segunda-feira, 27 de abril de 2015

CASA GRANDE


Antonio Carlos Egypto




CASA GRANDE.  Brasil, 2014.  Direção: Felipe Barbosa.  Com: Marcello Novaes, Suzana Pires, Thales Cavalcanti, Clarissa Pinheiro, Marília Coelho, Bruna Amaya.  115 min.


O cinema brasileiro tem sido pródigo em retratar a realidade dos pobres, dos miseráveis, dos excluídos, dos perseguidos, dos que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos.  E desde o Cinema Novo esquadrinhou as questões da vida no campo, da luta pela terra, da violência e do misticismo.  Mas, ao contrário do cinema argentino, que habitualmente se debruça em tratar da classe média, por aqui isso é raro.  Mais raro ainda, quando se trata de abordar com seriedade a realidade dos ricos, especialmente seus conflitos e agruras.




“Casa Grande” mira o seu olhar para essa classe social, a partir da figura de um adolescente superprotegido, que, acostumado a todo o conforto de sua casa e do acesso a todo tipo de facilidades e consumo, tem de conviver com a derrocada econômica da família, nunca expressada claramente.  E, aos 17 anos, em vias de prestar vestibular, a buscar sua própria afirmação como homem e seu caminho autônomo.

Ao retratar a trajetória do rapaz, o filme faz uma radiografia das relações que permeiam a vida de sua família e o que está envolvido na riqueza e na decadência dela.  O que ocupa e aflige cada membro da família também revela o seu determinante social e histórico.  O patriarcado, a anulação da figura feminina, o espírito escravocrata que marca a relação de subserviência e paternalismo junto aos empregados, o autoritarismo, negócios escusos que estão na origem do padrão de vida nababesco, a penalização dos outros ou a socialização dos prejuízos como meio de lidar com o declínio e a manutenção da falsa aparência, na tentativa de negar as evidências, são elementos constitutivos da narrativa.




Mais do que contar histórias, “Casa Grande” é um painel de uma classe social abastada, no discurso e nas ações reveladoras dos valores, expressos e sonegados, que a movem.  O título do filme não se refere apenas ao casarão onde vive a família, mas ao contraponto indispensável da senzala, que possibilita a casa grande e lhe dá subsistência. 

Um assunto é tratado com mais relevo e destaque em duas cenas importantes do filme: o das cotas para negros na universidade, no contexto de políticas compensatórias e reparadoras de injustiças sociais históricas e de desigualdades gritantes, como também é o caso do Bolsa Família.  A discussão chega a ser didática, mas me parece oportuna porque está permeando, de fato, as preocupações dos personagens da trama.  Aliás, nada no filme me parece gratuito.  Tudo tem relevância na vida daquelas pessoas.  Mesmo que, vendo-se de fora, possa não parecer assim.  Esse é um dos maiores méritos do filme: o retrato fiel de uma realidade mais ampla, mostrado por meio da ficção, em personagens particulares.  O roteiro está muito bem construído e a escolha das cenas, muito adequada.  Não se percebem grandes faltas nem excessos.




O elenco, de modo geral, dá conta do recado, apesar de uma certa irregularidade nos desempenhos.  Sem maior brilho, mas a média é boa, realiza a proposta do filme.

Felipe Barbosa, diretor e roteirista carioca em seu primeiro longa de ficção, demonstra inegável talento e senso de oportunidade, a partir de uma experiência que inclui muito de autobiográfico.



quarta-feira, 22 de abril de 2015

NÃO OLHE PARA TRÁS


Antonio Carlos Egypto




NÃO OLHE PARA TRÁS (Danny Collins).  Estados Unidos, 2014.  Direção e roteiro: Dan Fogelman.  Com Al Pacino, Annette Bening, Jennifer Garner, Bobby Cannavale, Christopher Plummer.  103 min.


“Não Olhe Para Trás” tem uma história sedutora, um ator de se tirar o chapéu, Al Pacino, e remete a um ídolo marcante da história da música popular e importante referência comportamental de sua época, John Lennon.  Com elementos como esses, é de se esperar que o filme alcance sucesso junto ao público.

A história é apresentada no filme como um pouco baseada em fatos reais.  Não sabemos, ao certo, qual é esse pouco.  Provavelmente, o mote da trama.  E qual é ele?  Steve Tilson, um cantor folk inglês de sucesso teria recebido uma carta manuscrita de John Lennon, que só  chegou  às suas mãos quase quatro décadas depois.  Datada dos anos 1970, só teria sido entregue a ele em 2010.




