quinta-feira, 15 de outubro de 2020

CINEMA...EM CASA (5)

Antonio Carlos Egypto

 

Ficar em casa por um longo tempo, organizando toda a vida a partir disso, é um desafio que a conjuntura nos impõe.  Gostemos ou não.  E quem tem que sair para trabalhar fica mais exposto.  Há quem curta a ideia de uma reclusão, outros saem, não porque precisem, mas porque não conseguem suportar o isolamento ou a solidão.  E há os tolos, que simplesmente negam uma pandemia, que já matou mais do que várias guerras somadas.  Embora, para muitos, os sintomas nem existam, ou sejam leves, e a cura se resuma a um isolamento temporário, sem necessidade de hospitalização.  Seja como for, a necessidade de permanecer em casa é evidente, se pensarmos em termos coletivos.  Só é possível controlar este vírus dificultando a sua circulação, dado o potencial de contaminação que ele tem.  Até que venha a vacina, pelo menos.

 

Vai daí que a gente, quando fica muito em casa, acaba percebendo que o essencial para a vida resume-se a poucas coisas. Nada a ver com o consumismo tão fundamental para a roda do capitalismo girar, gerando necessidades o tempo todo.  E percebemos o quanto essa criação artificial de necessidades compromete a vida no planeta.  Será que aprenderemos a reconhecer e valorizar o que é essencial e a dispensar tantas coisas supérfluas?

 


LIMITE


Percebi que, em várias escolhas de filmes em DVD que separei para assistir na temporada de quarentena, há muito mais filmes essenciais do que atuais.  E que pode ser muito importante rever filmes antigos e históricos. Por exemplo, revi dois filmes brasileiros essenciais: “Limite” (1931), de Mário Peixoto, e “A Hora da Estrela”, (1986), de Suzana Amaral.


O mítico “Limite”, produção do cinema silencioso que ficou desaparecido por muitos e muitos anos, é uma obra cinematográfica poderosa.    Com grande apuro estético, preciosos enquadramentos, cenas que alternam placidez e tédio, com movimentações vertiginosas de câmera de grande impacto, é um filme experimental extremamente atraente e bem sucedido.  Que parte de uma história simples, três náufragos, um homem e duas mulheres, em um barco perdido no oceano, contando suas histórias e enfrentando uma tempestade.

 

A beleza das imagens nos retrata essa situação humana-limite, carregada de conflitos e relacionamentos-problema, num filme extraordinário.  A Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema – realizou um debate e votação entre todos os seus críticos, espalhados pelo Brasil, e escolheu “Limite” como o melhor filme brasileiro de todos os tempos.  Não foi o meu voto, mas reconheço a importância que o filme tem.

 

Meu DVD desse filme veio da Cinemateca Brasileira, que hoje enfrenta um criminoso bloqueio de suas atividades, essenciais à memória do nosso cinema, por parte de um governo que destrói tudo, da educação à Amazônia, das relações internacionais à saúde do seu povo e, de forma sistemática, a cultura.

 

“A Hora da Estrela”, filme de Suzana Amaral, recentemente falecida, com base em crônica de Clarice Lispector, aborda com grande sensibilidade a vida de uma brasileira que quase não existe, não tem qualquer importância para outros, não consegue manter um emprego muito simples e mal remunerado.   Vive subnutrida e maltratada.  Sem amor.  É um retrato maravilhoso da realidade dos que estão na base da pirâmide, vivendo de teimosos.  Essa não-cidadã é vivida com maestria por Marcélia Cartaxo, ao lado de um belo elenco que tem José Dumont, Fernanda Montenegro, Tamara Taxman e Umberto Magnani.  Deu margem à realização de uma obra fundamental, cruel e única.  O DVD, da Versátil, faz parte da coleção Folha “Grandes Livros no Cinema”.

 


A HORA DA ESTRELA


Também revi o documentário “O Sal da Terra, Uma Viagem com Sebastião Salgado”, de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado, filho do retratado.  O filme é um mergulho na figura humana e na obra excepcional do fotógrafo Sebastião Salgado e traz profundas reflexões sobre questões sociais pungentes, o meio ambiente, a nossa existência no planeta e a esperança de ainda encontrarmos soluções para o nosso mundo.  Um belo trabalho, de 2014, lançado em DVD pelo selo SESC.

 

Aproveitei, ainda, a programação de documentários da TV Cultura, aos sábados, para ver “Guarnieri”, filme de 2017, de Francisco Guarnieri, neto do grande autor e ator do teatro, do cinema e da TV, Gianfrancesco Guarnieri, de “Eles Não Usam Black-Tie” e “Arena Conta Zumbi”.  O documentário mostra a ação artística e política dele, sua relação com os filhos, netos e outros familiares, em que se destacam a luta pela causa, artística, cultural e política, de resistência à ditadura militar e as suas convicções socialistas.

