin, perscrutando a intimidade e explorando possibilidades em uma fantasia realista, a partir da disposição da atriz de se expor e também dos seus limites na relação que se estabeleceu com a pessoa e a câmera de Agnès Varda.

 

“Kung-Fu Master”, filme realizado no mesmo ano de 1988, em paralelo ao outro, traz uma história de amor improvável, vivida por uma mulher de 40 anos (Jane Birkin) com um jovem de 15 anos, papel do filho de Agnès, Mathieu Demy.  O título, pouco atraente, refere-se ao game favorito do garoto.  A abordagem é muito inteligente, cuidadosa e veraz. 

 

Jane B. por Agnès V.


O terceiro longa, “Jacquot de Nantes” (1991), revela outra bela história de amor, a da própria Agnès por seu marido, o cineasta Jacques Demy (1931-1990), cuja obra ela sempre lutou para preservar e difundir e homenageou nesse filme, uma biografia de Demy, a partir das próprias lembranças dele no fim da vida, remetendo ao passado, à infância, à adolescência e aos primórdios do trabalho como cineasta.  Ela fez também, em 1993, “O Universo de Jacques Demy” sobre a obra artística desse grande cineasta da  nouvelle vague.  Como ela, aliás.

 

Só para lembrar alguns ótimos filmes de Jacques Demy, “Lola, a Flor Proibida” (1960), que também revi nessa quarentena, excelente, da Lume Clássicos, do Maranhão, que acaba de reativar seu setor de DVDs.  “Baía dos Anjos” (1963), “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1964), “Duas Garotas Românticas” (1967), “Pele de Asno” (1971), com especial destaque para o desempenho de Catherine Deneuve na maioria desses títulos.  Nesse box  Essencial Agnès Varda  há também um curta-metragem de Jacques Demy, “O Tamanqueiro do Vale do Loire”.  Isso, além dos 13 assinados por Varda.

 

Quanto aos curtas dela, são todos muito interessantes, têm muita criatividade, espírito crítico e posicionamentos políticos e artísticos claros e consistentes.  Vale a pena conhecer cada um deles.  Eu destacaria ”Os Panteras Negras”, neste momento de reflexão indispensável sobre as manifestações antirracistas.  O curta de 1968 dialoga com isso.  Mas há de tudo nos curtas, com ênfase na pessoa humana, além da arquitetura, do social, do fruir estético.  Uma mulher como essa é uma glória do cinema.  Passei a gostar ainda mais do trabalho dela, após conhecer essas obras. 




sábado, 12 de setembro de 2020

CINEMA...EM CASA (1)

Antonio Carlos Egypto

 

Não bastaram as guerras, o consumismo desenfreado, as emergências climáticas cada vez mais intensas e frequentes, as crises econômicas por todo canto, os excessos que marcam o nosso mundo contemporâneo, para frear a ação humana deletéria sobre o planeta.  Foi preciso um vírus atacar e fragilizar cada um para nos fazer parar e nos mostrar que estamos num caminho inviável, insustentável.  Diante do  pare ou morra,  tivemos que parar.  E o ano 2020 praticamente desapareceu do calendário.  Antes de desejar  Feliz 2021  para vocês, vou lhes contar um pouco sobre o que restou para mim do cinema, confinado em casa.

 

Como me afastei de São Paulo e já não tenho mesmo o hábito de curtir  streaming, tratei de garantir uma boa programação noturna, por meio do DVD, que sempre foi a minha forma preferida de ver filmes fora do cinema.  Geralmente, porque dá acesso a títulos mais antigos ou menos conhecidos de cineastas ou filmografias de diferentes regiões do globo.  Mas também porque curto ter a mídia física comigo, para dispor dela a qualquer hora.  Além de ter uma atração por colecionar os grandes momentos da história do cinema ou grandes descobertas modernas. 

