sábado, 31 de outubro de 2020

DESTAQUES DA #44 MOSTRA

        Antonio Carlos Egypto

 

Entre os quase 200 filmes que fazem parte da 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo on line, acessados pelo site www.mostra.org, destaco aqui alguns importantes, que merecem a atenção dos cinéfilos, ainda que possam gerar reações bem diversas, de admiração ou desagrado, em função do estilo dos cineastas.

 



NADANDO ATÉ O MAR SE TORNAR AZUL é um dos grandes filmes da Mostra.  Jia Zhang-ke, um dos mais importantes cineastas em atuação no mundo, nos faz conhecer melhor a China, partindo da sua aldeia, como se diz.  Ele retornou à sua província para acompanhar um evento literário que aconteceu por lá em 2019 e reuniu escritores importantes, que trataram do tema de suas próprias origens.  Valeu-se das memórias de um grande escritor falecido, Ma Feng, e colheu testemunhos de três escritores de gerações diferentes, Jia Pingwa, Yu Hua e Liang Hong.  Explorou nessas memórias a vida, a opção pela literatura, a atuação e as questões políticas e econômicas que envolveram esse caminho, inclusive as de ordem familiar.  Por meio dessas memórias, emerge todo um país imenso, diverso e em constante mudança.  Percebe-se não só a sociedade em transformação, mas também a influência política intensa que acompanhou a atuação de cada um deles, moldando suas carreiras.  Da China pobre e rural, passando pela revolução cultural de Mao Tsé Tung, à China tecnológica e consumista dos dias de hoje, o autoritarismo mostra sua face opressiva de muitas maneiras, gerando sofrimento e produzindo criatividade. São figuras vencedoras as que falam no filme, mostrando que, por mais difícil que seja, sempre há caminhos para alcançar a sabedoria e realizar potencialidades.  Um documentário de grande alcance, que extrai de boas conversas, complementadas por imagens cuidadosamente produzidas ou recolhidas, um mundo inteiro a revelar.  Se você tem interesse em conhecer melhor a China, para além dos estereótipos, não perca esse filme. 111 minutos.

 




PAI, da Sérvia, dirigido por Srdan Golubovic, trata de uma história pungente que tem por base o desemprego, crescente no mundo.  O filme tem a força moral da solidariedade generosa dirigida aos despossuídos.  Ao contrário da atuação das autoridades que culpam o trabalhador por não ter emprego constante, não ter dinheiro para cuidar da casa e dos filhos, viver no limite da fome.  Até os vizinhos não conseguem apoiá-lo.  Aqui no Brasil vemos com frequência como a pobreza se apoia e se organiza para sobreviver melhor.  Ali, não é o que acontece, o individualismo é que dá as cartas.  O personagem Nikola, após um gesto desesperado de sua mulher, perde a guarda dos filhos, por não ter as condições adequadas para educá-los.  Mas não se conforma, luta com o que pode, principalmente ao descobrir que, por trás da insensibilidade das autoridades locais, há um esquema de corrupção.  Vai a pé até Belgrado, em busca de apresentar um recurso para reaver as crianças.  Mostra com seu sacrifício o que é ser verdadeiramente pai, na base do amor e do desespero, nas condições mais adversas.  A identificação com o personagem e a situação vivida por ele parecem inevitáveis, pelo sentido humano e também pelo desempenho contido e equilibrado do ator que interpreta Nikola.  Impossível sair indiferente de um filme como esse que, numa narrativa tradicional e até didática, mostra as feridas abertas que estão pelo mundo.  Um dos melhores da Mostra, sem dúvida.  120 minutos.

 




DIAS, do diretor malaio Tsai Ming-Liang, é um filme pungente sobre a solidão, mostrada por meio do cotidiano de dois homens, de classes sociais diferentes, que um dia se encontram num quarto de hotel.  Vemos, por exemplo, Kang numa casa grande, olhando o vento e a chuva balançando as árvores pelo reflexo da janela, por um bom tempo, em que aparentemente nada acontece.  Mas a água, um símbolo permanente nas cenas do cineasta, invade o interior.  De outro, vemos Non, lavando hortaliças e preparando comida no seu pequeno apartamento.  Ele procura manter uma chama fraca acesa.  O elemento fogo marcando sua presença e exigindo atenção.  O mal-estar está no corpo de Kang, que se submete a um tratamento do tipo ventosa, mas com fios e coisas que queimam sobre as suas costas, por cima de placas de madeira ou alumínio.  Quase tudo se passa entre quatro paredes, o ambiente externo aparece quando se caminha pela rua, em meio às pessoas, ao movimento urbano, o que reafirma a solidão no coletivo.  Não há contato.  Um contato se dará de forma física e afetiva entre os dois, num encontro homoerótico, em que os cuidados com o corpo são mostrados numa massagem prolongada.  Uma caixinha de música é um presente a quem dedicou tal atenção ao corpo do outro.  Enfim, há um conjunto de situações que transmitem sensações, sentimentos, nos dão tempo de ver até nuvens se deslocando lentamente, e pensar/experimentar o que se vê.  E também o que não se vê.  O filme não tem diálogos e, se algo é dito no burburinho da rua, não importa.  Durante duas horas, é um chamado à contemplação do mundo.  Quem é ansioso ou se prende ao enredo dos filmes, certamente não aguentará.  É preciso, antes de mais nada, se dispor a parar para ver e ouvir os sons, perceber as pessoas e sua solidão no mundo contemporâneo, tão cheio de gente.  Quem se dispuser a isso, perceberá que está diante de uma pérola cinematográfica.