No filme “Não Olhe Para Trás”, o cantor de sucesso é convertido no roqueiro Danny Collins (Al Pacino), que há trinta anos repete as mesmas músicas de apelo comercial em grandes turnês, já que não conseguiu produzir mais nada de novo, desde então.  Sua carreira sempre lhe deu muito dinheiro, mas agora se tornou de uma mesmice insuportável, sendo seu público composto por pessoas maduras e idosos saudosistas, ainda capazes de se divertir com as amenidades e infantilidades das letras de sucesso de Danny.

Aí entra a carta de Lennon, que transforma não só a carreira desse cantor como sua vida pessoal, incluindo as relações com um filho que abandonou solenemente em nome da trajetória musical.  Esse filho, já casado, lhe nutre ódio, sua nora o estranha, mas sua neta o recebe alegremente.  Reconstruir essa vida familiar renegada será um enorme desafio.




Mudar os rumos da carreira após tantos anos construindo uma imagem popularesca também será tarefa complicadíssima.  Será tarde demais para corresponder a palavras de incentivo e cobrança ética de John Lennon?  E fica a inevitável questão: como teria sido a vida de Danny Collins se tivesse recebido aquela carta na época em que foi escrita?

Há espaço para uma tentativa de Danny de conquistar uma mulher que lhe interessou quando mudou seu rumo de vida.  É o papel de Annette Bening, outro destaque do elenco.  E o grande e veterano Christopher Plummer aparece muito bem no papel de agente e antigo amigo do cantor.  Mas o que o filme tem de melhor é, mesmo, o desempenho de Al Pacino.  Ele relativiza as cenas melodramáticas, dá credibilidade à virada de vida do personagem, transmite humor e simpatia.  A gente até acredita mesmo que ele cante e encante plateias com sua música.  Sem ele, o filme não iria muito longe, ou poderia se tornar inverossímil, já que a história é atraente, mas esdrúxula.  E seus desdobramentos, mera especulação.




A música marcante de Lennon também aparece no filme, em doses modestas.  Mas o suficiente para agradar o público que for ver o filme também por causa do apelo que o grande Beatle até hoje continua exercendo.

  

segunda-feira, 20 de abril de 2015

AS MARAVILHAS


Antonio Carlos Egypto




AS MARAVILHAS (Le Maraviglie). Itália, 2014.  Direção e roteiro: Alice Rohrwacher.  Com Maria Alexandra Lungu, Sam Lonwyck, Alba Rohrwacher, Saline Timoteo, Monica Bellucci.  111 min.



“As Maravilhas” é um filme que vai interessar àqueles que gostam de observar tipos humanos, complexos, algo indecifráveis ou mesmo simbólicos.  Figuras que circulam por ambientes tão concretos quanto etéreos, tão realistas quanto sonhadores.  O filme explora contrastes tanto nas condições objetivas de vida, em face das fantasias, quanto nas expectativas e desejos, dentro de cada personagem.




Há apenas um fio de história no universo de uma família em zona rural longínqua da Itália, vivendo harmonicamente da apicultura.  Tudo está no lugar, na visão do pai, naquela unidade produtiva que faz da simplicidade e do mel, meticulosamente cuidado, seu honesto e respeitado ganha-pão.  Já para a mãe e suas filhas talvez falte fantasia e, principalmente, sonhos e perspectivas de futuro.  Caberia ainda providenciar uma ajuda masculina para o trabalho, o que surgirá de uma figura adolescente, em conflito com a lei, com quem não é possível se comunicar pela fala.  Mas ele tem força, colabora e assobia muito bem.  Há todo um mistério em torno dele.  Está aí uma presença capaz de modificar a estrutura de vida dessa família, em algum nível.

Mas será uma equipe de TV aparecendo para filmar por lá, explorando as belezas naturais do lugar e tendo à frente  Milly (Monica Bellucci), uma mulher encantadora, estranha e misteriosa, que irá sacudir a vida das mulheres daquela família.  Em especial, a de Gelsomina (Maria Alexandra Lungu), a jovem trabalhadora que nutre anseios por uma vida com horizontes mais amplos do que os que sua aldeia pode oferecer.  A TV traz até elas “A Ilha das Maravilhas”, uma  sedutora competição com prêmios, que supostamente respeita e valoriza as comunidades que exibe no programa.




Há maravilhas na simplicidade da vida com as abelhas, integrada à natureza, e na fantasia glamourosa que a TV representa, irrompendo sem avisar na vida das pessoas.  Ou o encantamento sempre se desfaz quando a câmera se aproxima reveladora?  Ainda existe espaço para um mundo intocado, puro e isolado ou esta é também uma fantasia destinada a se desfazer?