 

Fiz uma seleção dos filmes em DVD que já tinha e queria conhecer ou rever, comprei algumas novas coleções e levei para o meu isolamento em Águas de São Pedro.  Espero que acabem servindo como sugestão em tempos que permanecem restritos à livre circulação e aglomeração.  Mesmo que os cinemas reabram logo, é inevitável que muitos de nós, os mais velhos, ou os mais vulneráveis, não queiramos ainda frequentá-los durante um tempo.

 

Sei que uma solução  retrô  se revelou eficiente em várias partes: o cinema  drive-in.  O do Belas Artes em São Paulo, no Memorial da América Latina, pelo que soube, estava um sucesso.  Como solução temporária, muito legal, mas não supre a necessidade do convívio, do contato humano, da troca, nem da novidade compartilhada por muitos. Compreensivelmente, se dirige mais à saudade dos grandes espetáculos em tela grande, dos sucessos do cinema.  Mas foi uma iniciativa bem interessante e criativa.  Parece nos dizer, também, que há que se voltar num tempo e revisar hábitos, inevitavelmente. 

 

Alain Resnais

Um dos cineastas que elegi para me acompanhar no isolamento foi o francês Alain Resnais (1922-2014).  Um dos grandes criadores do cinema, Resnais se destaca por ser inovador da forma e da narrativa.  Ele embaralha o tempo, confunde a ficção com a realidade, personaliza o coletivo, separa radicalmente a música da ação, explora o inusitado do amor e do relacionamento, sob todos os ângulos possíveis.  Bem, isso e muito mais.  Para começo de conversa, ele tira o espectador da zona de conforto e quebra expectativas com um talento admirável com a câmera.

 

Resnais tem obras absolutamente geniais incorporadas à história do cinema, como “Hiroshima, Mon Amour” (1959), “O Ano Passado em Marienbad” (1961) e o documentário “Noite e Neblina” (1956).  Indispensáveis.

 

Aliás, foi porque incluía “Noite e Neblina” na caixa é que eu fui logo atrás de “O Cinema de Alain Resnais”, recém-lançado pela Versátil Home Vídeo, que reúne 6 filmes restaurados do diretor.  Alguns bastante experimentais ou estranhos, mas sempre bonitos, bem-humorados e surpreendentes.  Lá está “Meu Tio da América” (1980), um estudo biológico-comportamental da espécie humana e sua relação com o ambiente, explicitada por meio de três personagens.  Original é pouco. 

 


E que tal “Muriel” (1963), em que a personagem que dá nome e algum sentido ao filme nunca aparece? E a guerra da Argélia é onipresente, mas nunca mostrada? “A Vida é Um Romance” (1983) trata de uma utopia da felicidade nos anos 1910, a busca da sociedade ideal, por meio também de três histórias que se cruzam.

 

“Morrer de Amor” (1984) é um ensaio sobre paixão e morte, onde literalmente se morre de paixão.  Tem até volta à vida.  Bem interessante e provocador.  Completa a caixa “Melô” (1986), que é, naturalmente, um melodrama lascado, adaptado de uma peça de Henri Bernstein.

 

Só para lembrar, “Noite e Neblina” é um impressionante trabalho realizado em apenas 33 minutos sobre os campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, opondo o vazio daquele momento aos horrores vividos naqueles espaços de extermínio.  Impressionante e definitivo relato, recheado de material de arquivo, realizado poucos anos após o fim do conflito.




Esses foram os filmes de Alain Resnais que vi na chamada quarentena (interminável).  Mas gosto imensamente de outros filmes dele, como “Providence” (1977), “Medos Privados em Lugares Públicos” (2006), “Ervas Daninhas” (2009) e seus últimos trabalhos “Vocês Ainda Não Viram Nada” (2011) e “Amar, Beber e Cantar” (2014).  Há críticas de muitos desses trabalhos aqui no blog.