 




GÊNERO, PAN, de Lav Diaz, das Filipinas, é um filme realizado em preto e branco, numa ilha mitológica, a de Hugaw.  Tudo começa a partir de uma mina de ouro em que, claramente, trabalhadores são explorados, fazendo trabalho pesado, em troca de um salário mínimo e incerto, além de restrito a alguns períodos do ano.  Para retornar de um desses períodos, três mineradores revolvem viajar pela selva da ilha, de volta à cidade, para reduzir gastos.  Essa viagem trará à cena mitos e crenças, como o do cavalo negro no rio, que traz a morte.  E a morte virá em forma de assassinato, gerando uma outra narrativa que se desloca para o desvendar do crime e suas consequências.  Histórias enterradas ou esquecidas vêm à tona e uma estranheza nas relações marca as ações.  Lav Diaz é conhecido por realizar filmes monumentalmente longos, com duração de até cinco ou sete horas, inviáveis para exibição sem fraciona-los. Neste caso, não, a narrativa coube em 157 minutos, em que pesem a mudança de rumo e de enfoque que acontece.  A filmagem é muito bonita e expressiva, ao mostrar tanto os personagens como a floresta e a ilha misteriosa.  Há algo hipnotizante no ar.  Vale a pena embarcar nessa aventura pouco convencional desse premiado diretor filipino. 

@mostrasp





quinta-feira, 29 de outubro de 2020

LATINO-AMERICANOS NA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 



ARANHA, do diretor chileno Andrés Wood (do ótimo “Machuca”, 2004), está na 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo on line, com uma trama que envolve personagens e um grupo nacionalista de inspiração nazifascista, que atuou na década de 1970 no país, visando a derrubar o governo de Salvador Allende (1908-1973).  Um grupo civil que dispunha de armas e as utilizava para promover confusões, arruaças, interferências em ações de grupos de esquerda ou de apoiadores do presidente Allende.  Submergiram com a ascensão ao poder da ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006).

 

Na trama do filme, os personagens Inês, Justo e Gerardo vivem um triângulo amoroso, em meio a toda ebulição política do grupo.  Com muitas disputas, manipulações, rasteiras executadas, mágoas guardadas ou expressas, até onde era possível no contexto. Essas coisas permanecem e podem reaparecer diante de novas situações, quarenta anos depois.  Aí já cada um tem seu próprio rumo e algo a perder.  A retomada desses sentimentos e as posições assumidas nesse período e hoje fazem parte de uma narrativa bem construída, que envolve crimes políticos e vinganças.

 

A grande atriz Mercedes Morán é protagonista e o ator brasileiro Caio Blat está no elenco, que reúne um grupo de atores e atrizes tarimbado e que sustenta bem a história. 

 

Em tempos em que grupos de extrema direita se evidenciam em vários países, com suas pautas radicais, superconservadoras e retrógradas nos costumes, é interessante acompanhar esse pessoal, conhecido como Araña, num símbolo que sugere as patas do animal, mas também traços da suástica nazista.

 

Mostra-se que, apoiando ações internacionais, comandadas desde os organismos governamentais e policiais dos Estados Unidos, estavam não só grupos militares locais, mas uma elite civil que se dispunha a tudo para evitar que o socialismo democrático conquistado nas urnas, e com grande apoio popular, pudesse vingar no Chile.  Em nome do anticomunismo, se organizava para respaldar um golpe, que de fato aconteceu, incluindo o metralhamento do Palácio de la Moneda, com o presidente dentro dele, cometendo suicídio e ponto fim à experiência de um governo popular.  Abriu-se, assim, espaço para uma ditadura militar altamente repressora e sangrenta no Chile, à imagem e semelhança de outras ditaduras latino-americanas que se estabeleceram naquele período.  105 minutos.

 




OS NOMES DAS FLORES, filme da Bolívia, de Bahman Tavoosi, em seu primeiro longa, aborda a poesia e o romantismo de uma história envolvendo a figura de Ernesto “Che” Guevara, em seus últimos momentos de vida.

 

Preso pelo exército boliviano, o Che foi levado a uma escola rural onde, segundo relatos, fartamente repetidos ao longo dos últimos 50 anos, era o lugar em que atuava uma professora que tomou a iniciativa de lhe fazer uma sopa e ele retribuiu dizendo os versos de um poema “Os Nomes das Flores”, supostamente de sua autoria, poucas horas antes de morrer.

 

Se é fato, ou mito, se ocorreu dessa forma ou não, pouco se questionou durante todo o tempo decorrido desde essa prisão e o assassinato do Che, que remonta a 1967.  Uma professora do local compareceu diariamente àquela escola, levando um vaso com duas grandes flores e uma panela de barro, para contar o sucedido aos turistas, que por lá apareciam, agendados para esse fim.  Até que, ao cuidar das tratativas das comemorações previstas para os 50 anos da morte do Che na localidade, em 2017, passou-se a questionar a veracidade da história contada por essa professora.  Afinal, outras professoras também contavam a mesma história, dizendo serem elas as reais protagonistas da sopa e das flores.

 

É disso que trata o filme que, com sensibilidade e beleza, nos faz embarcar na vida dessa maestra já envelhecida, mas sempre fiel ao ocorrido.  Ou será que apenas dependia dos trocados recebidos dos turistas para viver e não poderia abandonar aquela iniciativa?