“As Maravilhas”, com roteiro e direção da jovem toscana Alice Rohrwacher, em seu terceiro filme, foi o vencedor do grande prêmio do Júri do Festival de Cannes 2014.  Não se destina ao entretenimento, nem tem comunicação fácil ou atraente com o grande público, por sua narrativa e personagens não convencionais, além do clima estranho e seco por onde circulam as figuras humanas ali retratadas.  Explora ambiguidades e incertezas que tendem a incomodar quem for buscar linearidades.  Mas é um belo filme.

  

sábado, 11 de abril de 2015

AMOR À PRIMEIRA BRIGA


Antonio Carlos Egypto




AMOR À PRIMEIRA BRIGA (Les Combattants).  França, 2014. Direção: Thomas Cailley.  Com Adèle Haenel, Kévin Azaïs, Antoine Laurent, Brigitte Roüan, William Legbhil. 98 min.


Dizer que “Amor à Primeira Vista” é uma história de amor em que opostos se atraem e o improvável acontece entre dois jovens, Arnaud (Kévin Azaïs) e Madeleine (Adéle Haenel) que, aparentemente, não teriam nada a ver um com o outro, seria sugerir algo pouco original, previsível e que beira o clichê.  No entanto, o filme do diretor francês estreante Thomas Cailley (também roteirista em parceria com Claude Le Pape), está bem distante disso.  Ele tem um roteiro muito bem estruturado, uma pegada firme que explora situações dramáticas e cômicas com a mesma eficiência e escapa completamente dos clichês.




O que mais contribui para isso é a construção dos personagens, inteligente e surpreendente.  Que amplia e subverte a questão de gênero.  Mulheres têm o direito de serem rudes, agressivas, dominadoras, teimosas, obcecadas, atraídas pelo combate e pelo desafio às capacidades físicas, mas, como esses comportamentos são atribuídos socialmente ao gênero masculino, um personagem feminino que reúna todas essas características soa como novidade.  Se fossem apenas uma ou duas características desse tipo e em destaque, seria mais naturalmente assimilável.  Mas não há como negar que o conjunto de atributos que fazem parte da personalidade de Madeleine produzem estranheza.

O personagem Arnaud, por seu lado, é um rapaz tranquilo, pacífico, pouco competitivo, com uma sensibilidade e um trato com as pessoas educado e até refinado.  Ele incorpora um conjunto de atitudes que o fazem mais “feminino” do que a média dos homens.  Não é gay nem afeminado, mas sua masculinidade se apresenta de forma mais sutil, sem alarde.  Colocado ao lado de Madeleine, o contraste se evidencia mais.




As diferenças entre os dois personagens, além de não serem intransponíveis, mostram que os universos do masculino e do feminino podem ser ampliados, com vantagens para os dois gêneros.  É preciso talento para conduzir uma história de amor com personagens assim, sem cair não apenas no clichê, mas também na obviedade ou no didatismo.  Thomas Cailley consegue isso.

É bom lembrar que as relações desses personagens tratam também de sobrevivência e não apenas de amor e desejo.  O que torna a trama mais curiosa e interessante.  Trata-se de um combate que inclui um embate não só com o outro, mas consigo mesmo e a respeito do que se sente.  Por isso, o título original do filme é “Les Combattants” (“Os Combatentes”). O título brasileiro “Amor à Primeira Briga” não é absurdo, remete a uma cena importante do início da narrativa, contudo, sugere algo bem mais banal do que aqui se pretende.




Os prêmios que o filme recebeu em várias categorias da Quinzena de Realizadores no Festival de Cannes 2014 são um reconhecimento da qualidade do trabalho apresentado.  Merecidos.

  

domingo, 5 de abril de 2015

MANOEL DE OLIVEIRA (1908-2015)




Antonio Carlos Egypto

Faleceu nesta semana o grande mestre português do cinema, aos 106 anos.  Seu último filme, lançado no ano passado, foi o curta “O Velho do Restelo”, inspirado em Camões.  Ele acalentava um projeto que muito nos honraria que tivesse conseguido  realizar: pretendia filmar “A Igreja do Diabo”, um conto de Machado de Assis, com Fernanda Montenegro e Lima Duarte no elenco.  Mas o tempo é finito, mesmo quando a morte se mostra generosa na espera.  É que os desejos humanos não se esgotam enquanto a vida pulsar com intensidade.  Foi o caso do mestre Manoel.

O Cinema com Recheio falou de Manoel de Oliveira em diversas oportunidades.  Se você não viu, veja agora, clicando em um ou mais dos links abaixo:

MANOEL DE OLIVEIRA: REALIZADOR CENTENÁRIO

O GEBO E A SOMBRA

MANOEL DE OLIVEIRA: UMA HISTÓRIA DO CINEMA

O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA

SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA