sexta-feira, 31 de outubro de 2025

JAFAR PANAHI NA MOSTRA 49

    

 Antonio Carlos Egypto

 

Renata de Almeida e Jafar Panahi

Jafar Panahi, o mais importante e premiado diretor de cinema do Irã na atualidade, além de um grande artista, é um batalhador incansável, pela cultura e pela liberdade.  Foi agraciado na Mostra 49 com o prêmio Humanidade e aqui compareceu para receber a honraria e exibir FOI APENAS UM ACIDENTE, o filme que levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2025.  Recebê-lo aqui foi uma vitória da Mostra, que há muitos anos tenta trazê-lo, inclusive lhe concedeu o prêmio Leon Cakoff em 2018.

 

A Mostra exibe seus filmes desde “O Balão Branco”, de 1995, passando por “O Espelho”, de 1997, “O Círculo”, de 2000, “Ouro Carmim”, de 2003, “Fora do Jogo”, de 2006, “Isto Não é Um Filme”, de 2011, “Cortinas Fechadas”, de 2013, “Táxi Teerã”, de 2015, “3 Faces”, de 2018, até “Sem Ursos”, de 2022.  Uma filmografia impecável, realizada por um cineasta que foi muito perseguido e censurado no seu país, que impede que seus filmes sejam lá exibidos e não permitia que ele viajasse ao exterior para receber os prêmios que conquista nos festivais mais importantes do mundo.  Impediu-o até de fazer filmes no Irã.  Ele foi preso e condenado a 8 anos de cadeia e foi libertado em 2023, após uma greve de fome.  Pela primeira vez pôde vir ao Brasil, a São Paulo, atendendo ao convite da Mostra.

 


O seu filme FOI APENAS UM ACIDENTE (Yek Tasadef Sadeh) é uma produção cinematográfica como sempre modesta em recursos, mas absolutamente notável como criação.  É um suspense permanente, que nunca se resolve por completo, deixando o público na expectativa o tempo todo.  A situação não pode ser revelada sem prejudicar o aproveitamento do filme pelo público.  O que dá para dizer é que ele mexe numa ferida importante das sociedades que enveredam pelo caminho do autoritarismo, ao abordar um caso de alguém sobre quem existe dúvida em relação à sua identidade, mas não em relação aos atos abomináveis que cometeu.  E então coloca-se um dilema moral, que se desdobra em diferentes aspectos e exige decisões a cada passo, com consequências importantes.  Não dá para perder uma cena sequer, tudo ali é essencial, ao longo de seus 102 minutos de projeção.  O elenco composto por Vadih Mobasseri, Maryam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten, Majid Panahi, é muito bom.  Garante a tensão ao longo de toda a narrativa, que passa da tranquilidade à exasperação e revela as mudanças de humor que ocorrem ao longo da história, em que cabem ternura, solidariedade e até doçura num tema tão desafiador.  É uma obra de mestre.  Deve ser lançada nos cinemas, oportunamente, pela Imovision. 

 

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quarta-feira, 29 de outubro de 2025

VALTER HUGO MÃE NA MOSTRA 49

 

                          Antonio Carlos Egypto

 


O escritor Valter Hugo Mãe, também artista plástico e músico, foi um dos principais destaques da Mostra 49.  A começar pelo belíssimo pôster que ele criou para a Mostra. 

 

Valter Hugo Mãe

Na programação cinematográfica, pude ver um belo documentário, de 81 minutos, concebido e dirigido por Miguel Gonçalves Mendes, que acompanhou Valter durante cerca de 7 anos, em viagens pela Islândia, pelo Brasil, por Portugal, pela Colômbia e até por Macau, China, DE LUGAR NENHUM.  Esse documentário integra um projeto ambicioso do cineasta, ‘O Sentido da Vida”, que incluiu “José e Pilar” sobre Saramago.

 

Aqui, a questão da solidão, da alteridade como condição de vida, mas também da liberdade, da perda e do pertencimento, dão uma dimensão da discussão que se apresenta.  A participação da cartunista Laerte Coutinho, bem intensa no filme, faz um contraponto fundamental para algumas dessas questões. 