 


ADONIRAN


Ainda na programação da TV Cultura, me deleitei com “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”, de 2018, de Pedro Serrano.  A figura e a obra de Adoniran Barbosa, sua enorme importância para a música e a cultura, paulista e brasileira, se sobressaem de tal modo que não deixam margem a dúvida quanto ao seu talento e genialidade.  Na base do samba e da brincadeira, ele vai exercendo a difícil arte de falar errado e nos dizendo coisas como esta: “Pobre quando come galinha, ele está doente, ou a galinha”, no papel de Charutinho.  Ao lembrar da saudosa maloca, nos remete ao drama social dos sem-teto.  Está tudo lá, mas agora chega.  Não posso ficar mais com vocês, senão perco o trem das 11 para o Jaçanã e minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.  Tchau!


 

sábado, 10 de outubro de 2020

CINEMA...EM CASA (4)

Antonio Carlos Egypto

 

Enquanto passo estes longos períodos em casa, quero registrar quão importante é o trabalho dos entregadores.  E como são justas suas reivindicações.  Por aqui, tudo chega em casa, bastando um telefonema ou um pedido por WhatsApp.  A lista semanal do supermercado é entregue, praticamente, sem erros.  Assim como a pizza.  Passa o carro das pamonhas.  O galão de água chega pouco depois do pedido.  A farmácia, sem dúvida, entrega, sempre que necessário.  A banca de frutas, quando acionada.  Uma revista semanal, a Carta Capital, uma eventual Piauí e até um jornal impresso ocasional, também chegam na porta.  A vacina contra a gripe foi aplicada no portão de casa, pela equipe da UBS, circulando para atender a toda a cidade.

 

É evidente que os três quilômetros e meio de extensão de Águas de São Pedro facilitam tudo isso, mas é um privilégio do qual sou extremamente grato.  Apesar de frequentar a cidade há 20 anos, não tinha o hábito de acionar esses serviços, mas é fantástico poder contar com eles, num momento em que é recomendável ficar em casa o maior tempo possível.


 

Ingmar Bergman


Não poderia deixar de incluir na programação em DVD que estou fazendo em casa algum filme de Ingmar Bergman (1918-2007), um dos meus cineastas favoritos.  Vi, então, dois filmes da fase inicial da produção dele, “Prisão”, de 1949, e “Juventude”, de 1951.  Esse último faz parte da coleção de Bergman da Versátil Home Vídeo.  As preocupações e reflexões do mestre sueco já estão claramente marcadas nesses filmes.

 

Em “Prisão”, a discussão vai para o lado de que o mundo só pode estar sendo governado pelo demônio, tais são as desgraças, guerras e iniquidades que vivemos.  Um deus misericordioso não permitiria isso.

 

Em “Juventude”, uma bailarina revive suas lembranças do primeiro relacionamento amoroso. O filme lida poeticamente com a memória, o amor e a dor, em extraordinária fotografia em preto e branco.  Ingmar Bergman, realmente, nunca decepciona.  Sua obra permanece forte e atual.

 

Um filme que reúne três contos de Edgar Allan Poe (1809-1849), realizado por grandes diretores e com um elenco magnífico, deu um toque de terror psicológico a uma das minhas sessões caseiras.

 

O filme, de 1968, chama-se “Histórias Extraordinárias” e inclui “Metzengerstein”, dirigido por Roger Vadim (1928-2000), com os irmãos Jane e Peter Fonda vivendo uma história de amor estranha, de primos, que do desprezo evoluem para a paixão, marcados pelo incêndio num estábulo, em que poderá sobreviver o corcel negro que estava numa bela tapeçaria do castelo.

 

O segundo conto, “William Wilson”, dirigido por Louis Malle (1932-1995), tem Alain Delon e Brigitte Bardot como protagonistas.  William Wilson, ex-soldado do exército austríaco, convive com seu duplo, alguém que sempre entra em cena para alterar seus planos ou interferir em suas ações.

 

Toby Dammit


“Toby Dammit” é o conto filmado por Federico Fellini (1920-1993), em estilo surrealista, com Terence Stamp como protagonista.  Ele faz um ator arrogante e temperamental, que comparece bêbado a uma cerimônia de entrega de prêmios, em que seria homenageado, e põe tudo a perder.  A partir daí ele perde o senso e o contato com a realidade, encontrando uma garotinha simpática e sorridente em meio ao caos. “Histórias Extraordinárias” é um filme muitíssimo interessante, que eu não via desde que comprei o DVD, há muito tempo.  Sei que há um relançamento pela Versátil Home Vídeo, numa caixa. 

 

Também revi, claro, “O Dia em que a Terra Parou”, de 1952, dirigido por Robert Wise, com um elenco muito bom: Michael Renne,  Patricia Neal, Hugh Marlowe, Sam Jaffe, John Carradine.  A espaçonave alienígena que, aterrissando em Washington, D.C, fez a terra parar por um dia apenas, não imaginou quantos dias um vírus poderia fazer a terra parar.  No filme, o alienígena quer alertar os líderes mundiais de que o nosso planeta está à beira da extinção e demonstrará seus poderes para ensinar algo importante aos humanos.  Veja só.  Em 1952.  Não adiantou, pelo jeito.  O filme é da coleção de DVDs Fox Classics, da Twenty Century Fox.  Por hoje basta.



quarta-feira, 7 de outubro de 2020

DOCS BRASILEIROS

Antonio Carlos Egypto

 

O Festival de Documentários Internacionais É TUDO VERDADE 2020 exibiu trabalhos nacionais bastante relevantes.  Consegui ver alguns deles, que destaco aqui.

