quarta-feira, 17 de abril de 2024

ZONA DE EXCLUSÃO

          

Antonio Carlos Egypto

 

 


ZONA DE EXCLUSÃO (Zielona Granica).  Polônia, 2023.  Direção: Agnieszka Holland.  Elenco: Jalal Altawil, Maja Ostaszewska, Behi Djanati Atai, Tomasz Wlosok.  147 min.

 

O título em português do filme de Agnieszka Holland, “Zona de Exclusão”, parece abrangente o suficiente para tratar de uma questão que se torna cada vez mais grave na Europa e em todo o mundo: a imigração dos refugiados de guerra, da fome e de perseguições políticas e religiosas.  As fronteiras são verdadeiras zonas de exclusão, como é o caso da que fica entre Belarus e a Polônia, em que uma família de refugiados sírios, uma senhora e um professor do Afeganistão são jogados de um lado para o outro da fronteira porque ninguém os quer.  Isso após terem chegado de avião a Belarus, com um esquema aparentemente montado para passar a viver na Polônia.  Foram vítimas de uma fraude.

 

Ativistas trabalham para ajudar os refugiados que ficam acampados nas florestas, expostos a tudo, sem saber como agir.  Há efetivamente uma zona de exclusão máxima, por onde eles teriam de passar para alcançar seus destinos.  Lá eles não podem receber qualquer tipo de ajuda e estão sujeitos à morte, com grandes possibilidades de isso ocorrer.  Quem se arrisca nessa zona joga no tudo ou nada.  E os ativistas que se aventurarem também arriscam sua liberdade e a própria vida.

 

Esse grupo de refugiados que veio da Síria encontra apoio de uma psicóloga ativista, que mora perto da fronteira, e de seus colegas. Enfrenta a polícia de fronteira em que até um jovem guarda começa a perceber o absurdo daquela perseguição toda.

 

A situação alcança uma dramaticidade visceral na narrativa em preto e branco adotada pelo filme.  Ela parece nos dizer que um tenebroso passado continua intacto por aí.  E que alguns valem mais do que outros na escala da humanidade.  Enquanto a Polônia repele as vítimas da guerra na Síria, acolhe os ucranianos que fogem da guerra com a Rússia.  Não há racionalidade possível diante da violência dos Estados e diante do absurdo maior que é a própria guerra, qualquer guerra.

 


Assistir à longa duração de “Zona de Exclusão” é se dispor a viver a tragédia da imigração “ilegal” nos nossos dias, passo por passo.  Sofrimento administrado em doses homeopáticas, a maior parte do tempo.  Em momentos ultradramáticos, não, a câmera se agita loucamente e nos arrasta para a tragédia.

 

Um filme tenso, bem construído, com um bom roteiro e um elenco empenhado, tratando de uma questão muito importante e muito grave da atualidade.

 

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Gostaria, ainda, de lembrar dois outros filmes que estão em cartaz, que merecem atenção.

 

20000 ESPÉCIES DE ABELHAS, o filme espanhol de 2023 da diretora Estibaliz Urresola Solaguren, pode parecer, mas não é documentário.  É um drama sobre uma criança trans, mostrado com bastante sutileza, delicadeza e respeito aos sentimentos humanos, em meio a abelhas, colmeias, rainhas e uma feminilidade que esse expressa de diferentes formas e estilos.  Destaque para a atriz mirim Sofia Otero. 125 min.

 

O filme francês, de 2023, TUDO OU NADA, da diretora Delphine Deloget, no original Rien à Perdre (Nada a Perder), aborda uma questão bem relevante, a atuação do Estado em relação à vida privada. Quando o Serviço Social Público atua para proteger uma criança de acidentes domésticos, acaba agindo de forma autoritária, impositiva, burocrática e insensível em relação aos afetos.  Provoca uma reação visceral e justa de uma mãe determinada a vencer uma dura batalha judicial, apesar de suas limitações.  Destaque para a atuação de Virginie Efira.  112 min.

 

terça-feira, 16 de abril de 2024

E A FESTA CONTINUA!