 

Enquanto se deslinda isso, percorremos a zona rural muito pobre em que o Che sucumbiu, lutando justamente contra a pobreza e as condições degradantes de vida do povo.  As construções são paupérrimas, mas há beleza na natureza da região, naquelas montanhas.  Há beleza também no gesto repetido e obstinado da professora.  Também há beleza na busca pela verdade dos fatos e no resgate histórico ali presente. Que significado tem tudo isso nos dias de hoje, em que parece que nada mudou, apesar de tudo o que a Bolívia e o mundo viveram durante estes últimos 50 anos?  79 minutos.

@mostrasp




terça-feira, 27 de outubro de 2020

ANIMAÇÃO NA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

A 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que está ocorrendo on line em www.mostra.org, tem também filmes de animação.  No caso, animação para adultos, em que cabem as manifestações sexuais, de hostilidade, a violência, visões críticas do mundo, da política, de personagens históricos.  Enfim, cabe até uma certa erudição.  Pelo menos, no caso dos dois filmes de animação a que eu assisti nesta Mostra de 2020.

 



O primeiro deles já define isso desde o próprio título, MATE-O E DEIXE ESTA CIDADE, embora não se trate de uma história policial ou de suspense.  Mas de superar um mundo de memórias e perdas, da construção de uma cidade imaginária, em que os que se foram continuam por lá.  Trata-se de poder encarar o mundo real, ou seja, matar o mundo imaginário para dar lugar a uma nova dimensão das coisas.

 

O filme é polonês, do diretor Mariuz Wilczyüski, que se vale da criatividade para mesclar imagens, sem preocupação em ser esteticamente bonito, a maior parte do tempo, nem de guardar proporção entre as coisas. Uma cabeça na água pode ser bem maior do que o navio que anda pela mesma água.  Claro, a imaginação está na nossa cabeça. 

 

Como estamos falando de memória, ilusão, fantasia, a narrativa optou pela fragmentação de situações e ideias.  A cidade e o bonde que circula nela são bem mais bonitos do que as figuras humanas que aparecem.  A humanidade não anda muito bem na visão do criador desta animação.  E que há um grande mal-estar no mundo parece um recado evidente do filme.  O resultado é bem interessante.  88 minutos.

 




O outro filme de animação é bem mais sofisticado e elaborado do que o anterior.  É o russo O NARIZ OU A CONSPIRAÇÃO DOS DISSIDENTES, de Andrey Khrzhanovsky.  Valendo-se de uma profusão de recursos, que incluem diversos tipos de desenhos, fotos, vídeos, ilustrações, filmagens com atores e um escore musical sensacional, ele nos leva ao conto “O Nariz”, de Nikolai Gogol (1809-1852), que foi publicado em 1836.  O mesmo conto foi retomado por Dimitri Shostakovich (1906-1975) e virou uma ópera, que está no filme. 

A história do nariz que some do rosto de um oficial importante e passa a ter uma vida independente do seu dono leva às peripécias para encontrá-lo, à confusão do barbeiro bêbado que o teria decepado e, enfim, à volta ao rosto original.  E porque tudo isso teria sucedido.

 

O filme recheia essa história com citações de grandes personagens da arte e literatura russas. Além de mostrar a própria criação acontecendo e como teria se dado no passado. E por conta de Shostakovich adentra no reino do terror de Josef Stalin (1878-1953), na União Soviética, que resultou em fuzilamentos em massa de “dissidentes” culturais e políticos.

 

O herói da Segunda Guerra é também o opressor sanguinário e ridículo nessa animação, em que o medo que ele produzia levava ao “consenso” de suas próprias ideias e ao desmaio dos colaboradores diante de suas ordens.  A opressão, à esquerda ou à direita, é sempre um bom mote para o humor libertário.  Um filme de animação muito mais denso e abrangente do que eu poderia esperar. Talvez porque a ideia de animação ainda siga fortemente associada ao mundo infantil.  89 minutos.

@mostrasp



domingo, 25 de outubro de 2020

5 FILMES DA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

 

NOVA ORDEM

NOVA ORDEM, o filme do mexicano Michel Franco, aponta para o grande problema da desigualdade social, do abismo entre as classes e da dificuldade de ascensão social como fatores de disrupção.  Simbolizados num casamento em uma mansão de luxo, frequentada pela elite mexicana, que é atacado e inviabilizado pela invasão de grupos populares em revolta, apoiados pelos próprios empregados da casa.  Essa ação não se restringe ao evento, ela está em toda a cidade, como se vê logo no início do filme, com o colapso do sistema de saúde, gerado pelos feridos de uma guerra civil em andamento.  Mas o que resultará dessa revolta?  Segundo a narrativa de “Nova Ordem”, ela servirá para legitimar um golpe de Estado militar que, por sua vez, dará origem a um sistema opressor muito pior do que o que existia antes.  As chamadas classes populares serão ainda mais reprimidas e sofrerão as consequências de um processo econômico que tutela e destrói empregos, meios de subsistência e sob um domínio político do tipo fascista, sem contestação possível.  A violência se manifesta de todas as formas, em todas as partes, desde o início, aliás, também por parte dos revoltosos oprimidos.  Uma concepção do tipo violência gera mais violência e ainda mais opressão e a resistência alimenta seus algozes, lembrando o que aconteceu no Brasil com a luta armada de resistência à ditadura, que serviu de justificativa para o AI 5 e o endurecimento do regime.  Isso tudo pode indicar que não há saídas reais ou que elas são virtualmente impraticáveis ou impossíveis.  O que seria de um pessimismo atroz, paralisante e destruidor de utopias.  Mas é importante refletir sobre os caminhos, porque frequentemente podemos produzir o contrário do que buscávamos com ações irrefletidas ou impulsivas.  Se isso acontece no plano pessoal, se torna muito mais grave no contexto social e político. O filme tem sequências fortes e violência, mas não se compraz em explorar isso comercialmente.  É até moderado no uso dessa violência, necessária de ser mostrada, em função do que se quer expor, revelar e provocar reflexões.  88 minutos.