 



SANTIAGO DAS AMÉRICAS ou O OLHO DO TERCEIRO MUNDO tem a consagrada assinatura de Sílvio Tendler, um dos nossos maiores documentaristas.  Ele homenageia neste filme o documentarista cubano Santiago Álvarez (1919-1998), por ocasião de seu centenário de nascimento.  Santiago revolucionou a linguagem dos cinejornais, assumindo uma posição de luta em defesa da revolução cubana, desde 1959.  Registrou os fatos mais marcantes desse período de consolidação do regime, como a batalha frustrada coordenada por Fidel Castro para alcançar o recorde histórico na produção de cana de açúcar.  Cobriu o cenário político de tensões na América Latina dos anos 1960-1970, como a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, a vitória e o golpe envolvendo Salvador Allende no Chile e a atuação dos Estados Unidos nesse caso e no golpe militar brasileiro, entre outros.  A guerra do Vietnã e as lutas de independência na África ganham destaque.  E também os fenômenos naturais e culturais que reverberavam na ilha de Cuba.  Enfim, tudo o que um telejornal tem de reportar.  Só que o fazia como cinema de alta qualidade.  Na inovação técnica, nos enquadramentos, no uso de palavras escritas na tela, nos sons e músicas cuidadosamente escolhidos, para dar a ênfase necessária e gerar o clima emocional buscado.  Tudo o que só um grande cineasta faz.  Tendler resgata imagens e entrevistas de Santiago Álvarez e dos seus noticiários de época, além de análises e entrevistas dos que viveram e trabalharam com ele, uma espécie de gênio panfletário, que sabia muito bem aonde queria chegar e como fazer isso.

 




OS SEGREDOS DO PUTUMAYO, de Aurélio Michiles, toma como objeto de análise o trabalho de um dos pioneiros nas denúncias de violação de direitos humanos, o irlandês Roger Casement (1864-1916), que viajou pela Amazônia nos primeiros anos do século XX em missão oficial e acabou descobrindo uma das mais cruéis e abomináveis formas de escravidão e genocídio indígenas pelos britânicos, em função da exploração da borracha.  Foi diplomático o suficiente para sair vivo dessa missão e denunciá-la ao mundo.  Permaneceu lutando pela independência da sua Irlanda, o que lhe valeu um final trágico. O filme é um libelo, muito bem conduzido, com uma narrativa lenta, forte, e que nos leva, por meio de belas imagens, à inconformidade contra atrocidades que só o ser humano é capaz de realizar.  Narrado pelo ator irlandês Stephen Rea.

 




JAIR RODRIGUES – DEIXA QUE DIGAM, dirigido por Rubens Rewald, é um documentário muito competente sobre um artista cujo talento se evidencia por inteiro.  Jair Rodrigues (1939-2014) foi um excelente cantor de sambas, mas também dos mais diferentes gêneros, com um repertório muito bem escolhido e momentos memoráveis, quando, com seu primeiro sucesso, antecipou o rap com “Deixa Isso Prá Lá”, o Fino da Bossa, com Elis Regina, os Festivais e a inesquecível interpretação de “Disparada”, sucessos como “Tristeza”, “Majestade, o Sabiá” e tanta coisa mais, que o filme mostra com toda a clareza.  É possível conhecer e apreciar esse trabalho muitíssimo bem.  É isso o que importa, quando se focaliza uma obra artística de peso, como é o caso aqui.

 




LIBELU – ABAIXO A DITADURA, de Diógenes Muniz, o vencedor da competição brasileira, é de fato um trabalho muito interessante e oportuno.  O documentário reconstrói, por meio de registros, imagens de época e muitos depoimentos, a trajetória do grupo trotskista de resistência à ditadura militar, “Liberdade e Luta”, ou, como ficou conhecido, “Libelu”, que existiu de 1976 a 1985.  De um lado, visto como radical, de outro, como da esquerda festiva, o grupo atuou nas ruas em passeatas e eventos, após a derrota da luta armada, e foi responsável pela adoção pública do slogan “Abaixo a ditadura”, que até então não estava consagrado nas manifestações estudantis.  É surpreendente observar alguns de seus antigos integrantes dando depoimentos hoje.  Radicais?  De esquerda?  Eduardo Giannetti da Fonseca, Demétrio Magnoli, Josimar Melo, Cleusa Turra, Laura Capriglione, Eugênio Bucci, Antônio Palocci, Reinaldo Azevedo, Paulo Moreira Leite, José Arbex.  Enfim, tem de tudo aí, não é não?  Muito bom esse resgate histórico.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

É TUDO VERDADE 2020

Antonio Carlos Egypto 



 O Festival Internacional de Documentários É TUDO VERDADE, um dos mais importantes eventos cinematográficos do país, chegou ao seu 25º. ano às vésperas da pandemia. Estava marcado para estrear nos cinemas de São Paulo e do Rio de Janeiro no final de março de 2020. Cheguei a participar da coletiva do festival, conduzida por Amir Labaki, seu criador, ao lado dos apoiadores Eduardo Saron, do Itaú, Paulo Casales, do SESC, e Laíz Bodanski, do SpCine, muito pouco tempo antes do fechamento geral que o novo coronavírus obrigou o mundo todo a fazer. O festival foi remarcado para setembro, na esperança de que até lá seria possível realizá-lo presencialmente. Enquanto isso, uma programação on line foi oferecida como aperitivo e complemento. Como estávamos enganados! 