 

Nesses muito longos dias de isolamento social, pude ver muitas outras coisas, das quais espero reportar no  cinema com recheio  em datas próximas.  Comecei por Alain Resnais porque acho fundamental conhecer essa obra cinematográfica tão única e, por todos os títulos, brilhante.

 

Vou tentar fazer uma pequena série de textos englobando outros diretores, gêneros ou temas.  E postar enquanto eu permanecer em São Paulo, já que essa pandemia parece nunca ter fim.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI

Antonio Carlos Egypto






VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI (Sorry, We Missed You).  Inglaterra, 2019.  Direção: Ken Loach.  Com Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Charlie Richmond, Katie Proctor.  100 min.


O britânico Ken Loach é um dos diretores de cinema mais importantes em atividade.  Seu trabalho tem cunho realista e forte conotação política, ao abordar os personagens da classe trabalhadora sofrendo as consequências de um sistema econômico que os exclui e oprime de muitas formas.  Aborda também as respostas e caminhos que os trabalhadores acabam encontrando para lidar com esse clima assustador a que estão, querendo ou não, submetidos.

Quem viu os filmes dele ”Meu Nome é Joe”, de 1998, “Pão e Rosas”, de 2000, “À Procura de Eric”, de 2009, “A Parte dos Anjos”, de 2012, e “Eu, Daniel Blake”, de 2016, sabe do que eu estou falando.  Quem não viu e quiser saber do que se trata é só procurar no campo de pesquisa do cinema com recheio que encontrará as críticas  desses filmes e também de “Rota Irlandesa”, de 2011, e “Jimmy’s Hall”, de 2014, que tratam de questões históricas irlandesas sempre do ponto de vista do trabalhador.  São grandes filmes dele também “Terra e Liberdade”, de 1995, sobre a guerra civil espanhola, e “Ventos da Liberdade”, de 2006, que trata da guerrilha irlandesa frente ao colonialismo inglês.  É uma obra vasta e muito importante.

Em “Você Não Estava Aqui”, Ken Loach aborda os novos rumos do capitalismo que, com o colapso do emprego formal, vende a ilusão do empreendedorismo, o trabalho por conta própria, que, de tão precarizado, se aproxima não da liberdade individual, mas justamente de seu contrário, a escravização.

O sistema econômico que adula e impõe condutas afeta de tal modo a vida pessoal dos trabalhadores, com a precarização do trabalho e dos direitos, que produz inevitáveis rupturas nas relações humanas e familiares.




Na trama do filme, Ricky (Kris Hitchen) acredita na fantasia do empreendedorismo e vai ser motorista por conta própria, adquirindo uma van novinha, a ser paga em prestações.  Para tal, compromete a mobilidade de sua mulher, Abby (Debbie Honeywood), que é uma dedicada cuidadora de idosos.  A vida dos dois filhos do casal, especialmente do menino adolescente, também sofrerá muitas consequências sérias com essa decisão.  Não demorará muito para que Ricky descubra que, como diz o seu patrão, “o negócio é seu, mas a franquia é nossa”.  E, com essas cartas o jogo é pesado, não sobra tempo para nada e qualquer falta será punida com pesadas multas.  E por aí vai.

O diretor pergunta se é sustentável recebermos nossas compras por meio de uma pessoa que dirige uma van 14 horas por dia.  E acrescenta: isso é melhor do que ir a uma loja e interagir com o vendedor?  Explica que isso não é um erro, mas a lógica do desenvolvimento da economia de mercado.  Segundo ele, o trabalho informal acaba com as vidas e os pobres é que pagam o preço.  O contexto da ação do filme é Newcastle, na Inglaterra, em meio à crise de 2008, mas vale para toda a economia de mercado do mundo atual.

Pensemos no sistema de entrega paulistano por motoboy, o quanto isso é precário, muito mal pago, perigosíssimo.  Basta ver o número escandaloso de mortes que produz.  A chamada uberização da vida econômica acrescenta detalhes de crueldade àquilo que já era uma terrível exploração.