 

SIBÉRIA, do diretor estadunidense Abel Ferrara, é um daqueles filmes em que a viagem interior do personagem central é o que importa e não o que possa estar acontecendo com ele em cada sequência que observamos.  O personagem Clint, interpretado por Willem Dafoe, vive isolado numa casa nas montanhas, eventualmente frequentada por viajantes e nativos que nem sequer falam a sua língua.  Grande parte do que se diz, ou dos diálogos, não tem tradução, são incompreensíveis e não importam. No presente, o que se comunica são gestos e ações.  O que vamos acompanhar, por meio de um visual requintado, embora muito escuro em boa parte do filme, é a sua relação com o passado, a infância, os pais, os medos, os sonhos, memórias e delírios apresentados sem qualquer intenção de compreensão lógica ou organizada.  A narrativa é fragmentada, estranha, lúdica até, pedindo do espectador envolvimento com as sensações e com o caráter plástico das imagens.  Belas panorâmicas de neve, mas também de sol e luz, funcionam como contraponto a interiores um tanto lúgubres e elementos aterrorizantes que compõem o cotidiano, também tedioso, da figura retratada. É muito bom cinema, mas exige disposição do espectador de embarcar numa rota um tanto desconhecida, aguardando o que pode surgir daí.  92 minutos.

 


MISS MARX


MISS MARX, da diretora italiana Susanna Nicchiarelli, segue uma narrativa clássica para abordar uma personagem de época: Eleanor Marx, a filha mais nova de Karl Marx.  Como o pai revolucionário, ela, segundo o filme, foi uma feminista nas ideias e na prática.  Nas ideias, ao vincular a questão das mulheres à dos proletários, buscando as convergências e a complementariedade entre socialismo e feminismo.  Na prática, ao viver rompendo com as regras tradicionais, sendo uma mulher forte, decisiva e sem medo de experimentar relações amorosas fora dos ditames do casamento e da família tradicional.  Claro que é uma personagem construída com o olhar feminista de hoje, não do fim do século XIX.  As questões mostradas, sim, se referem à época, como o voto feminino, por exemplo.  A compreensão das situações e o modo de agir são, porém, mais modernos.  Tanto que o final trágico de Eleanor casa pouco com a narrativa desenvolvida ao longo da projeção, no meu modo de ver.  Bem, de qualquer modo, é inevitável que vejamos as figuras do passado com o nosso olhar de hoje.  108 minutos.

 

O documentário CORONATION, do multiartista chinês Ai WeiWei, já traz a Covid-19 para o cinema.  Entramos em contato com a realidade da doença em Wuhan, o primeiro centro difusor da pandemia, por meio de imagens captadas por seus moradores, no período de lockdown da cidade, iniciado em janeiro de 2020.  Grande parte do que o filme trata foi fartamente mostrado também nos nossos telejornais.  No caso chinês, por um lado, vê-se uma atuação intensa e eficiente de gerir a pandemia no que se refere a hospitais de campanha, respiradores, equipamentos de proteção aos profissionais de saúde, uso precoce de máscaras, amplas equipes mobilizadas para enfrentar a questão.  Por outro, o filme mostra que o Estado chinês omitiu informações fundamentais sobre a transmissão do novo Coronavírus. Em busca de notícias positivas, não querendo alarmar a população, impediu que ela soubesse da gravidade da doença e perseguiu quem descumpriu essas regras oficiais.  E o que essa omissão e proibição produziram de efeitos na vida dos familiares envolvidos e na própria expansão da doença para fora da China.  Essa é uma questão política em aberto, que está sendo muito explorada na eleição norte-americana, na discussão das vacinas no Brasil e em outras partes, de acordo com os interesses do momento e não propriamente da ciência ou em função de, realmente, superar essa pandemia.  115 minutos.

 

Outro pequeno filme chinês que também trata da Covid-19 é o curta de 5 minutos, A VISITA, de Jia Zhang-ke.  Aqui é do incômodo das regras sanitárias, a que estamos todos sujeitos, que se trata.  Depois de medir a temperatura, em lugar do aperto de mão, o toque com o cotovelo, o rosto coberto que atrapalha a visão, a fala, a bebida.  E o que se serve hoje em dia é álcool gel.  Enfim, esse jeito estranho de viver, que praticamos atualmente.

 @mostrasp




 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

FILMES DE NOVOS DIRETORES NA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

Entre os filmes de novos diretores, de primeiro ou segundo longas, presentes à 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, comento aqui alguns títulos.