 Ausentei-me de São Paulo por um longo período, retornando agora, já sabendo que o “É Tudo Verdade” só seria possível mesmo on line. É muito complicado acompanhar um evento dessa grandeza e importância de casa, pela tela do notebook ou mesmo da TV. Do smartphone nem se fala. Vi alguns filmes disponibilizados para a imprensa com antecedência em relação à sua exibição nas plataformas do festival. E como já intuía, gostei muito do que vi. A programação dos documentários é ótima. Mas me deparei com problemas técnicos de toda ordem. Ter de fazer uma troca de bateria do notebook, tentar estabilizar o sinal de Wi-Fi que estava oscilante, interrupções momentâneas de energia, providências domésticas, atrapalhando a possibilidade de assistir aos filmes desejados. Para completar, o envio pelo UOL Host para as minhas listas está impossibilitado por um apagão deles que já durou, até agora, 15 dias. Por isso, desisti de escrever acompanhando o festival, para fazer comentários só ao final dele. Pelo menos, a gente pode guardar alguns títulos que merecem atenção quando ocorrer o seu lançamento nos cinemas ou em plataformas de streaming. E agradecer pela qualidade do material selecionado e exibido, apesar de todas as dificuldades, e da inevitável frustração de não ver os filmes nos cinemas, não encontrar as pessoas, comentar, compartilhar impressões. Fazer isso por trás das telas, confesso, não me entusiasma.





 GOLPE 53, de Taghi Amirani, nos remete ao golpe de Estado, promovido pelos Estados Unidos, que derrubou Mossadegh e interrompeu uma trajetória democrática no Irã. Vieram os tempos de realeza e autocracia do xá Reza Pahlavi, que resultaram finalmente no regime religioso e opressor dos aiatolás. Foi assim que os norte-americanos produziram mais um inimigo. O que os documentos pesquisados também mostram é o papel de grande relevância do Reino Unido nesse golpe, com revelações que ficaram escondidas por todo esse tempo. Dá para entender o que acontece nas relações do Irã com Reino Unido e Estados Unidos, do ponto de vista histórico e político com clareza.

 Outro belo trabalho é o do documentário ROLO PROIBIDO, dirigido por Ariel Nasr, que retrata a luta pela sobrevivência dos muitos filmes realizados pelo Afeganistão, tanto os ficcionais como os que preservam a história do país, da revolução comunista às guerras “tribais” que resultaram na opressão talibã. O milagre da salvação do cinema afegão, apesar das queimadas talibãs, mostra o que a paixão pelo cinema pode fazer pela história da humanidade.

 COLECTIVE, de Alexander Nanau, da Romênia, parte de um incêndio numa boate, muito semelhante ao que o ocorreu em Santa Maria, RS. Com muitos queimados sendo hospitalizados e mortes, que acabam levando à descoberta de um grande esquema de corrupção por trás do sistema de saúde

. O documentário chinês CIDADE DOS SONHOS, de Weijun Chen, nos leva a agora famosíssima Wuhan, que está na origem da pandemia. Mas a história é anterior, claro. E trata da resistência de um veterano vendedor de rua, de frutas e roupas, que as autoridades municipais decidem desalojar, sem imaginar até onde ele poderia chegar na resistência, na luta pela sobrevivência. 



Wim Wenders



 O filme que encerra o festival neste domingo, 04 de outubro, WIM WENDERS-DESPERADO, dirigido pelo australiano Eric Fiedler e por Andreas Frege, é uma boa oportunidade para entrarmos em contato com a figura, as ideias e os métodos de trabalho do grande cineasta alemão Wim Wenders. O documentário aborda toda a produção do diretor, seus sucessos, prêmios, reconhecimento da crítica, mas também suas dificuldades, inclusive o problema que foi o fracasso do filme “Hammett” e o relacionamento conturbado com Francis Ford Coppola. A participação de Coppola em entrevistas, em paralelo à de Wenders, esclarece a questão. E a relação de Wenders com o cinema norte-americano, em que ele sempre buscou atuar. Na verdade, fazendo na América filmes alemães, como os festejados “Paris, Texas” e “O Amigo Americano”. Muitos outros depoimentos complementam a visão desse criador que se joga e salta no escuro quando faz seus filmes. Seu colega de geração, o cineasta Werner Herzog, seu colaborador Ry Cooder, o ator Willem Dafoe, a atriz Andie Mac Dowell e muitos outros contribuem com suas visões para compor o competente retrato de Wim Wenders que o filme consegue montar. Quem quiser ver, pode acessar gratuitamente em www.etudoverdade.com.br