                

 Antonio Carlos Egypto

  


E A FESTA CONTINUA! (Et La Fête Continue!).  França, 2023.  Direção: Robert Guédiguian.  Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Lola Naymark, Robinson Stévenin.  106 min.

 

“E a Festa Continua!”, dirigido por Robert Guédiguian, é o que se pode chamar de um filme coral.  Reúne diferentes personagens, com distintas questões, que terão de aprender a conviver com outros e caminhar na busca de seus objetivos pessoais e coletivos.

 

A cidade de Marselha é um importante personagem da história.  Por sua beleza e por seus problemas.  Tudo começa com prédios condenados a desabar, que colocam as pessoas na condição de sem-teto, de uma hora para a outra, sem a devida previsão e assistência.  Não falta quem pratique o ativismo social e os apoie e organize lutas junto ao poder público e à sociedade.  Sem se esquecer de promover um congraçamento embalado pela música.  De contestação, por que não?  Mas animada e divertida.

 

O amor e a afetividade têm grande força no filme e questões identitárias também.  A comunidade armênia, que busca crescer e se valorizar, por exemplo, espera de um jovem apaixonado que faça planos de casamento com muitos filhos.  O que pode não ser desejado ou possível, junto à sua amada.  Os que se redescobrem amando e encantados em torno dos 70 anos é outro aspecto fundamental da realidade aqui abordada.

 

E quem está presente juntando todas essas coisas?  Um busto de Homero, o poeta da Grécia antiga, tido como cego, que serve de testemunha ao que acontece na cidade.  Por ser cego, não vê, mas ouve os desabamentos ruidosos e muito mais.  É em nome dele que se tem que travar batalhas homéricas por um mundo melhor.  Com persistência e resiliência, acreditando sempre, recomeçando sempre. 

 


“E a Festa Continua!” está falando de vida e das nossas crenças em meio a uma realidade nem tão festiva assim, mas que tem causas a unir as pessoas.  Causas político-eleitorais também.  É a partir do município que as transformações passam a acontecer.  Muito apropriado para o nosso momento político, com eleições municipais este ano.  Por lá o tom é de esquerda, mas, como de costume, falta união em torno da causa.  O que dificulta a escolha de um candidato comum.

 

Já deu para perceber que o filme é todo amor, poesia e política, ecoando um mundo mais solidário e humano do que temos visto por aí, em qualquer parte. Ressalta a importância de ler e compreender o mundo e as pessoas para alcançar avanços significativos.  E superar a inevitável solidão a que estamos expostos.  A comida compartilhada também tem seu papel quanto a isso.

 

Um belo elenco, bem afinado, nos transmite esse sentimento elevado que está na base da proposta do filme.  E que, com leveza, vai nos indicando um caminho generoso a seguir.

 


LUIZ MELODIA – NO CORAÇÃO DO BRASIL, documentário brasileiro, de 2024, dirigido por Alessandra Dorgan, 85 minutos, foi o filme que encerrou o festival É TUDO VERDADE.  Todo realizado com imagens de arquivo e narrado em primeira pessoa pelo compositor, cantor e ator Luiz Melodia (1951-2017), é um belo trabalho que resgata a sua obra com competência.  Eu quis saber sobre o lançamento do filme nos cinemas.  A resposta que obtive é de que não há previsão.  Pode, inclusive, chegar ao streaming direto.  Agora, vai percorrer o circuito dos festivais.  É pena, mas é isso.

 

 

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

MARK COUSINS DOCUMENTARISTA

                                 

 Antonio Carlos Egypto

 

 




“O documentário é menos um gênero (subproduto) do cinema, do que algo como uma megalópole cinematográfica, onde vários gêneros e linguagens do filme convivem e interagem”. 

 

A citação acima é do documentarista irlandês Mark Cousins, que tem uma retrospectiva em exibição no festival É TUDO VERDADE 2024, em que ele atua também como membro do júri oficial da competição.

 

O trabalho dele como documentarista é original, muito criativo, revela um grande amor ao cinema e tem uma estética admirável, destacando a beleza como elemento constitutivo essencial da sua obra. 

 

EU SOU BELFAST, de 2015, faz uma representação visual e poética da cidade que ele ama e onde viveu muitos anos, mas personificada por uma mulher idosa, que viveu e experimentou a história daquela bela cidade irlandesa, papel vivido por Helena Bereen.  Um filme para curtir uma beleza incrível, encantadora.  84 minutos.

 


Em seus documentários, Mark Cousins explora as várias facetas da história do cinema e de seus realizadores.  Em dois filmes dessa retrospectiva estão OS OLHOS DE ORSON WELLES (2018) e MEU NOME É ALFRED HITCHCOCK (2022).  A obra cinematográfica de Orson Welles (1915-1985) é esmiuçada e tecida ao mesmo tempo em que se destaca o trabalho de desenhista do cineasta.  Seu pincel e seu traço mostram um retrato do universo visual do realizador em perfeita sintonia com seu cinema.  115 minutos.  A obra de Alfred Hitchcock (1899-1980) também é esmiuçada em seus temas e técnicas de forma bem ampla, em avaliação crítica aprofundada.  Mas isso tudo é feito na primeira pessoa, pela voz de Hitchcock, que procura refletir sobre o seu legado, relacionando-o com os dias de hoje (sic).  120 minutos.

 

Em A HISTÓRIA DO OLHAR (2021), ele faz uma exploração visual do olhar, que vai nos envolvendo, nos convencendo do que o olhar pode nos dar, dependendo do momento, do ângulo, do sentimento, da luz.  O ponto de partida é o fato de que o cineasta estava às vésperas de uma cirurgia oftalmológica de catarata e mostra que, o que nos pode faltar, nos leva a um apelo ainda maior àquilo.  90 minutos.

 


Em MARCHA SOBRE ROMA, produção italiana de Mark Cousins de 2022, materiais de arquivo, alguns bem raros, são trabalhados para mostrar a ascensão de Mussolini e do fascismo, a partir daquela famosa marcha que completava 100 anos.  Foi o elemento detonador de uma corrente política que até que durou pouco na Itália, mas jamais deixou de assustar o mundo e gerou uma extrema direita que se fortalece nos tempos atuais.  E o filme vai além, faz relações da história com outros países e no momento atual.  Outro aspecto importante do documentário é que ele mostra como a marcha sobre Roma foi manipulada e editada para poder alcançar o resultado que produziu.  98 minutos.

 

terça-feira, 9 de abril de 2024

DOCS É TUDO VERDADE

                          

 Antonio Carlos Egypto

 

Documentários do Festival É TUDO VERDADE, 2024.

 


Em UM FILME PARA BEATRICE, Brasil, 2024, Helena Solberg reflete sobre como vão as mulheres no Brasil, a partir de questão proposta à diretora.  Para isso, ela se vale de filmes que já realizou e que, de diversas formas, traziam a temática do gênero feminino e do feminismo. Mas buscou também novas visões, a partir de encontros com Heloísa Helena, Rita von Hunty e Helena Vieira. O filme vai ampliando seu foco e percebe que a questão de gênero evoluiu, ao abarcar homens e mulheres, trans e todo o universo queer, além da questão do racismo.  Com isso, a identidade de gênero tornou-se radicalmente cultural, uma opção, que pouco tem a ver com a biologia.  Um novo mundo não binário vai se revelando nesse documentário, que aprofunda a questão, em apenas 78 minutos.

 


O COMPETIDOR (The Contestant), filme do Reino Unido, 2023, dirigido pela cineasta Clair Titley, é assustador, ao revelar a história real de um dos primeiros reality shows realizados pela TV, no mundo. E mostra a que nível de crueldade e manipulação as pessoas podem ser capazes de chegar em nome do entretenimento, sem ética e sem limites.  Isso ocorreu no Japão, em 1998.  A competição era de um homem isolado num apartamento por um longo período, nu, e tendo que ganhar cupons de prêmios de concurso para sobreviver.  Sem comida, sem nada, além de alguns móveis e de um monte de revistas, inicialmente. A experiência estava sendo transmitida ao vivo para mais de 15 milhões de pessoas.  Com um detalhe, sem que Nasubi, o competidor, soubesse disso.  Impressionante.  90 minutos.

