Antonio Carlos Egypto
Ficar em casa por um longo tempo,
organizando toda a vida a partir disso, é um desafio que a conjuntura nos
impõe. Gostemos ou não. E quem tem que sair para trabalhar fica mais
exposto. Há quem curta a ideia de uma
reclusão, outros saem, não porque precisem, mas porque não conseguem suportar o
isolamento ou a solidão. E há os tolos,
que simplesmente negam uma pandemia, que já matou mais do que várias guerras
somadas. Embora, para muitos, os
sintomas nem existam, ou sejam leves, e a cura se resuma a um isolamento
temporário, sem necessidade de hospitalização.
Seja como for, a necessidade de permanecer em casa é evidente, se
pensarmos em termos coletivos. Só é
possível controlar este vírus dificultando a sua circulação, dado o potencial
de contaminação que ele tem. Até que
venha a vacina, pelo menos.
Vai daí que a gente, quando fica muito
em casa, acaba percebendo que o essencial para a vida resume-se a poucas
coisas. Nada a ver com o consumismo tão fundamental para a roda do capitalismo
girar, gerando necessidades o tempo todo.
E percebemos o quanto essa criação artificial de necessidades compromete
a vida no planeta. Será que aprenderemos
a reconhecer e valorizar o que é essencial e a dispensar tantas coisas
supérfluas?
Percebi que, em várias escolhas de
filmes em DVD que separei para assistir na temporada de quarentena, há muito
mais filmes essenciais do que atuais. E
que pode ser muito importante rever filmes antigos e históricos. Por exemplo,
revi dois filmes brasileiros essenciais: “Limite” (1931), de Mário Peixoto, e
“A Hora da Estrela”, (1986), de Suzana Amaral.
O mítico “Limite”, produção do cinema silencioso que ficou desaparecido por muitos e muitos anos, é uma obra cinematográfica poderosa. Com grande apuro estético, preciosos enquadramentos, cenas que alternam placidez e tédio, com movimentações vertiginosas de câmera de grande impacto, é um filme experimental extremamente atraente e bem sucedido. Que parte de uma história simples, três náufragos, um homem e duas mulheres, em um barco perdido no oceano, contando suas histórias e enfrentando uma tempestade.
A beleza das imagens nos retrata essa
situação humana-limite, carregada de conflitos e relacionamentos-problema, num
filme extraordinário. A Abraccine –
Associação Brasileira de Críticos de Cinema – realizou um debate e votação
entre todos os seus críticos, espalhados pelo Brasil, e escolheu “Limite” como
o melhor filme brasileiro de todos os tempos.
Não foi o meu voto, mas reconheço a importância que o filme tem.
Meu DVD desse filme veio da Cinemateca
Brasileira, que hoje enfrenta um criminoso bloqueio de suas atividades,
essenciais à memória do nosso cinema, por parte de um governo que destrói tudo,
da educação à Amazônia, das relações internacionais à saúde do seu povo e, de
forma sistemática, a cultura.
“A Hora da Estrela”, filme de Suzana
Amaral, recentemente falecida, com base em crônica de Clarice Lispector, aborda
com grande sensibilidade a vida de uma brasileira que quase não existe, não tem
qualquer importância para outros, não consegue manter um emprego muito simples
e mal remunerado. Vive subnutrida e
maltratada. Sem amor. É um retrato maravilhoso da realidade dos que
estão na base da pirâmide, vivendo de teimosos.
Essa não-cidadã é vivida com maestria por Marcélia Cartaxo, ao lado de
um belo elenco que tem José Dumont, Fernanda Montenegro, Tamara Taxman e
Umberto Magnani. Deu margem à realização
de uma obra fundamental, cruel e única.
O DVD, da Versátil, faz parte da coleção Folha “Grandes Livros no
Cinema”.
Também revi o documentário “O Sal da
Terra, Uma Viagem com Sebastião Salgado”, de Wim Wenders e Juliano Ribeiro
Salgado, filho do retratado. O filme é
um mergulho na figura humana e na obra excepcional do fotógrafo Sebastião
Salgado e traz profundas reflexões sobre questões sociais pungentes, o meio
ambiente, a nossa existência no planeta e a esperança de ainda encontrarmos
soluções para o nosso mundo. Um belo
trabalho, de 2014, lançado em DVD pelo selo SESC.
Aproveitei, ainda, a programação de
documentários da TV Cultura, aos sábados, para ver “Guarnieri”, filme de 2017,
de Francisco Guarnieri, neto do grande autor e ator do teatro, do cinema e da
TV, Gianfrancesco Guarnieri, de “Eles Não Usam Black-Tie” e “Arena Conta
Zumbi”. O documentário mostra a ação
artística e política dele, sua relação com os filhos, netos e outros
familiares, em que se destacam a luta pela causa, artística, cultural e
política, de resistência à ditadura militar e as suas convicções socialistas.
Ainda na programação da TV Cultura, me
deleitei com “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”, de 2018, de Pedro
Serrano. A figura e a obra de Adoniran
Barbosa, sua enorme importância para a música e a cultura, paulista e
brasileira, se sobressaem de tal modo que não deixam margem a dúvida quanto ao
seu talento e genialidade. Na base do
samba e da brincadeira, ele vai exercendo a difícil arte de falar errado e nos
dizendo coisas como esta: “Pobre quando come galinha, ele está doente, ou a
galinha”, no papel de Charutinho. Ao
lembrar da saudosa maloca, nos remete ao drama social dos sem-teto. Está tudo lá, mas agora chega. Não posso ficar mais com vocês, senão perco o
trem das 11 para o Jaçanã e minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Tchau!
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