 

Valter Hugo Mãe, português, nascido em Angola, se mostra mesmo não só como um homem que amplia a visão de seu tempo, mas como alguém que prescinde dos limites geográficos da identidade.  É esse homem de lugar nenhum que vi no filme e pude acompanhar no seu encontro ao vivo com o público, na Cinemateca, após a exibição do filme, ao lado do diretor Miguel e da cartunista Laerte. Um papo delicioso, inteligente, informal, profundo.

 


Outro filme lançado na Mostra 49 foi O FILHO DE MIL HOMENS.  É produção brasileira, dirigida, roteirizada e, como ele mesmo diz, sonhada, de Daniel Rezende, a partir do romance homônimo de Valter Hugo Mãe.  Com uma linda fotografia de Azul Serra e que contou com um elenco espetacular: Rodrigo Santoro, Rebeca Jamir, Johnny Massaro, Miguel Martines, Juliana Caldas, Grace Passô, Tuna Dwek.  Esse elenco foi de uma competência incrível para viabilizar o clima diáfano e onírico da narrativa.  O que exigiu, por exemplo, de Rodrigo Santoro largas cenas interagindo apenas com um boneco, com o mar, com as pessoas, sem falar.  Todos, dos pequenos aos longos papéis, estão muito bem.  O “sotaque” de Grace Passô nem sempre é compreensível, mas como ele é a razão de ser da personagem, tudo bem.

 


Em 128 minutos de filme, assistimos a uma bela poesia visual, marcada por personagens intensos, diversos, surpreendentes e verdadeiros.  Do homem solitário da caverna ao menino abandonado, da anã que engravida ao filho trancado a chave no quarto, tudo ali é um chamado à vida, ao afeto, ao reconhecimento do humano.  A solidão como fio condutor, a tentativa de compreender sem precisar nem falar.  O caminho da negação ao encontro.  O filme é um estímulo maravilhoso para quem se dispõe a ver, ouvir, perceber, com tempo, aberto ao que existe no mundo, nas pessoas.  É uma produção da Netflix, que deve ser exibida nos cinemas após a Mostra.

 

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sexta-feira, 24 de outubro de 2025

DESTAQUES DA MOSTRA 49

Antonio Carlos Egypto



Jovens Mães


 
JOVENS MÃES, de Luc e Jean-Pierre Dardenne, aborda cinco adolescentes num abrigo para mães que acabaram de ter seus bebês.  Ou seja, a gravidez que foi a termo, a despeito dos muitos problemas vividos até que essa decisão se estabelecesse.  E se a gravidez na adolescência já é um enorme problema para a maior parte das que engravidam, o início da vida como mãe é algo bem complexo e dramático.  O cinema humanista dos irmãos Dardenne mostra sua força, ao tratar desse tema com realismo e evidenciando as emoções envolvidas em cada uma das personagens retratadas e as relações que estabelecem, tanto na sociedade, com as pessoas, como entre elas.  Mostra também a diversidade das situações.  Coloca questões familiares, de gênero, de saúde pública, de programas sociais governamentais e da sociedade civil, que tem muita importância nessa questão.  Bélgica/França, 105 min.  Tem previsão de chegar aos cinemas no início de janeiro de 2026.

 

PAI MÃE IRMÃ IRMÃO, produção Estados Unidos/Irlanda/França, dirigido pelo veterano e brilhante cineasta Jim Jarmusch, levou com muitos méritos o Leão de Ouro em Veneza.  O filme trata de relacionamento familiar, pais e filhos e irmãos, por meio de três histórias, uma nos Estados Unidos, outra, na Irlanda, em Dublin, e outra em Paris, na França.  Em comum, o clima estranho e irônico que Jarmusch imprime às situações.  Aqui, as coisas não fluem, o formalismo impede a espontaneidade, a sem-graceza toma conta dos relacionamentos familiares.  Tudo soa estranho, algo inesperado, falso, de aparências.  Muito curioso.  Mostra o diretor em plena forma, fiel a seu estilo.  Apoiado por um elenco espetacular: Tom Waits, Adam River, Charlote Rampling, Cate Blanchet, Mayin Bialik e outros.  Comédia muito inteligente e crítica.  110 min.