Ken Loach nos fala de algo que conhecemos muito bem, bate à nossa porta e nos deixa preocupados (se pararmos para pensar) e com uma sensação de impotência diante do sistema.  É de gente com o talento desse cineasta que precisamos, para não perdermos a capacidade de nos indignar diante da desumanidade e da ganância do lucro.





quarta-feira, 20 de novembro de 2019

UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK

Antonio Carlos Egypto





UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK (A Rainy Day in New York).  Estados Unidos, 2018.  Direção e roteiro: Woody Allen.  Com Selena Gomez, Timothée Chalamet, Elle Fanning, Jude Law, Liev Schreiber.  95 min.


Que bom ter de volta o Woody Allen às telas de cinema.  Estava fazendo falta.  Suas histórias inteligentes, cheias de charme, com diálogos bem humorados, irônicos e sutis, estão disponíveis novamente ao nosso desfrute.  E aqui, mais uma vez, a cidade é um grande protagonista.  E, mais uma vez, é Nova York, Manhattan, quem brilha e se torna deslumbrante, fabulosa, num dia de chuva.

Se em Nova York tudo acontece, tudo pode acontecer, a vida e a arte pulsam, a chuva não encobre nada disso, até acentua a aventura e a experiência amorosa.

Por conta de uma entrevista com um diretor hollywoodiano, Rolland Polard (Liev Schreiber), a estudante de jornalismo Ashleight (Elle Fanning) tem de se deslocar a Manhattan num final de semana.  Oportunidade logo abraçada por seu namorado Gatsby (Timothée Chalamet).  E ambos fazem planos de como aproveitar Nova York juntos, após a entrevista.  Romanticamente juntos, com direito até a passeios de charrete pelo Central Park.




O que se planeja, no entanto, pode não acontecer.  Elementos fortuitos, inesperados, encontros imprevistos, expectativas não consideradas, podem mudar o quadro dessa comédia romântica, sem que ela deixe de ser uma comédia ou deixe de ser romântica.  A responsável pelas mudanças de comportamento, definitivamente, não é a chuva.

Um filme que tem leveza, sutileza, tiradas inteligentes e bem-humoradas o tempo todo, e uma trilha sonora belíssima fazem do espectador seu cúmplice. As referências cinematográficas envolvendo o nome dos personagens agrada e atrai os cinéfilos. É de se sair feliz do cinema, achando que a vida, afinal, pode ser charmosa e divertida.  Sequências muito bem concebidas e realizadas compõem a narrativa de Woody Allen, que nunca desaponta.

Timothée Chalamet é ao mesmo tempo contido e expressivo, no papel de Gatsby, o namorado que espera e também experimenta.  Elle Fanning é tão deslumbrada quanto a personagem que representa, descobrindo importantes figuras do cinema de Hollywood.  Exagera um pouco, beirando o histriônico.  Selena Gomez (Chan), a quem Gatsby redescobre em sua espera, dá o tom firme e charmoso da sua personagem, na sutileza.  O elenco, como um todo, entra bem no clima do conjunto do trabalho. 

As situações têm, como sempre acontece com o diretor, a capacidade de envolver o espectador, enquanto o municia de tiradas críticas, irônicas.  O que faz com que “Um Dia de Chuva em Nova York” alcance um nível que está muito acima das habituais comédias românticas realizadas com mero intuito comercial.  Qualquer que seja o gênero ou a concepção de cinema, tem de estar acima do interesse comercial, mesmo que ele faça parte da história, como é o caso.