 Esses foram os documentários que consegui ver. Lamento não ter visto “A Cordilheira dos Sonhos”, do chileno Patricio Guzmán, que julgo ter sido a pérola do certame. Outra oportunidade virá. Dos documentários brasileiros, tratarei em outro texto.




quinta-feira, 1 de outubro de 2020

CINEMA...EM CASA (3)

                              Antonio Carlos Egypto                                

 

Vou preenchendo este longo período de permanência em casa, em função da pandemia, que se alonga muito por conta da condução incompetente com que ela tem sido gerida, as idas e vindas, os desencontros, a irresponsabilidade governamental.  Podiam ter evitado a perda de muitas dessas vidas, ter feito um  lockdown  para valer por um período definido, sem concessões, e o resultado teria sido outro.  Enfim, restou a cada um fazer a sua parte, na medida de suas possibilidades.   Enquanto o quadro trágico se desenrolava, de vez em quando era preciso desligar o noticiário e rir um pouco.


 

Dino Risi


Nesse sentido, foi providencial o lançamento recente de uma caixa de DVDs da Versátil Home Vídeo, chamado de “Obras Primas da Comédia”, com 6 filmes italianos do gênero restaurados, realizados na década de 1960. 

 

Como sabemos, esse período foi especialmente brilhante para o cinema italiano, que revolucionou as telas do pós-Segunda Guerra Mundial com o neorrealismo.  E, ao lado do drama social, explorou o humor, os hábitos e costumes dos agrupamentos humanos das diferentes regiões italianas.  Com argúcia e perspicácia política nos levou a dar boas risadas, embalados por atores e atrizes espetaculares.  Nessa caixa é possível apreciar o trabalho de Vittorio Gassman, Alberto Sordi, Ugo Tognazzi, Nino Manfredi, Claudia Cardinale, Claire Bloom, Silvana Pampanini e outros.

 

O diretor mais presente na caixa, com 3 filmes, é Dino Risi (1916-2008), um dos pais da comédia italiana.  E o maior destaque, o filme “Os Monstros” (I Monstri), de 1963, uma sátira da sociedade italiana da época, dividida em vinte esquetes hilariantes, protagonizados por Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi, com participação também de Lando Buzzanca.

 


Vittorio Gassman


“Sua Excelência, o Trapaceiro” (Il Mattatore), de 1964, é outro grande trabalho de Risi, em que Gassman explora sua capacidade histriônica com maestria, aplicando todo tipo de golpe, dando vazão à sua versatilidade interpretativa.

 

Um pouco menos brilhante, “O Caradura” (Il Gaucho), também de 1964, de Risi, dá a Gassman novamente a oportunidade de explorar um talento cínico e pretensões golpistas, num festival de cinema em Buenos Aires.  Seu amigo italiano vivendo na Argentina dá a Nino Manfredi a oportunidade de compor um tipo, o do imigrante pobre, envergonhado do seu insucesso, que nos faz rir e pensar.

 

“O Magnífico Traído” (Il Magnifico Cornuto), de 1964, de Antonio Pietrangeli (1919-1968) é uma comédia inteligente que explora o onipresente tema do cornudo, mostrando como as diferenças de gênero pesam nessa questão. Ugo Tognazzi protagoniza com brilho um filme que tem Claudia Cardinale no auge da beleza.  É um filme marcante desse período da comédia italiana.

 


Alberto Sordi


Os dois outros filmes da caixa têm Alberto Sordi em estado de graça.  Em “O Professor de Vigevano” (Il Maestro di Vigevano), de 1963, ele encarna um professor de escola primária, todo sistemático, que encara com galhardia uma existência digna, mas pobre. Já a mulher, (Claire Bloom) não aguenta mais isso e o leva a ser empreendedor no ramo de calçados. Não seria novidade, já que a pequena cidade de Vigevano vive e respira a produção e venda de calçados com sucesso.  Mas para o professor não será tão fácil.  A começar pelas concessões que terá de fazer, a malandragem que ele não tem, e por aí vai.  O filme tem um interessante approach político, o que não surpreende, já que seu diretor Elio Petri (1929-1982) faria grandes filmes políticos, como “Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” (1970) e “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1971), já num registro dramático. Mas foi muito bem na comédia, também.

 

O que foi aqui chamado de “Perdidos na África”, de 1968, tem um titulo original imenso: Riusciranno i nostri eroi a ritrovare l’amico misteriosamente scompasrso in Africa?  É o único filme colorido da caixa. Alberto Sordi faz um empresário que se mete numa aventura na África, com seu empregado de comportamento estranho, em busca do cunhado que sumiu e que aparecerá de inúmeras maneiras. O filme tem um tratamento que brinca com os clichês, tanto da África, quanto dos italianos, mas também combate preconceitos e atitudes autoritárias e arrogantes. A direção é de Ettore Scola (1931-2016), de grandes filmes, como “Nós que Nos Amamos Tanto” (1974), “Um Dia Muito Especial” (1977), “Casanova e a Revolução” (1982) e “O Baile” (1983).