 

MOSQUITO


MOSQUITO, produção portuguesa, dirigida por João Nunes Pinto, nos leva a acompanhar as andanças de um jovem soldado português de 17 anos, que se voluntariou para servir na Primeira Guerra Mundial e acabou perdido em terras moçambicanas, na África.  Partindo desse fato, extraído de uma história verdadeira, referente a um avô do diretor, o filme explora a passagem do real ao alucinatório, e vice-versa, o tempo todo, criando um clima intrigante e dando margem a sequências curiosas, audaciosas, estranhas.  É uma viagem, no sentido lisérgico do termo. 120 minutos.

 

LIMIAR é um média-metragem armênio, de pouco mais de 60 minutos, dirigido por Rouzbeh Akhbbari (iraniano) e Félix Kalmenson (russo).  Assiste-se a um cineasta à procura de sítios históricos, que remetam às origens do povo armênio.  Ele circula por belas locações a pé e de carro, isso favorece planos gerais muito bonitos.  O filme, no entanto, não chega a se realizar como cinema.  É, no máximo, preparação de cinema.  Belo de se ver é.

 

PANQUIACO é um documentário do Panamá, dirigido por Ana Elena Tezera.  Focaliza o Panamá indígena, a partir de um personagem, Cebaldo, que deixou sua terra de origem e foi viver no norte de Portugal.  Mas nunca conseguiu se desligar de sua aldeia natal.  Quando volta, percebe que seu passado já não faz parte de sua história, de sua memória.  Sua alma ficou no rio, mas se perdeu dos antepassados.  Questões assim, mitos, crenças, poesia, entram na narrativa, que segue lentamente em busca do que se perdeu.  85 minutos.

 

Em O PROBLEMA DE NASCER, da Áustria, dirigido por Sandra Wollner, é de relações familiares que se trata.  Vamos assistindo a uma curiosa e talvez estranha ou, quem sabe, incestuosa relação entre pai e filha.  Mas também percebemos que a memória é um divisor de águas entre eles, de um passado que se mostrará traumático.  É que a situação envolve uma androide, o que altera significativamente a nossa percepção inicial.  A ideia é boa, a dificuldade é que o filme é muito escuro, um complicador para assisti-lo no computador.  94 minutos.


SUOR

 

SUOR, ao contrário, é um filme muito claro e colorido sobre Sylvia, uma treinadora de exercícios físicos, influenciadora digital, que vende a alegria, o ritmo, as cores, a boa comida e a boa forma do mundo fitness e tem milhões de seguidores.  Qual é o reverso da medalha, quando ela está desconectada?  Fácil prever, não é?  A felicidade digital é um engodo.  As coisas são mais complicadas do que isso.  Mas o filme não se aprofunda muito na questão.  Produção polonesa, dirigida pelo sueco Magnus von Horn.  105 minutos.

 

APENAS MORTAIS, filme chinês, dirigido por Liu Ze, focaliza a temática do mal de Alzheimer, que abala o cotidiano de uma família e os planos e relacionamentos de seus membros.  É correto ao mostrar o problema e a dramaticidade que ele adquire no contexto, mas não consegue encaminhar a narrativa para um entendimento mais claro de procedimento, soluções, saídas.  Por exemplo, a incontinência urinária e o descontrole das fezes aparecem como situações insuportáveis, insolúveis. No entanto, não se faz uso de fraldas geriátricas, uma saída bastante exequível para diminuir as tensões apresentadas. Até porque não se tratava de uma família sem recursos. 96 minutos.

 


APENAS MORTAIS


AL SHAFAQ – QUANDO O CÉU SE DIVIDE, da Suíça, da diretora Esen Isik, aborda a família Kara, de origem e convicções muçulmanas, vivendo na Turquia e se equilibrando entre diferentes hábitos culturais.  O pai, com seu autoritarismo, e a mãe, sendo protetora, mas sem muita eficiência, compõem o clichê da família, que acaba por produzir a atração no filho mais jovem para o extremismo religioso de guerra.  Quando se dão conta, será tarde.  Aí, a busca do filho pode tomar outros sentidos.  Um pouco mais de nuances poderia ajudar o filme a alcançar dimensões mais sutis do problema.  98 minutos.

@mostrasp



terça-feira, 20 de outubro de 2020

O QUE VER NA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

Quem está fazendo a sua programação de filmes no www.mostra.org para assistir on line, a partir de 5ª. feira, dia 22 de outubro de 2020, na 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, deve ficar atento a diretores importantes, que estão com seus filmes mais recentes em exibição.  É uma forma de garantir qualidade artística ao que se vai assistir.  Nem é o principal aspecto da Mostra, já que ela oferece a oportunidade de garimpar filmes do mundo inteiro e descobrir novos talentos entre diretores estreantes. Mas não se pode perder a chance de ver grandes filmes de grandes diretores.  Mesmo correndo o risco de que alguns nos decepcionem.  Ou a gente reconheça o talento, mas rejeite o estilo.  Por exemplo, a mão pesada, a violência, o próprio tema.  Rechaçar talentos não é uma boa ideia.  Praticar censura ou boicote a artistas reconhecidos, também não.  Que tal experimentar e avaliar com a maior objetividade que for possível?