Denúncias, investigações, correções de rota na vida pessoal, não podem impedir, como vinha acontecendo, que um talento da importância de Woody Allen pudesse ser posto na geladeira, boicotado ou impedido de trabalhar.  Até porque, como dizia a velha canção de Herivelto Martins, imortalizada por Dalva de Oliveira, “primeiro é preciso julgar para depois condenar”.  Acusar é fácil.  É preciso investigar e dar amplo direito de defesa.  Até prova em contrário, todos são inocentes.  Desconsiderar isso, em nome de uma campanha ou de algum clamor popular, pode gerar grandes injustiças. E também é necessário distinguir a pessoa da obra que ela cria.





domingo, 11 de agosto de 2019

SIMONAL

Antonio Carlos Egypto






SIMONAL.  Brasil, 2018.  Direção: Leonardo Domingues.  Com Fabrício Boliveira, Ísis Valverde, Caco Ciocler, Leandro Hassum, Mariana Lima.  105 min.


A história, fabulosa e complicada, da carreira de Wilson Simonal (1938-2000) tinha se tornado um tabu, do qual ninguém mais tratava, até que o documentário “Simonal, Ninguém Sabe o Duro que Dei”, de 2009, corajosamente enfrentou a questão.  Seus diretores, Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, foram capazes de lançar luz sobre o paradoxo de um dos maiores cantores da história da MPB,  e de um domínio de palco absoluto, ter sumido do mapa, por conta de suas ligações com órgãos de repressão da ditadura militar.  Simonal se valeu de ligações com o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) para pressionar e, ao que tudo indica, torturar seu contador, acusado de roubá-lo.  Injustamente, porém.  Foi também acusado de dedo-duro  junto a colegas artistas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que teriam sido apontados como subversivos, ou comunistas, algo jamais provado, diga-se.  Ao tratar daquele filme, procurei fazer uma síntese sobre o assunto, que pode ser acessada aqui: https://cinemacomrecheio.blogspot.com/2009/05/simonal-o-documentario.html

Agora, chega aos cinemas a produção ficcional “Simonal”, de Leonardo Domingues, tratando a rigor das mesmas coisas, acrescentando alguns detalhes do caso, que podem ser importantes.  Mas tudo já parecia estar razoavelmente esclarecido.  Então, o destaque vai para os êxitos de sua carreira, interpretações e desempenhos marcantes nos palcos, e para a rejeição que se seguiu.




Um bom musical para vender novamente os grandes sucessos do cantor.  Quem acompanhou aquela escalada vai se lembrar, com certeza, de “Sá Marina”, “Nem Vem, que Nâo Tem”, “Mamãe Passou Açúcar Ni Mim”, “Vesti Azul”, “Aqui é o País do Futebol”, “Carango”, “Tributo a Martin Luther King”, o grande “País Tropical”, de Jorge Ben, e o clássico “Meu Limão, Meu Limoeiro”, de 1937, de José Carlos Queiroz Burle (1910-1983), que Carlos Imperial (1935-1992) registrou como se fosse composição dele.  E o nome disso, na época, não era roubo, desonestidade, era pilantragem.  Fácil assim, não é?

Constam da trilha sonora também músicas do que seria a primeira fase de sucesso de Simonal, inspirada na bossa-nova, jazz, blues.  A mais marcante, “Balanço Zona Sul”, está lá.  Outras que aparecem são, porém, inadequadas.  “Lobo Bobo”, todo mundo sabe que é uma das mais marcantes interpretações de João Gilberto, e “De Manhã”, um baita sucesso de Caetano, na voz de Maria Bethânia. Simonal também as gravou, assim como gravou, por exemplo, “Disparada” e “A Banda”, mas são apenas regravações à sua moda.  Só isso.  Não são sucessos dele.

Outra coisa que me incomodou foi uma sequência em que Simonal ensina a Jorge Ben (ou Benjor, como ficou depois) o suíngue de “País Tropical”, com a novidade do corte das últimas sílabas.  Pouca gente na MPB tem mais ritmo, balanço e humor, do que Jorge Benjor.  É muita pretensão achar que Simonal foi quem ensinou isso a ele.  Que é o criador, o compositor da música.