 

Foi muito divertido revisitar a comédia italiana dos bons tempos, para relaxar e esquecer um pouco desse coronavirus tão onipresente.

                                                                                                                         


quarta-feira, 16 de setembro de 2020

CINEMA...EM CASA (2)

Antonio Carlos Egypto



 

No momento em que escrevo a mão este texto sobre o que tenho curtido de cinema, em DVD por aqui, estou numa varanda de casa, em Águas de São Pedro..  Acompanhado pela presença e pelo canto de inúmeros e variados pássaros, alguns até bem estridentes, pelo voo de urubus que aqui passeiam e quase sem notar os gatos da vizinhança que aparecem sempre, sem dar aviso, e circulam livremente pelos limites da casa.  A caravana não passa, mas os cães ladram mesmo assim.

 

Uma vez, há um tempo, um pato selvagem subiu em cima do nosso telhado, sabe-se lá por quê, fazendo um barulhão.  Há um lago, uma represa, perto de casa, mas nem tão perto assim.  Há poucos dias, fui colocar o saco de lixo no local de coleta, em frente de casa, à noite, e me deparei com um tatu.  Pena que não pude fotografá-lo.  No centro da cidade, há poucas semanas, passeavam tranquilamente quatis pela rua, esses deu para fotografar. Lagartos circulam amiúde por todos os cantos. Em tempos de isolamento, além da esposa, tenho os animais por perto.  A proximidade da natureza provê isso e dá o toque curioso dessa vida em compasso de espera que estamos vivendo.

 



Uma boa companhia na tela da TV foi o box de DVDs “Essencial Agnès Varda”, lançado recentemente pelo www.obrasprimasdocinema.com.br.  Gostei muito do material que veio nessa caixa, porque já conhecia e admirava o trabalho dessa grande mulher cineasta, de uma obra admirável, mas não conhecia os filmes aqui mostrados, exceto um.

 

Já comentei aqui no  cinema com recheio  vários filmes de Agnès Varda (1928-2019) e a profunda relevância da obra que ela nos legou, com destaque para filmes como “La Pointe Courte” (1954), “Cleo das 5 às 7” (1962), “As Duas Faces da Felicidade” (1965), “Sem Teto, Sem Lei” (1985), que estão em outro box do Obras Primas.  Além deles, vale citar “As Praias de Agnès” (2008), lançado em DVD pelo Instituto Moreira Salles, e “Visage, Villages” (2017).  Destaco ainda o último filme dela, “Varda por Agnès”, de 2018, autêntico testamento artístico costurado por ela, revisitando os principais aspectos de sua criação, ao longo do tempo.  Esse último filme foi recentemente lançado em DVD pela Imovision (loja.imovision.com.br) e é indispensável.

 

Agnès Varda


Para quem já conhecia tudo isso, foi muito interessante conhecer outros 3 longas e 13 curtas-metragens da cineasta.  Tudo muito bom, como toda sua obra, que é muito pessoal, afetiva, intensamente marcada pela arte e pela política e que combina o documentário e a ficção, em narrativas em que ela, Agnès, está sempre presente (até no título, como se pode ver).

 

O longa “Jane B por Agnès V” (1988) é um retrato poético da atriz Jane Birkin, perscrutando a intimidade e explorando possibilidades em uma fantasia realista, a partir da disposição da atriz de se expor e também dos seus limites na relação que se estabeleceu com a pessoa e a câmera de Agnès Varda.

 

“Kung-Fu Master”, filme realizado no mesmo ano de 1988, em paralelo ao outro, traz uma história de amor improvável, vivida por uma mulher de 40 anos (Jane Birkin) com um jovem de 15 anos, papel do filho de Agnès, Mathieu Demy.  O título, pouco atraente, refere-se ao game favorito do garoto.  A abordagem é muito inteligente, cuidadosa e veraz. 

 

Jane B. por Agnès V.


O terceiro longa, “Jacquot de Nantes” (1991), revela outra bela história de amor, a da própria Agnès por seu marido, o cineasta Jacques Demy (1931-1990), cuja obra ela sempre lutou para preservar e difundir e homenageou nesse filme, uma biografia de Demy, a partir das próprias lembranças dele no fim da vida, remetendo ao passado, à infância, à adolescência e aos primórdios do trabalho como cineasta.  Ela fez também, em 1993, “O Universo de Jacques Demy” sobre a obra artística desse grande cineasta da  nouvelle vague.  Como ela, aliás.

 

Só para lembrar alguns ótimos filmes de Jacques Demy, “Lola, a Flor Proibida” (1960), que também revi nessa quarentena, excelente, da Lume Clássicos, do Maranhão, que acaba de reativar seu setor de DVDs.  “Baía dos Anjos” (1963), “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1964), “Duas Garotas Românticas” (1967), “Pele de Asno” (1971), com especial destaque para o desempenho de Catherine Deneuve na maioria desses títulos.  Nesse box  Essencial Agnès Varda  há também um curta-metragem de Jacques Demy, “O Tamanqueiro do Vale do Loire”.  Isso, além dos 13 assinados por Varda.