A História do Som

A HISTÓRIA DO SOM, produção Estados Unidos/Reino Unido/Itália, dirigido por Oliver Hermanus, nascido na África do Sul.  Em Boston, em 1917, Lionel e Davi, estudantes de música, se conhecem e, apaixonando-se pelas folksongs, percorrem os Estados Unidos registrando canções para serem reproduzidos no gramofone.  Essa longa viagem os aproxima muito e daí surge uma paixão também entre eles, para além da música.  Eles se separam ao final da viagem, tomando rumos distintos, mas o vínculo que construíram jamais morrerá.  O que construíram juntos pela história da música, também não.  Bela e cuidadosa produção, com boa música e uma dupla de protagonistas ótima: Paul Mescal e Josh O’Connor.  127 min.

 

MIRRORS No. 3, da Alemanha, dirigido por Christian Petzold, já bem conhecido dos cinéfilos por aqui, é um trabalho muito interessante.  Mostra uma estudante berlinense que sofre um acidente de carro com o namorado, no campo, e sobrevive milagrosamente.  Se ela já não estava bem, agora, então, está muito abalada, ainda que fisicamente praticamente ilesa.  As circunstâncias a levam a Betty, que a acolhe próxima ao local do acidente, onde mora, a mantém por lá e se afeiçoa por ela.  Marido e filho distantes se aproximam para um convívio em que os traumas de uma perda deixaram marcas e uma separação entre eles quase intransponível.  Do convívio entre desgraças, no entanto, algo de novo resultará, transformando todos e cada um, do jeito que for possível.  No final das contas, um filme muito realista, mas esperançoso também.  86 min.

 

URKIN, do Reino Unido, dirigido por Harris Dickinson, nos mostra o personagem Mike (Frank Dillane) como morador de rua, conseguindo um albergue por um tempo, na prisão, em alguns trabalhos na limpeza urbana ou na cozinha de um restaurante.  Ou, ainda, roubando de alguém que pretendia ajudá-lo.  O que fica evidente no filme é que o que vivemos depende de nossas escolhas e da resiliência necessária para viabilizá-las.  Claro que a ausência de recursos materiais ou educacionais influi muito, mas não é determinante para o insucesso.  No caso de Mike, ele é jovem, branco, sem nenhuma deficiência aparente e vive num país que lhe provê alguma ajuda na sobrevivência, seja pelo Estado, seja por entidades beneméritas.  Mas ele não consegue sair da situação em que está porque não sabe como agir, atua com destempero, sem pensar, sem planejar nada para sua vida (exceto sonhos vagos).  Assim, não consegue tirar proveito de nada e ainda estraga o que lhe concederam.  Se algo se apresenta, é preciso lutar por conquistar, senão nada muda. Ou melhor, piora.  O filme é bem construído, tem elementos visuais ricos, uma boa narrativa, que não conta uma história, mas explora bem um personagem.  Da competição Novos Diretores.  99 min.

 

Feliz Aniversário

FELIZ ANIVERSÁRIO, do Egito, dirigido por Sarah Goher, tem uma pegada social relevante.  Retrata uma menina na faixa de 8 ou 9 anos, Toha, que trabalha como empregada doméstica e batalha para que sua amiga Nelly, a filha da patroa, possa realizar sua festa de aniversário.  E ela própria possa, também, soprar a vela do bolo e realizar um desejo.  Nesse processo, o filme mostra, com toda a clareza, que uma coisa é ser filha da patroa e outra, ser filha da empregada.  A rejeição é patente na pobreza e de um consumismo tolo, na riqueza.  O trabalho infantil é tolerado e explorado, apesar da evidente ilegalidade.  O filme é muito eficiente em focar toda a sua trama na figura da menina pobre e na sua luta para estar na festa de aniversário, para a qual não foi convidada.  A menina protagonista, Doha Ramadã, é muito boa, muito expressiva.  91 min. Competição Novos Diretores.

 

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domingo, 19 de outubro de 2025

FILMES QUE VI NA MOSTRA 49

Antonio Carlos Egypto

 

Fiume o Morte


Um dos melhores filmes que vi na Mostra 49 até agora foi, sem dúvida, FIUME O MORTE, que representa a Croácia na disputa pelo Oscar de filme internacional.  O diretor Igor Bezinovic nasceu em Rijeka, antiga Fiume, hoje Croácia.  Essa cidade portuária do Mar Adriático Norte já foi considerada parte de diferentes países, como a antiga Iugoslávia, Eslovênia, Itália e até como Cidade-Estado independente.  Complicado de entender.  Mas, em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, a cidade foi tomada por cerca de 300 soldados liderados pelo poeta italiano Gabriele D’Annunzio, um fascista antes mesmo da ascensão de Benito Mussolini, interessado em anexá-la à Itália.  O filme começa conversando com os atuais habitantes sobre a figura de D’Annunzio e o que ele significa para a história da cidade, em que seu nome aparece com frequência.  Numa abordagem crítica, irônica e mesmo sarcástica, essa historiografia é revisitada, refazendo cenas e fotos do período abordado, criando situações curiosas, divertidas e inteligentes.  Ao perguntar a vários carecas, com aparência e idade similares à de Gabriele D’Annunzio na época, se gostariam de desempenhar o papel dele no filme, vários concordaram e todos fazem o papel, em rodízio, durante a narrativa.  A cada etapa mostrada a análise crítica aborda o absurdo e o ridículo das situações, num estilo leve, porém, sério.  O clima é perfeito, ainda que não possamos entender toda essa complexa história de Rijeka (Fiume).  Um cinema talentoso, com muito frescor e comunicação, esperta e engraçada.  112 min.

 

Também vi e gostei, na Mostra 49, do filme do Reino Unido, CÍRCULO RETO, da competição Novos Diretores, de Oscar Hudson.  Trata da relação que se estabelece entre dois soldados adversários, que dividem um espaço fronteiriço em pleno deserto, absolutamente vazio.  A situação é absurda e que sentido tem identidades nacionais, patriotismo, regras a serem cumpridas com fidelidade nesse isolamento?  O convívio forçado e o conflito inevitável acabam por borrar as diferenças e aproximar o que é aparentemente oposto.  A ponto de tudo se perder e se misturar.  O filme explora com talento essa narrativa simbólica, vale-se de dois quadros simultâneos em parte do tempo e investe num clima de non sense.  Com dois ótimos atores protagonistas: os irmãos gêmeos Luke Tittensor e Elliot Tittensor.  109 min.

 

Círculo Reto

Também vi FRANKENSTEIN, de Guillermo del Toro, produção estadunidense, com 149 minutos de duração.  Trata-se de um hiperespetáculo, extravagante, hiperbólico, sobre o tema clássico de Mary Shelley do cientista Victor Frankenstein, que cria um monstro.  Sua criatura, no filme atual, tem uma força descomunal, capaz de movimentar com as mãos um navio cheio de gente.  E mais: é absolutamente indestrutível, fadado a se recompor eternamente, resistindo a tudo, nem dinamite é capaz de destruí-lo.  Sendo assim, torna-se uma vítima da chamada vida eterna.  E se enraivece com isso.  Há sequências brilhantes, espetaculares, embaladas por uma música sempre intensa.  Muito sangue e violência.  Não fica nada a dever aos chamados filmes de super-heróis.  Del Toro transforma a criatura de Frankestein num super vilão, digamos sem culpa, sem maldade no coração.  Assustador, de arrasar quarteirões.  Não é assim que são chamados os blockbusters?  Em breve nos cinemas e na Netflix, para quem gosta do gênero.

 

Também vi SEIS DIAS NAQUELA PRIMAVERA, coprodução de Luxemburgo, Bélgica e França, dirigida por Joachim Lafosse.  Uma situação de drama familiar, envolvendo o direito dos netos a frequentar uma casa de praia do avô paterno, negada à mãe divorciada com quem eles vivem.  Essa família, ainda assim, vai ao local secretamente e levando o novo namorado dessa mãe.  Um detalhe, a família é negra e o namorado, branco.  O que supõe algum tipo de problema que, no entanto, é sugerido, mas não é explicitado.  Aliás, todo o clima do filme é soft.  Há uma tensão suave no ar e nada de mais intenso acontece.  Um bom filme, que não chega a empolgar.  92 min.

 

A Sombra de Meu Pai

Vi, ainda, na Mostra 49, A SOMBRA DE MEU PAI, de Akinola Davies Jr., da Nigéria e Reino Unido, competição Novos Diretores.  Em Lagos, na Nigéria, um pai que tem estado muito ausente tem a oportunidade de conviver com seus filhos, levando-os com ele à cidade grande, onde espera receber salários atrasados a que tem direito.  As eleições presidenciais tinham acabado de acontecer, mas os resultados esperados não tinham sido proclamados.  Com a esperança de melhoria de vida com o novo governo, eles conhecem a resposta quando ainda estão na metrópole e tentam voltar à sua vila em paz.  Só que a agitação política já se instalou.  Um filme que, com um elenco muito bom, explora bem o clima afetivo que aproxima pai e filhos, as agruras da vida que se dissolvem em pequenos bons momentos, a esperança que sempre existe e a sofrida democracia do nosso tempo.  94 min.

 

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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

SIRÂT e QUEEN KELLY

Antonio Carlos Egypto

 

 


SIRÂT.  Espanha.  Direção: Oliver Lake.  Elenco: Sergi López, Bruno Nuñez, Stefania Gadda, Joshua Liam Henderson, Jade Oukid. 120 min.

 

“Sirât”, o filme de abertura a 49ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é o representante da Espanha na disputa do Oscar de melhor filme internacional.  É um road movie todo passado nos desertos do Marrocos e tem coprodução francesa.  O diretor Oliver Lake nasceu na França, de uma família de imigrantes espanhóis.

 

“Sirât “ é um filme que comporta muitos adjetivos para defini-lo.  É impressionante, impactante, doloroso emocionalmente, vibrante, desafiador, notável.

 

É um filme que mexe com todo mundo, dá até para detestar, mas não dá para esquecer, nem ficar indiferente.  Reflete o mundo em que vivemos, o clima de guerra que o define, o temor até de uma Terceira Guerra Mundial.  O ambiente explosivo em que estamos todos envolvidos e também o desencanto e o desamparo.  E, mais do que tudo isso, o filme nos mostra que, definitivamente, não estamos no controle das coisas, nem das nossas próprias vidas, nem de nós mesmos.  O século XXI seria uma espécie de “xeque-mate” do que já sabemos desde Darwin, Freud e Marx.  Claro, não dá para ser otimista diante das circunstâncias.  Mas pessimismo inerte é derrota. É preciso agir, da forma que for possível.

 

Um pai e um filho ainda pequeno que circulam por festas rave no deserto marroquino, em busca da filha e irmã que não veem há dois meses, seguem um grupo de jovens errantes, espécie de hippies da atualidade.  Eles tentam viver e dançar ao som das batidas da música, que é puro ritmo, ao lado de centenas, milhares de integrantes dessas festas, que já estão sendo coibidas pela polícia e podem ser as últimas explosões de vida ainda permitidas.  Dançar, interagir, buscar uma saída lisérgica para suportar os fatos pode ser um caminho para eles.

 

Um caminho a que vai se somar a família que busca sua integrante que está distante.  Curtindo o mesmo vigor de música e dança no deserto, pelo que  se sabe dela.  Até onde se pode ir nesse ambiente árido e inóspito, por caminhos quase intransitáveis, num mundo nada protetor, em guerra e opressões diversas?

 

Uma reflexão para lá de relevante, sem dúvida.  O filme também flerta com uma ideia mística.  Se não temos o controle, estamos à mercê dos desígnios de Deus.  Pode ser visto assim, mas simplifica muito as coisas.  E tende a levar à acomodação.  E aí, será que tem saída?  Vamos ficar no clichê: a esperança é a última que morre?  De onde ela virá? Dos povos, espero.

 

 


Um destaque importante da Mostra 49, que inclui clássicos do cinema restaurados, é QUEEN KELLY, dirigido por Erich von Stroheim, em 1929, com Gloria Swanson como atriz principal e também produtora.  A nova cópia e montagem do filme, que permaneceu inacabado e já teve várias versões fragmentadas exibidas, procura incorporar textos e imagens (fotos, por exemplo) do roteiro original do diretor, que tinham sido censurados quando ele foi demitido.  Vale a pena ver essa nova versão restaurada, que acaba revelando, com a segunda parte, as razões de tanta polêmica e desconforto com esse clássico do cinema norte-americano e seu celebrado e destacado diretor austríaco Stroheim.  

                  

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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

RADU JUDE NA MOSTRA 49

Antonio Carlos Egypto

 


Kontinental'25

  

O cineasta da Romênia, Radu Jude, tem dois filmes na Mostra 49, ambos lançados em 2025: “Kontinental’ 25” e “Drácula”.

 

KONTINENTAL’ 25 se passa em Cluj, principal cidade da Transilvânia, belíssima, a julgar pelas imagens que dela oferecem o diretor Jude e o responsável pela fotografia, Marius Panduru.  Começa mostrando um homem em situação de rua, perambulando pela cidade, catando coisas, pedindo esmola e caminhando por um parque com dinossauros (a Disney de lá?).  A trama, no entanto, vai se direcionar para a personagem Orsolya, oficial de justiça de Cluj que, ao despejar o homem sem teto do porão do prédio onde ele se alojou, toma todas as providências legais corretas, mas acaba abalada pela morte dele nessa ação.  O filme, então, se concentra na vida dela, a partir daí, de como ela lida com uma culpa que sente, ninguém a acusa de nada, mas ela não consegue lidar com a situação.  Mesmo repetindo inúmeras vezes, para diversas pessoas, o fato ocorrido, com detalhes.  A vida dela se torna errática, ela cancela uma viagem com marido e filhos, enquanto tenta se encontrar, reencontrando casualmente um antigo aluno, buscando ajuda de um padre, depondo junto a colegas de trabalho e autoridades.  O filme é muito crítico em relação ao patriotismo romeno, à exploração imobiliária, à verticalização urbana, às origens húngaras da personagem, que a situam na contramão do regime opressivo (embora democrático pelo voto) de Victor Orbán, assim como o passado ainda recente do comunismo terrível de Nicolae Ceaucescu (1918-1989).  A culpa pode ser uma questão individual muito complicada de se lidar, mas está indelevelmente ligada às questões morais, religiosas, e valores que a sociedade professa no sexo, no casamento, na família, no trabalho.  Tudo isso é parte do drama, que não dispensa o humor e a irreverência num filme muito bem realizado em todos os sentidos: roteiro, fotografia, interpretações do elenco, música, ritmo, excentricidades que surgem, como as piadas budistas, entre outras curiosidades.  Um filme impecavelmente moderno.  109 min.

 


Drácula

Em DRÁCULA, Radu Jude tem outro tipo de abordagem, muito mais caricata, provocadora e demolidora, sem qualquer pudor ou limitação.  Inclusive, no exagerado tempo de duração do filme, desnecessários 170 minutos.  Acontece que, na prática, são vários filmes em um.  Um jovem cineasta se apresenta e nos apresenta uma novela, baseada em encenações e shows baratos de vampiros, que acabam sendo perseguidos pelos espectadores.  A novela vai sendo o tempo todo interrompida pelo tal cineasta, criando ilimitadas possibilidades de filmes, com a utilização da Inteligência Artificial, inspirados no mito original de Drácula, vampiros, zumbis, o retorno de Vlad, o empanador, a primeira novela romena sobre vampiros.  Ou seja, vai de Drácula de Murnau às mais variadas apelações e banalidades, incluindo até mesmo um vampiro capitalista explorador, inspirado em Karl Marx.  Cabe tudo nessa digressão permanente.  Da mais descarada pornografia ao uso mais absurdo de imagens de Inteligência Artificial.  É uma loucura divertida, embora muitíssimo exagerada.  O que é constantemente criticado pelo próprio personagem do cineasta, que tenta agradar o público o tempo todo, mas nada parece bom. Ou poderia ser muito diferente. Afinal, tudo é muito extravagante, fora do comum, distante da realidade.  Mas se o público quiser realismo também cabe, só que aí tudo perde a graça.  É um filme inteligente, inegavelmente, mas não é agradável de se ver.  Pelo menos, não por tanto tempo.  Uma hora a menos de filme já bastava para passar o clima e o teor da criação cinematográfica desse talentoso diretor romeno, tão produtivo e original, que é capaz de lançar mais de um filme num só ano.

 

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sábado, 11 de outubro de 2025

BUGONIA E OUTROS NA MOSTRA 49

  Antonio Carlos Egypto

 

Bugonia

BUGONIA.  Reino Unido.  Direção: Yorgos Lanthimos.   Com Emma Stone, Jesse Plemons, Aidan Delbis, Stavros Halkias, Alicia Silverstone.