Enfim, recuperar os méritos, o talento de Wilson Simonal, tudo bem.  Mas não é aceitável exagerar dessa forma.  A MPB da época dele era, e ainda é, uma geração brilhante, além de comprometida com a luta pela liberdade e pela democracia.  Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius, Edu Lobo, Jorge Benjor, Caetano, Gil, Milton Nascimento, Vandré, Tom Zé, tanta gente.  Simonal fazia o lado mais comercial e divertido da história.  Descompromissado, na base da alegria, alegria, em tempos de opressão.  É válido, mas devagar com o andor que, na real, o santo se mostrou mesmo de barro.




A produção do filme “Simonal” é boa, bem cuidada.  Fabrício Boliveira, que interpreta o cantor, consegue passar o pique e a força do Simonal dos tempos de glória e da fase de derrocada.  Ísis Valverde tem destaque na trama, no papel da esposa Tereza.  O elenco, como um todo, é muito bom.

A forma como a história é contada foca demais em Simonal, deixando toda a brilhante MPB da época na sombra.  É um erro, dá uma dimensão excessiva ao personagem, em prejuízo do contexto que o envolvia, que não era só o da ditadura militar, mas a da resistência a ela, brava e poderosa, por parte dos artistas do período com quem Simonal convivia.  E dos que compartilharam de seu tempo, em paralelo à sua carreira.  Fica muito mais fácil entender a rejeição que ele sofreu no contexto mais amplo de onde ela se deu.  Fica mais claro, politicamente, e bem menos paradoxal.



quarta-feira, 10 de julho de 2019

ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR

Antonio Carlos Egypto





ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR.  Brasil, 2018.  Documentário.  Direção e roteiro: Marcelo Gomes.  85 min.


“Cinema, Aspirinas e Urubus”, 2005, primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes, está para mim entre as melhores produções brasileiras do século XXI.  “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, 2009, dirigido por  Marcelo Gomes e Karim Ainouz , é um filme experimental brilhante e um dos produtos mais criativos da nossa filmografia recente.  O que recomenda vivamente o trabalho do cineasta.  Marcelo Gomes fez ainda “Era Uma Vez Eu, Verônica”, 2012, e “Joaquim”, 2017, e codirigiu com Cao Guimarães “O Homem das Multidões”, 2013.  Uma trajetória bastante sólida e consistente.

Seu novo trabalho, “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”, peca pelo título quilométrico, que remete a uma música de Chico Buarque.  No entanto, é um documentário com uma abordagem simples, clara e direta, que dá conta de uma realidade bem mais complexa do que a sua aparência faria supor e alcança uma dimensão reflexiva surpreendente.

Como um filme que se constrói ao caminhar sobre o tema e ao encontrar elementos novos a cada passo, a narrativa se estabelece à medida em que é capaz de ouvir o outro com atenção e, de algum modo, interagir,  participar e intervir no seu objeto de estudo.




O personagem do documentário é a cidade de Toritama, no Agreste de Pernambuco, que era uma localidade pacata, que Marcelo Gomes conheceu quando criança, acompanhando seu pai em visitas de trabalho.  Era, não é mais.  Foram justamente a agitação e as mudanças em Toritama, visíveis ao passar pelas estradas locais, que chamaram a atenção dele.  Agora Toritama se define como a capital do jeans,  20% de toda a produção de jeans  do Brasil vem de lá, cerca de 20 milhões de peças por ano produzidas em fábricas de fundo de quintal, que são chamadas de facções.  É surpreendente que uma cidade com 40.000 habitantes tenha uma produção assim tão grande para ostentar.  E por que isso acontece?  Em síntese, porque tudo que se faz lá, o tempo inteiro, é trabalhar.  Cada casa ou conjunto delas vira uma oficina de costura individual ou coletiva.  Quase todos parecem preferir trabalhar por sua conta e risco, como e quando quiser, sem carteira assinada na fábrica.  Com a certeza de que o que produzirem vai ser comprado.  Ou porque já foi combinado ou porque vai ser vendido nas grandes feiras que atraem público de todos os cantos.