 

Quanto aos curtas dela, são todos muito interessantes, têm muita criatividade, espírito crítico e posicionamentos políticos e artísticos claros e consistentes.  Vale a pena conhecer cada um deles.  Eu destacaria ”Os Panteras Negras”, neste momento de reflexão indispensável sobre as manifestações antirracistas.  O curta de 1968 dialoga com isso.  Mas há de tudo nos curtas, com ênfase na pessoa humana, além da arquitetura, do social, do fruir estético.  Uma mulher como essa é uma glória do cinema.  Passei a gostar ainda mais do trabalho dela, após conhecer essas obras. 




sábado, 12 de setembro de 2020

CINEMA...EM CASA (1)

Antonio Carlos Egypto

 

Não bastaram as guerras, o consumismo desenfreado, as emergências climáticas cada vez mais intensas e frequentes, as crises econômicas por todo canto, os excessos que marcam o nosso mundo contemporâneo, para frear a ação humana deletéria sobre o planeta.  Foi preciso um vírus atacar e fragilizar cada um para nos fazer parar e nos mostrar que estamos num caminho inviável, insustentável.  Diante do  pare ou morra,  tivemos que parar.  E o ano 2020 praticamente desapareceu do calendário.  Antes de desejar  Feliz 2021  para vocês, vou lhes contar um pouco sobre o que restou para mim do cinema, confinado em casa.

 

Como me afastei de São Paulo e já não tenho mesmo o hábito de curtir  streaming, tratei de garantir uma boa programação noturna, por meio do DVD, que sempre foi a minha forma preferida de ver filmes fora do cinema.  Geralmente, porque dá acesso a títulos mais antigos ou menos conhecidos de cineastas ou filmografias de diferentes regiões do globo.  Mas também porque curto ter a mídia física comigo, para dispor dela a qualquer hora.  Além de ter uma atração por colecionar os grandes momentos da história do cinema ou grandes descobertas modernas. 

 

Fiz uma seleção dos filmes em DVD que já tinha e queria conhecer ou rever, comprei algumas novas coleções e levei para o meu isolamento em Águas de São Pedro.  Espero que acabem servindo como sugestão em tempos que permanecem restritos à livre circulação e aglomeração.  Mesmo que os cinemas reabram logo, é inevitável que muitos de nós, os mais velhos, ou os mais vulneráveis, não queiramos ainda frequentá-los durante um tempo.

 

Sei que uma solução  retrô  se revelou eficiente em várias partes: o cinema  drive-in.  O do Belas Artes em São Paulo, no Memorial da América Latina, pelo que soube, estava um sucesso.  Como solução temporária, muito legal, mas não supre a necessidade do convívio, do contato humano, da troca, nem da novidade compartilhada por muitos. Compreensivelmente, se dirige mais à saudade dos grandes espetáculos em tela grande, dos sucessos do cinema.  Mas foi uma iniciativa bem interessante e criativa.  Parece nos dizer, também, que há que se voltar num tempo e revisar hábitos, inevitavelmente. 

 

Alain Resnais

Um dos cineastas que elegi para me acompanhar no isolamento foi o francês Alain Resnais (1922-2014).  Um dos grandes criadores do cinema, Resnais se destaca por ser inovador da forma e da narrativa.  Ele embaralha o tempo, confunde a ficção com a realidade, personaliza o coletivo, separa radicalmente a música da ação, explora o inusitado do amor e do relacionamento, sob todos os ângulos possíveis.  Bem, isso e muito mais.  Para começo de conversa, ele tira o espectador da zona de conforto e quebra expectativas com um talento admirável com a câmera.

 

Resnais tem obras absolutamente geniais incorporadas à história do cinema, como “Hiroshima, Mon Amour” (1959), “O Ano Passado em Marienbad” (1961) e o documentário “Noite e Neblina” (1956).  Indispensáveis.

 

Aliás, foi porque incluía “Noite e Neblina” na caixa é que eu fui logo atrás de “O Cinema de Alain Resnais”, recém-lançado pela Versátil Home Vídeo, que reúne 6 filmes restaurados do diretor.  Alguns bastante experimentais ou estranhos, mas sempre bonitos, bem-humorados e surpreendentes.  Lá está “Meu Tio da América” (1980), um estudo biológico-comportamental da espécie humana e sua relação com o ambiente, explicitada por meio de três personagens.  Original é pouco. 

 


E que tal “Muriel” (1963), em que a personagem que dá nome e algum sentido ao filme nunca aparece? E a guerra da Argélia é onipresente, mas nunca mostrada? “A Vida é Um Romance” (1983) trata de uma utopia da felicidade nos anos 1910, a busca da sociedade ideal, por meio também de três histórias que se cruzam.

 

“Morrer de Amor” (1984) é um ensaio sobre paixão e morte, onde literalmente se morre de paixão.  Tem até volta à vida.  Bem interessante e provocador.  Completa a caixa “Melô” (1986), que é, naturalmente, um melodrama lascado, adaptado de uma peça de Henri Bernstein.