 Quem conhece algum dos filmes do cineasta grego Yorgos Lanthimos, como “Pobres Criaturas” (2023) ou “Dente Canino” (2009), sabe que o cinema que ele cultiva é insólito.  Situações, conceitos, comportamentos improváveis, constituem as sequências que compõem o filme, não necessariamente encadeadas.  Mas cujo sentido revela-se no conjunto.  “Bugonia”, em especial, é um filme bem estruturado e organizado dentro desse caráter insólito.  Ao mesmo tempo em que nos provoca e nos deixa confusos e perdidos em relação ao que se passa, fica muito claro qual seja sua pauta.  A história da CEO de uma grande empresa que é sequestrada por dois personagens estranhos que acreditam, firmemente, que ela é uma alienígena, nos remete a teorias da conspiração, fake news, crenças fanáticas e mirabolantes, mas também à sensação de finitude da humanidade no planeta Terra.  De maluca esta questão não tem nada.  De fato, estamos cavando nosso fim e isso é assustador.  As abelhas, que estão sendo exterminadas, são um elemento central dessa história e ocupam um papel importante na trama de destruição a que estamos submetidos.  Será pura incompetência dos humanos ou envolveria ações decisivas vindas de fora do planeta?  Parece apenas delirante, mas tem tudo a ver com o que estamos vivenciando na contemporaneidade.  E dá muito o que pensar.  O roteiro é divertido, criativo e bem concebido, em que pese toda a estranheza.  O elenco é muito eficaz para criar o clima do filme.  Especialmente Emma Stone, que já trabalhou com o diretor e levou o Oscar de atriz, mostrando seu enorme talento em “Pobres Criaturas”.  Aqui ela está ótima também.  Para curtir e gostar de “Bugonia” é preciso entrar no clima, sem preconceito.  O resultado compensará o espectador.  120 min.

 

Cabelo, Papel, Água

CABELO, PAPEL, ÁGUA é um documentário poético vietnamita.  Dirigido por Nicolas Graux e Truong Minh Quy.  Coprodução belga e francesa.  Focaliza uma mulher septuagenária que nasceu numa caverna e vive num vilarejo envolta pela natureza, pelos elementos básicos da existência e da sobrevivência, mas sai para ir a Hanói ajudar sua filha no parto e com o bebê.  Descobre uma cidade imensa, que a confunde, onde as pessoas têm dificuldade para lidar com necessidades básicas, como a alimentação e o trabalho.  Isso a faz sonhar com suas origens e voltar a elas em busca de paz e felicidade, enquanto seu idioma natal, o ruc, está em vias de se extinguir.  Filme bonito, contemplativo, que explora não uma trama, mas uma realidade sensorial.  71 min.

 

Duas Vezes João Liberada

DUAS VEZES JOÃO LIBERADA, da diretora portuguesa Paula Tomás Marques, trata da realização de um filme sobre uma figura perseguida pela Inquisição no século XVIII, por sua inadequação de gênero.  Ou seja, um caso de transexualidade, quando esse conceito ainda não existia.  Nem o de gênero.  Mas o que se tem de registro oficial sobre a personagem real Liberada é aberto e incompleto, dando margem a que essa biografia possa ser contada de muitas formas, enfoques, representações.  É sobre a construção da personagem, as filmagens, as diferenças entre a concepção do diretor e da atriz lisboeta João que a representa, as escolhas que vão sendo feitas, os conflitos.  A própria mistura entre o que se filma e o que se vive, os impasses que paralisam o filme põem em evidência concepções de mundo, percepções distintas e a técnica cinematográfica intermediando a expressão de tudo isso.  O ato de fazer cinema é explicitado de forma bem interessante, como algo sempre in progress.  Inseguro, incerto, aberto sempre. Com perguntas sem respostas.  Um constante vir a ser.  70 min.   (Da Competição Novos Diretores, para aqueles que estão no primeiro ou segundo longa-metragens.)

 

Corpo Celeste

CORPO CELESTE, produção do Chile, dirigida por Nayra Ilic García, focaliza a figura da jovem Celeste, de 15 anos, em bela viagem a uma praia próxima do icônico deserto de Atacama, cuja experiência virá a tornar-se traumática para ela e para a família.  Quando retorna ao Atacama, atraída por um eclipse solar, tudo já está mudado nela, nas pessoas com quem ela conviveu e no lugar.  A ditadura de Pinochet já terminou, mas suas marcas afetam tanto esse lugar e o país como as vidas, entre elas, a de Celeste, em busca de se encontrar.  Belas locações, mas uma narrativa algo dispersa e fria, que não chega a envolver os espectadores. 97 min. (Também faz parte da Competição Novos Diretores).

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