Como mais peças ou partes de peças costuradas resultam em pequenas quantidades de dinheiro, quanto mais se faz mais se ganha. Conclusão, a maioria dos moradores/produtores da cidade trabalha continuamente desde cedo até tarde da noite.  Em casa mesmo, sem horário.  Ou melhor, sem horário para viver, só para trabalhar, comer e dormir, com direito a uma hora de TV, provavelmente para ver a novela. Uma espécie de escravidão não só consentida, mas buscada pela população.  Que dela não se queixa, com poucas exceções.  Acha que está muito bom assim, sente-se livre e dona do seu nariz.  Ou melhor, do seu negócio.  Muito curioso esse microcosmo do capitalismo que toma de assalto e transforma radicalmente uma pequena localidade, que já não tem espaço nem para criar galinhas ou fazer caminhar os bodes que restaram pela cidade, cruzando a rodovia.

Se isso parece estranho e surpreendente, o que dizer da obsessão absoluta de toda a população em, obrigatoriamente, passar o Carnaval na praia?  Custe o que custar, ninguém fica, todos saem para tomar banhos de mar, beber, fazer alguma fantasia, batucar e dançar no Carnaval.  Se não tiver dinheiro, vende o que tem – fogão, geladeira – ou toma emprestado, para depois pagar ou recomprar o que vendeu.  O que não pode é perder o Carnaval.

Marcelo Gomes filmou a cidade nos dias de Carnaval e só então reencontrou o silêncio e as ruas vazias do seu tempo de criança. O mundo do trabalho e o do  lazer (ou férias) se colocam em oposição.  Oposição não é bem a palavra.  Talvez espaço e tempo estanques, separados.  Trabalho todo o tempo.  Parada no Carnaval, fora da cidade, como obrigação incontornável.  Trabalho parece ser só dinheiro e o dinheiro vira uma dependência, é só ele que importa.  Prazer  no período mágico do Carnaval, tratado como obrigação tanto quanto a atividade produtiva. Mas há também prazer no trabalho e nos resultados obtidos. Por que não é possível integrá-los, mesclá-los, equilibrar algumas coisas, diante da obsessão em fabricar cada vez mais e mais e obter o dinheiro desejado?




Fico pensando nos mecanismos da Internet – e-mails, WhatsApp, outras redes sociais – nos tomando um tempo absurdo de trabalho não remunerado, quando a tecnologia teria de ter vindo para nos poupar tempo e permitir o ócio criativo.  Parece que também aqui nos deixamos escravizar com gosto, ou simplesmente o esquema nos engole.  Isso também tem a ver com abdicar da liberdade para seguir um salvador da pátria, um mito qualquer?  O ótimo documentário de Marcelo Gomes nos faz pensar em muitas coisas como essas, que não estão no filme, mas na minha cabeça, nesse momento.

A música do Chico Buarque, que está no filme, e tem como estribilho Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar  fazia alusão á liberdade que o sujeito viveria com o fim da ditadura militar opressora, restritiva de todas as liberdades e que tinha como oposição o Carnaval libertador.  Não é o sentido, aqui, o Carnaval, no caso, é uma liberação momentânea de um trabalho que, no fim das contas, embora não pareça, é também opressivo, mas que dura pouco e nada muda.

Este filme do Marcelo Gomes, cujo título me permito não ficar repetindo, por ser longo demais, ganhou o prêmio do Júri Oficial e o da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) no Festival  É Tudo Verdade  2019.  E está na sessão Vitrine, com preço reduzido, em grande número de cidades brasileiras.

