ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL
CHEGAR. Brasil, 2018. Documentário.
Direção e roteiro: Marcelo Gomes.
85 min.
“Cinema, Aspirinas e Urubus”, 2005, primeiro
longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes, está para mim entre as
melhores produções brasileiras do século XXI.
“Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, 2009, dirigido por Marcelo Gomes e Karim Ainouz , é um filme
experimental brilhante e um dos produtos mais criativos da nossa filmografia
recente. O que recomenda vivamente o
trabalho do cineasta. Marcelo Gomes fez
ainda “Era Uma Vez Eu, Verônica”, 2012, e “Joaquim”, 2017, e codirigiu com Cao
Guimarães “O Homem das Multidões”, 2013.
Uma trajetória bastante sólida e consistente.
Seu novo trabalho, “Estou Me Guardando Para
Quando o Carnaval Chegar”, peca pelo título quilométrico, que remete a uma
música de Chico Buarque. No entanto, é
um documentário com uma abordagem simples, clara e direta, que dá conta de uma
realidade bem mais complexa do que a sua aparência faria supor e alcança uma
dimensão reflexiva surpreendente.
Como um filme que se constrói ao caminhar
sobre o tema e ao encontrar elementos novos a cada passo, a narrativa se
estabelece à medida em que é capaz de ouvir o outro com atenção e, de algum
modo, interagir, participar e intervir
no seu objeto de estudo.
O personagem do documentário é a cidade de
Toritama, no Agreste de Pernambuco, que era uma localidade pacata, que Marcelo
Gomes conheceu quando criança, acompanhando seu pai em visitas de
trabalho. Era, não é mais. Foram justamente a agitação e as mudanças em
Toritama, visíveis ao passar pelas estradas locais, que chamaram a atenção
dele. Agora Toritama se define como a capital
do jeans, 20% de toda a produção de jeans do Brasil vem de lá,
cerca de 20 milhões de peças por ano produzidas em fábricas de fundo de
quintal, que são chamadas de facções. É
surpreendente que uma cidade com 40.000 habitantes tenha uma produção assim tão
grande para ostentar. E por que isso
acontece? Em síntese, porque tudo que se
faz lá, o tempo inteiro, é trabalhar.
Cada casa ou conjunto delas vira uma oficina de costura individual ou
coletiva. Quase todos parecem preferir
trabalhar por sua conta e risco, como e quando quiser, sem carteira assinada na
fábrica. Com a certeza de que o que
produzirem vai ser comprado. Ou porque
já foi combinado ou porque vai ser vendido nas grandes feiras que atraem
público de todos os cantos.
Como mais peças ou partes de peças costuradas
resultam em pequenas quantidades de dinheiro, quanto mais se faz mais se ganha.
Conclusão, a maioria dos moradores/produtores da cidade trabalha continuamente
desde cedo até tarde da noite. Em casa
mesmo, sem horário. Ou melhor, sem
horário para viver, só para trabalhar, comer e dormir, com direito a uma hora
de TV, provavelmente para ver a novela. Uma espécie de escravidão não só
consentida, mas buscada pela população.
Que dela não se queixa, com poucas exceções. Acha que está muito bom assim, sente-se livre
e dona do seu nariz. Ou melhor, do seu
negócio. Muito curioso esse microcosmo
do capitalismo que toma de assalto e transforma radicalmente uma pequena
localidade, que já não tem espaço nem para criar galinhas ou fazer caminhar os
bodes que restaram pela cidade, cruzando a rodovia.
Se isso parece estranho e surpreendente, o que
dizer da obsessão absoluta de toda a população em, obrigatoriamente, passar o
Carnaval na praia? Custe o que custar,
ninguém fica, todos saem para tomar banhos de mar, beber, fazer alguma
fantasia, batucar e dançar no Carnaval.
Se não tiver dinheiro, vende o que tem – fogão, geladeira – ou toma
emprestado, para depois pagar ou recomprar o que vendeu. O que não pode é perder o Carnaval.
Marcelo Gomes filmou a cidade nos dias de
Carnaval e só então reencontrou o silêncio e as ruas vazias do seu tempo de
criança. O mundo do trabalho e o do lazer
(ou férias) se colocam em oposição.
Oposição não é bem a palavra.
Talvez espaço e tempo estanques, separados. Trabalho todo o tempo. Parada no Carnaval, fora da cidade, como
obrigação incontornável. Trabalho parece
ser só dinheiro e o dinheiro vira uma dependência, é só ele que importa. Prazer no período mágico do Carnaval, tratado como
obrigação tanto quanto a atividade produtiva. Mas há também prazer no trabalho
e nos resultados obtidos. Por que não é possível integrá-los, mesclá-los,
equilibrar algumas coisas, diante da obsessão em fabricar cada vez mais e mais
e obter o dinheiro desejado?
Fico pensando nos mecanismos da Internet –
e-mails, WhatsApp, outras redes sociais – nos tomando um tempo absurdo de
trabalho não remunerado, quando a tecnologia teria de ter vindo para nos poupar
tempo e permitir o ócio criativo. Parece
que também aqui nos deixamos escravizar com gosto, ou simplesmente o esquema
nos engole. Isso também tem a ver com
abdicar da liberdade para seguir um salvador da pátria, um mito qualquer? O ótimo documentário de Marcelo Gomes nos faz
pensar em muitas coisas como essas, que não estão no filme, mas na minha
cabeça, nesse momento.
A música do Chico Buarque, que está no filme,
e tem como estribilho Estou Me Guardando
Para Quando o Carnaval Chegar fazia
alusão á liberdade que o sujeito viveria com o fim da ditadura militar
opressora, restritiva de todas as liberdades e que tinha como oposição o
Carnaval libertador. Não é o sentido,
aqui, o Carnaval, no caso, é uma liberação momentânea de um trabalho que, no
fim das contas, embora não pareça, é também opressivo, mas que dura pouco e
nada muda.
Este filme do Marcelo Gomes, cujo título me
permito não ficar repetindo, por ser longo demais, ganhou o prêmio do Júri
Oficial e o da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) no
Festival É Tudo Verdade 2019. E está na sessão Vitrine, com preço reduzido,
em grande número de cidades brasileiras.
CINEMA
AFRICANO
Começa agora a Mostra de Cinemas Africanos, no
Cinesesc São Paulo. Serão exibidos 24
filmes de 14 países do continente, de 10 a 17
de julho. Uma boa oportunidade
para conhecer melhor um cinema ainda pouco divulgado por aqui.
Parece ser muito bom esse documentário,com facetas muito curiosas,!!!! Uma amostra muito grande de um capitalismo numa cidade tão pequena!!!!ótima a comparação com o nosso hábito e porque não dizer vício de ZAPs e outros aparelhinhos que nos entorpece sem querer mas , querendo compulsivamente. Vou assostir.. se puder!!!!
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