 

Eu não pretendo perder o novo filme do diretor chinês Jia Zhang-ke, que assina o pôster da Mostra 44: NADANDO ATÉ O MAR SE TORNAR AZUL ou o novo filme do filipino Lav Diaz, GÊNERO, PAN, já que pelo menos desta vez ele reduziu a duração de seus longuíssimos filmes a apenas 157 minutos.  O que é um feito.  Dá para ver, portanto.  Do diretor malaio Tsai Ming Liang podemos conhecer o filme DIAS.  Sinal de que ele não parou de filmar, como ameaçou fazer.  Melhor para nós.  O chileno Andrés Wood traz para a Mostra ARAÑA, o cineasta português João Botelho apresenta O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, o diretor iraniano Majid Majidi, CRIANÇAS DO SOL.  Tem ainda CORONATION, do chinês Ai Wei Wei, o mexicano Michel Franco, com NOVA ORDEM, O CHARLATÃO, da polonesa Agnieszka Holland, SIBÉRIA, de Abel Ferrara, um curta do iraniano Jafar Panahi, ESCONDIDA.

 

Entre os brasileiros há muita coisa, mas eu destacaria o novo filme de Sílvio Tendler, NAS ASAS DA PAN AM, O LODO, de Helvécio Ratton, VERLUST, de Esmir Filho, e GLAUBER, CLARO, de César Meneghetti, entre os que me despertaram mais interesse.

 

Ainda não vi nenhum desses filmes.  São apostas em coisas já consolidadas, baseadas em histórico de cinéfilo e crítico.

 





Cabe agora um pequeno comentário sobre o filme da importante diretora japonesa Naomi Kawase, MÃES DE VERDADE, que já vi.  O trabalho da Naomi é sempre visualmente muito bonito, tem grande sensibilidade no trato dos personagens e um ritmo lento o suficiente, para que possamos nos envolver com a situação relatada ou a história contada.

 

Aqui ela adapta um romance que trata de mulheres, meninas, que não podem levar adiante uma gravidez, em contraponto a casais que querem muito, mas não podem ter filhos.  Acabam buscando a adoção como caminho.  O que liga as duas pontas.  Mas há problemas, especialmente quando as informações sobre quem doou ou quem adotou deixam de ser sigilosas.  E o que é ser mãe, no fim das contas?

 

O tom que Kawase dá para o filme é bem triste, a narrativa se alonga, talvez em demasia, na medida em que muitos desdobramentos são previsíveis, esperados, até.  O tema é muito importante e relevante, sem dúvida.  O conflito apresentado, também.  O tom e o ritmo do filme é  que deixam um pouco a desejar.

@mostrasp

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

ALGUNS FILMES DA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

 

Entre os filmes da chamada Perspectiva Internacional da 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, este ano on line, www.mostra.org,  já posso destacar KUBRICK POR KUBRICK, um documentário que, com certeza, vai deliciar os cinéfilos em geral e os admiradores da obra do cineasta Stanley Kubrick (1928-1999) em particular.

 


KUBRICK



Aqui, a obra de Kubrick é abordada, filme a filme, de “Medo e Desejo” (1953) a “De Olhos Bem Fechados” (1999).  Passando, claro, por “Spartacus” (1960), Lolita (1962), “Dr. Fantástico” (1964), “2001, Uma Odisseia no Espaço” (1968), “Laranja Mecânica” (1971), “Barry Lyndon” (1975), “O Iluminado” (1980), “Nascido Para Matar” (1987) e outros.  Um grande legado, que vai sendo comentado pelo próprio diretor, em diferentes entrevistas ao crítico francês Michel Ciment, um dos poucos que teve esse acesso privilegiado a um artista que detestava dar declarações e entrevistas sobre seus filmes.  Portanto, um material raro.  Complementado pelo acervo da família, com comentários de quem trabalhou com ele, como intérprete, técnico, fotógrafo, músico, etc. Permite que se faça uma radiografia eficiente do trabalho e da busca desse criador em dialogar com aquilo que o mobilizava diante do mundo, a partir das obras literárias que ele apreciava e levava às telas.  De uma perspectiva autoral muito evidente e com uma capacidade de inovar nos mais diversos gêneros, do melodrama ao filme de guerra, da ficção científica ao terror, do filme de época ao futurista.  Um belo trabalho do diretor francês Gregory Monro, condensado em 73 minutos muito bem aproveitados.

 

COZINHAR, F*DER, MATAR, da República Tcheca, dirigido por Mira Fornay, é uma provocação interessante.  Começa fazendo relações de uma coisa que leva a outra, sem ter nada que ver uma com a outra.  E vai por essa toada surreal o tempo todo, experimentando diferentes versões de uma situação que tem por base o desencontro no casamento.  O próprio protagonista transita entre os gêneros.  Muitas inversões e revisões acompanham uma narrativa que não chega a ser caótica, porém é confusa.  Mas também, divertida, ao longo de seus 116 minutos. 

 

Entre os filmes de Novos Diretores, realizando seu primeiro ou segundo longa, dá para indicar LUA VERMELHA, da Espanha, de Lois Patiño, de narrativa bastante lenta e rarefeita, ao se situar numa vila da costa da Galícia, parada no tempo.  Aqui o mar é o o monstro, Rúbio, o marinheiro desaparecido, um fantasma, onipresente nas histórias que envolvem sangue, o que é incorporado pela lua vermelha.  Ou seja, cinema fantástico, com toques sobrenaturais, em alto grau. O clima é de poesia e de contemplação. O principal mérito do filme é a beleza plástica da fotografia.  Que pode se perder um pouco, na tela do computador.  84 minutos.