CINEMA AFRICANO
Começa agora a Mostra de Cinemas Africanos, no Cinesesc São Paulo.  Serão exibidos 24 filmes de 14 países do continente, de 10 a 17  de julho.  Uma boa oportunidade para conhecer melhor um cinema ainda pouco divulgado por aqui.




terça-feira, 18 de junho de 2019

SANTIAGO, ITÁLIA

Antonio Carlos Egypto



SANTIAGO, ITÁLIA (Santiago, Itália).  Itália, 2018.  Direção: Nanni Moretti.  Documentário.  80 min.


Nanni Moretti é um realizador muito antenado com tudo o que se passa na sua cidade, no seu país e no mundo.  Ótimo contador de histórias, incorpora a seus personagens e situações um humor cheio de ironias políticas, que buscam avançar na direção de um mundo mais livre, defenestrando figuras conservadoras e autoritárias, como Berlusconi, por exemplo.

Suas ficções flertam com o documental, em vários filmes.  Em “Caro Diário”, de 1993, ele é o próprio personagem e seus passeios de lambreta por toda a Roma não deixam de ser uma bela reportagem sobre a cidade.  “Santiago, Itália”, no entanto, é o primeiro documentário que vejo dele (não sei se ele fez outros, que podem não ter chegado aqui).

Seu estilo característico de dirigir, e mesmo de atuar, está lá.  Fluidez e leveza garantidas.  Mas a forma do documentário se impõe, com muitas imagens de arquivo e entrevistas com as pessoas que estiveram envolvidas com a história que ele vai nos contar. E essa história precisava mesmo ser contada, porque se refere a um momento em que ideais políticos, resistência á truculência e solidariedade humana estavam em alta na Itália.




Em 1973, o Chile passou a viver uma tragédia política e humanitária, a partir do 11 de setembro em que o Palácio de la Moneda, sede do governo, foi bombardeado pelas Forças Armadas do país, com o presidente eleito Salvador Allende dentro dele.  Que optou pelo suicídio, nos fazendo lembrar de Getúlio Vargas, e deixou sua marca na história.  O filme de Nanni Moretti começa antes disso, nos anos felizes e prósperos do governo Allende, que sempre contou com amplo apoio popular.

A ditadura militar que então se instalou, sob o comando do general Augusto Pinochet, foi um estado de exceção marcado pela censura, perseguição, prisão, tortura e morte dos que participaram ou apoiaram aquele governo popular.

A embaixada italiana em Santiago do Chile recebeu, na época, muitas pessoas, que pularam seu muro, relativamente baixo, e lá se abrigaram para salvar suas vidas.  Chegaram a viver dentro da embaixada cerca de 250 pessoas, incluindo crianças.  Os embaixadores italianos Piero De Masi e Roberto Toscano, ouvidos no filme, decidiram conceder asilo a todos esses chilenos perseguidos e muito fizeram para ajudá-los a se adaptar e encontrar emprego e moradia dignos em solo italiano.  Muitos deles lá ficaram, reconstruíram suas vidas e relembram a solidariedade recebida e a acolhida afetuosa que tiveram, inclusive na rua e de moradores das cidades que os receberam, querendo saber deles e do Chile.

O papel que a Itália como país desempenhou nesse momento terrível da vida chilena é mostrado por Moretti como algo inesquecível, que exala humanidade.  E que se perdeu pelo caminho. Na Itália de hoje, o que vigora são o consumo e o individualismo.




O documentário é um belo resgate desses fatos, que merecem ser mais conhecidos e celebrados e que praticamente não circularam por aqui.  Excelente trabalho do diretor, que costuma ser também ator de seus filmes.  Entre seus principais trabalhos estão, além de “Caro Diário”, “Abril”, de 1998, “O Quarto do Filho”, de 2001, “Crocodilo”, de 2006, “Habemus Papam”, de 2011, e “Minha Mãe”, de 2015.  Uma obra inteligente e de grande qualidade.

“Santiago, Itália” recebeu o prêmio Davi de Donatello de melhor documentário e o prêmio Nastro D’Argento, do Sindicato dos Jornalistas Italianos.