 

Só para lembrar, “Noite e Neblina” é um impressionante trabalho realizado em apenas 33 minutos sobre os campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, opondo o vazio daquele momento aos horrores vividos naqueles espaços de extermínio.  Impressionante e definitivo relato, recheado de material de arquivo, realizado poucos anos após o fim do conflito.




Esses foram os filmes de Alain Resnais que vi na chamada quarentena (interminável).  Mas gosto imensamente de outros filmes dele, como “Providence” (1977), “Medos Privados em Lugares Públicos” (2006), “Ervas Daninhas” (2009) e seus últimos trabalhos “Vocês Ainda Não Viram Nada” (2011) e “Amar, Beber e Cantar” (2014).  Há críticas de muitos desses trabalhos aqui no blog.

 

Nesses muito longos dias de isolamento social, pude ver muitas outras coisas, das quais espero reportar no  cinema com recheio  em datas próximas.  Comecei por Alain Resnais porque acho fundamental conhecer essa obra cinematográfica tão única e, por todos os títulos, brilhante.

 

Vou tentar fazer uma pequena série de textos englobando outros diretores, gêneros ou temas.  E postar enquanto eu permanecer em São Paulo, já que essa pandemia parece nunca ter fim.


domingo, 7 de junho de 2020

EM QUARENTENA

Antonio Carlos Egypto





O cinema saiu de cena.  E eu também.  Dei um tempo para vocês.  Não foi intencional, nem planejado.  Aliás, nada do que vivemos no momento foi intencional ou planejado.  O aleatório, o inesperado, faz parte da nossa vida muito mais do que gostaríamos de admitir.  Alguns preferem criar a fantasia do vírus concebido em laboratório pelos chineses.  Negam a irracionalidade do mundo, o inconsciente, a destruição do planeta, a própria doença.  Como se pudéssemos manejar tudo.  Fazemos escolhas, como Teich.  Exatamente por não termos domínio da situação.

Quando foi imperioso ficar em casa, com meus mais de 70 anos e com minha esposa alguns anos mais velha, ficou muito incômodo permanecer no apartamento, com um prédio em construção bem ao lado.  A solução era óbvia.  Mudar por uns tempos (quantos, nunca se sabe) para a nossa casa de veraneio em Águas de São Pedro.  Quando a compramos, há 20 anos, a ideia era, quem sabe, ficar por lá, quando batesse a velhice.  Nessa hora em que a gente quer mais sossego do que agitação e o corpo já não obedece à mente.  Essa hora ainda não chegou, quero crer.  Mas o estigma do vírus que ataca preferencialmente os idosos pesa.



Lá temos o privilégio de usufruir de uma casa gostosa, confortável, bem arejada e solar, com varandas e vista para um lago.  O que eu poderia desejar mais do que isso, durante uma pandemia, em que o programa é ficar em casa?

Permaneci por lá nos últimos 70 dias, usufruindo de tudo isso, mas tive de voltar agora, por conta da declaração do imposto de renda, que deixamos para trás.  Pretendo voltar em seguida, porque para nós o isolamento social permanece indicado.  Ou melhor, indispensável. 




Só que lá não disponho da mesma tecnologia que está à disposição em São Paulo.  Não tenho wi-fi nem TV a cabo.  Internet, só pelo smartphone, com limitações.  A TV aberta, jornais e sites, garantem as notícias (cada vez mais absurdas e assustadoras).  CDs e DVDs dão conta das músicas e filmes preferidos.  Tem também os livros.  Ver filmes inteiros pelo celular ou digitar textos por lá, nem pensar.  É preciso ser telegráfico.  Nas mensagens, nos textos, nos vídeos para assistir.  E quem  precisa de tanto estímulo?  Como já dizia Caetano Veloso, em “Alegria, Alegria”, em 1967/68, quem lê tanta notícia?

Tenho recebido por e-mail, via celular, muitas informações sobre lançamentos de filmes em streaming, ofertas de filmes gratuitos on line, mas não é apropriado para o meu atual momento ou possibilidade.  O coronavírus me fez parar.  Eu posso fazer isso e acho que tem seu valor esse encontro comigo mesmo e essa reflexão sobre o que nos espera.  Nessa hora, não estou preocupado em ser produtivo ou estar atualizado.  Tudo tem seu tempo.




Penso nos trabalhadores da área da cultura e nos trabalhadores em geral, para quem o desafio desse período está sendo devastador e, claro, temo pelo futuro de todos nós e da cultura, no país.  Da escalada de mortes que assola o Brasil, nem se fala.  Se alguém que me lê agora perdeu parente ou amigo nessa pandemia, aceite meus sentimentos.  Isso não aconteceu comigo.  Pessoas próximas sofreram com a doença, inclusive um morador aqui do nosso prédio, que se recupera após longo período hospitalar, com entubação, hemodiálise e tudo o mais.  Espero que sobrevivamos.  Cuidem-se.  E, se puderem, fiquem em casa.