LUA VERMELHA


 

Um outro trabalho interessante vem da Índia, dirigido por Balaji Vembu Chelli, O TREMOR.  Em econômicos 71 minutos, conta a história de um fotojornalista jovem que, ao receber a missão de cobrir um terremoto numa pequena vila distante, vê suas chances de se destacar na profissão.  Acompanhamos sua longa viagem de carro por belas locações de natureza, que já valem a nossa atenção, enquanto ele procura o terremoto que parece não querer se mostrar.  Ao contrário do que se vê muito na produção de Bollywood, um filme simples, discreto, sem música ou dança, nem roupas extravagantes. Modesto, mas legal.

 

O documentário 17 QUADRAS, estadunidense, de Davy Rothbart, retrata o que acontece a uma família negra, vivendo numa região perigosa de Washington, D.C., que se situa a 17 quadras do Capitólio, em que um assalto resulta na morte de um jovem promissor, aos 19 anos. Ele filmava cenas familiares e a realidade nada fácil da pobreza e do preconceito.  Sua morte muda o rumo de toda a família.  Mas as gravações prosseguem ao longo de muitos anos, o que permite entender a saga familiar por gerações.  Essa realidade particular não deixa de ser representativa de uma nação em crise, como revelam os problemas raciais atuais nos Estados Unidos.  É mais um trabalho de diretor novo, que vale conferir.  95 minutos.

@mostrasp



sábado, 17 de outubro de 2020

# 44 MOSTRA ON LINE

Antonio Carlos Egypto

 

Mais de 40 anos acompanhando a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nunca imaginei que pudesse assisti-la toda de casa.  Pois é, a 44ª. Mostra, de 22 de outubro a 04 de novembro de 2020, será praticamente toda on line,.  As exceções vão por conta das exibições drive in no Memorial da América Latina e na unidade Sesc Parque D. Pedro II. 

 

Parece cômodo cobrir a Mostra sem sair de casa, mas não é.  As interferências são muitas, das oscilações na Internet ao eventual corte momentâneo de energia.  O telefone, o interfone e notificações de celular que ocorrem junto com outras intercorrências domésticas, o que é quase impossível impedir, por mais que você se esforce e a esposa ajude.  Problemas na plataforma de acesso também podem ocorrer.  Enfim, não dá mesmo para ter controle sobre todas as coisas.

 

O importante é que, com pandemia e tudo, a Mostra 44 está aí, com a qualidade que já conhecemos de longa data, e continua impossível de ser conhecida por inteiro, como também sempre aconteceu.  Estão na Mostra deste ano, on line, 198 filmes, de 71 países, distribuídos por várias seções.  A competição de novos diretores busca revelar grandes talentos entre os que estão fazendo o seu primeiro ou segundo filme.  A perspectiva internacional traz filmes de todos os cantos, em especial os que foram premiados ou passaram pelos grandes festivais de cinema do mundo.  A Mostra Brasil é dedicada ao nosso cinema.  Apresentações especiais, como a homenagem póstuma ao diretor brasileiro Fernando Coni Campos (1933-1988), com a exibição de 3 longas.  Além disso, os prêmios Humanidade, que serão entregues aos funcionários da Cinemateca Brasileira e ao documentarista Frederick Wiseman.  O prêmio Leon Cakoff, conferido à produtora Sara Silveira, e o Fórum Mostra, que promove encontros e debates, também virtuais, completam o evento.

 

Sesc-SP, Itaú Cultural, SpCine e CPFL participam ativamente da promoção e exibição dos filmes e estão entre os patrocinadores, ao lado dos órgãos governamentais e da mídia, parceiros constantes da Mostra.  O pôster é assinado pelo grande diretor chinês Jia Zhang-ke, de muitos filmes já exibidos na Mostra e nos cinemas brasileiros.

 



Para conhecer a seleção da Mostra 44, colher informações e assistir aos filmes é preciso entrar no site www.mostra.org.  Lá estão as plataformas Mostra Play, Sesc Digital e SpCine Play, para a realização de cadastro, a partir do dia 22 de outubro.

 

Com a primeira aquisição de ingressos, o espectador criará sua biblioteca e terá até 3 (três) dias para assistir a estes filmes escolhidos.  A partir do momento em que acessar cada um dos filmes, terá o prazo de 24 horas para vê-lo.  E pode adquirir novos títulos durante todo o período da Mostra.  Nem todos estarão disponíveis imediatamente para serem alugados.  Uma parte deles entra na segunda semana da Mostra, a pedido dos produtores.  Cada filme tem um limite de 1000 (mil) visualizações.  O custo é de R$6,00 (seis reais) por filme, ou será gratuito, dependendo da plataforma em que esteja incluído.

 

É uma boa oportunidade, aberta a todos, de todos os lugares, para entrar em contato com um cinema menos comercial, mais autoral e, sobretudo, com uma grande abrangência geográfica.  É sempre possível ver que bom cinema pode ser feito em qualquer lugar do mundo, por mais distante que esteja dos grandes centros produtores, ainda que assolado por ditaduras, perseguições, guerras.  O cinema costuma superar essas barreiras, como vai sobreviver à pandemia que o tirou momentaneamente de cena.  A realização da Mostra 44 on line é mais uma prova disso.  Parabéns à Renata de Almeida e à sua diligente equipe por mais essa realização e num momento tão importante como esse.  Resiliência é tudo nessa hora.

@mostra.sp



quinta-feira, 15 de outubro de 2020

CINEMA...EM CASA (5)

Antonio Carlos Egypto

 

Ficar em casa por um longo tempo, organizando toda a vida a partir disso, é um desafio que a conjuntura nos impõe.  Gostemos ou não.  E quem tem que sair para trabalhar fica mais exposto.  Há quem curta a ideia de uma reclusão, outros saem, não porque precisem, mas porque não conseguem suportar o isolamento ou a solidão.  E há os tolos, que simplesmente negam uma pandemia, que já matou mais do que várias guerras somadas.  Embora, para muitos, os sintomas nem existam, ou sejam leves, e a cura se resuma a um isolamento temporário, sem necessidade de hospitalização.  Seja como for, a necessidade de permanecer em casa é evidente, se pensarmos em termos coletivos.  Só é possível controlar este vírus dificultando a sua circulação, dado o potencial de contaminação que ele tem.  Até que venha a vacina, pelo menos.

 

Vai daí que a gente, quando fica muito em casa, acaba percebendo que o essencial para a vida resume-se a poucas coisas. Nada a ver com o consumismo tão fundamental para a roda do capitalismo girar, gerando necessidades o tempo todo.  E percebemos o quanto essa criação artificial de necessidades compromete a vida no planeta.  Será que aprenderemos a reconhecer e valorizar o que é essencial e a dispensar tantas coisas supérfluas?

 


LIMITE


Percebi que, em várias escolhas de filmes em DVD que separei para assistir na temporada de quarentena, há muito mais filmes essenciais do que atuais.  E que pode ser muito importante rever filmes antigos e históricos. Por exemplo, revi dois filmes brasileiros essenciais: “Limite” (1931), de Mário Peixoto, e “A Hora da Estrela”, (1986), de Suzana Amaral.


O mítico “Limite”, produção do cinema silencioso que ficou desaparecido por muitos e muitos anos, é uma obra cinematográfica poderosa.    Com grande apuro estético, preciosos enquadramentos, cenas que alternam placidez e tédio, com movimentações vertiginosas de câmera de grande impacto, é um filme experimental extremamente atraente e bem sucedido.  Que parte de uma história simples, três náufragos, um homem e duas mulheres, em um barco perdido no oceano, contando suas histórias e enfrentando uma tempestade.

 

A beleza das imagens nos retrata essa situação humana-limite, carregada de conflitos e relacionamentos-problema, num filme extraordinário.  A Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema – realizou um debate e votação entre todos os seus críticos, espalhados pelo Brasil, e escolheu “Limite” como o melhor filme brasileiro de todos os tempos.  Não foi o meu voto, mas reconheço a importância que o filme tem.

 

Meu DVD desse filme veio da Cinemateca Brasileira, que hoje enfrenta um criminoso bloqueio de suas atividades, essenciais à memória do nosso cinema, por parte de um governo que destrói tudo, da educação à Amazônia, das relações internacionais à saúde do seu povo e, de forma sistemática, a cultura.

 

“A Hora da Estrela”, filme de Suzana Amaral, recentemente falecida, com base em crônica de Clarice Lispector, aborda com grande sensibilidade a vida de uma brasileira que quase não existe, não tem qualquer importância para outros, não consegue manter um emprego muito simples e mal remunerado.   Vive subnutrida e maltratada.  Sem amor.  É um retrato maravilhoso da realidade dos que estão na base da pirâmide, vivendo de teimosos.  Essa não-cidadã é vivida com maestria por Marcélia Cartaxo, ao lado de um belo elenco que tem José Dumont, Fernanda Montenegro, Tamara Taxman e Umberto Magnani.  Deu margem à realização de uma obra fundamental, cruel e única.  O DVD, da Versátil, faz parte da coleção Folha “Grandes Livros no Cinema”.

 


A HORA DA ESTRELA


Também revi o documentário “O Sal da Terra, Uma Viagem com Sebastião Salgado”, de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado, filho do retratado.  O filme é um mergulho na figura humana e na obra excepcional do fotógrafo Sebastião Salgado e traz profundas reflexões sobre questões sociais pungentes, o meio ambiente, a nossa existência no planeta e a esperança de ainda encontrarmos soluções para o nosso mundo.  Um belo trabalho, de 2014, lançado em DVD pelo selo SESC.

 

Aproveitei, ainda, a programação de documentários da TV Cultura, aos sábados, para ver “Guarnieri”, filme de 2017, de Francisco Guarnieri, neto do grande autor e ator do teatro, do cinema e da TV, Gianfrancesco Guarnieri, de “Eles Não Usam Black-Tie” e “Arena Conta Zumbi”.  O documentário mostra a ação artística e política dele, sua relação com os filhos, netos e outros familiares, em que se destacam a luta pela causa, artística, cultural e política, de resistência à ditadura militar e as suas convicções socialistas.

 


ADONIRAN


Ainda na programação da TV Cultura, me deleitei com “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”, de 2018, de Pedro Serrano.  A figura e a obra de Adoniran Barbosa, sua enorme importância para a música e a cultura, paulista e brasileira, se sobressaem de tal modo que não deixam margem a dúvida quanto ao seu talento e genialidade.  Na base do samba e da brincadeira, ele vai exercendo a difícil arte de falar errado e nos dizendo coisas como esta: “Pobre quando come galinha, ele está doente, ou a galinha”, no papel de Charutinho.  Ao lembrar da saudosa maloca, nos remete ao drama social dos sem-teto.  Está tudo lá, mas agora chega.  Não posso ficar mais com vocês, senão perco o trem das 11 para o Jaçanã e minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.  Tchau!