 


BRIZOLA, o documentário brasileiro, de 2023, de Marco Abujamra, foca na trajetória de Leonel Brizola (1922-2004), contextualizando-a dentro da realidade política e social brasileira, dos anos 1960 até os anos 2000, enquanto o ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro esteve ativo na história do Brasil.  Passa pelo período da ditadura militar, em que o político gaúcho, cunhado do ex-presidente João Goulart, resistiu bravamente ao arbítrio daqueles dias, inclui as disputas presidenciais de Brizola, após um período de ostracismo que se seguiu a um exílio muito ativo e de amplo espectro internacional.  A famosa carta de desagravo de Brizola à rede Globo de Televisão e que a Justiça determinou que fosse lida no Jornal Nacional é espantosa.  O texto que Cid Moreira teve de ler torna-se surreal na voz dele. O filme é muito bom, inclusive de um ponto de vista didático, para os que não tiveram a chance de acompanhar a trajetória desse grande líder político de nosso país. 92 minutos.

 


FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE, documentário brasileiro de Susanna Lira, de 2024, é um belo ensaio poético sobre o trabalho e a personalidade da escritora, roteirista e apresentadora de TV, Fernanda Young (1970 – 2019).  O filme realiza um vínculo muito bonito entre as muitas frases dos livros que ela escreveu, com as imagens de arquivo ou selecionadas para o caso: entrevistas, depoimentos, fotografias, filmagens em vídeo, muito material, revelando a extensa pesquisa que foi feita.  A costura poética que o filme faz de tudo isso é fascinante, mesmo para quem não acompanhou ou conheceu bem a obra da escritora, para além do seriado de sucesso “Os Normais” e alguma coisa mais, como é o meu caso.  Um trabalho de montagem primoroso, a cargo de Ítalo Rocha, produziu muita beleza, para ninguém botar defeito.  87 minutos.



sexta-feira, 5 de abril de 2024

2 FILMES EM CARTAZ

                                                               

 Antonio Carlos Egypto

 



UMA FAMÍLIA FELIZ (com o F ao contrário), longa dirigido por José Eduardo Belmonte, a partir de roteiro de Raphael Montes, que já foi lançado em livro com sucesso, tem uma história forte e intrigante.   Gera um clima tenso o tempo todo, supostamente num ambiente privilegiado.  Mas que não tem nada de feliz.   Suspense dramático e terror psicológico, a partir de questão de gravidez e filhos que ocupam a vida de uma mulher.  Enlouquecida?  Má?  Pressionada ao extremo, como a maioria das mulheres?  Ela tem depressão pós-parto, contrastando com sua atividade de construir bonecas.  O fato é que coisas estranhas estão acontecendo com suas filhas e pondo em risco um bebê recém-nascido.  Ela recebe acusações que vêm da comunidade e do próprio marido.  Esse papel dilacerante abre espaço para um belo desempenho de Grazi Massafera.  Já seu parceiro, Reynaldo Gianecchini, faz uma composição que me pareceu plácida demais para os eventos que o seu personagem vivencia.  De qualquer modo, o clima do filme é alto em tensão e intensidade, ao longo de seus 106 minutos.  É um exemplar de um filme brasileiro de gênero, realizado com bastante competência.

 



O HOMEM DOS SONHOS, produção estadunidense, dirigida por Kristoffer Borgli, com Nicolas Cage como protagonista, é um filme que parte de uma situação tão absolutamente inverossímil que não consegue sustentar, de forma minimamente convincente, a sua trama.  Trata-se de um homem comum, professor universitário da área de Biologia, pai de família, que vive uma vida anônima, até que de repente todo mundo, do nada, passa a vê-lo nos sonhos.  Gente com quem ele convive e, principalmente, gente que não o conhece.  O filme, então, se esforça por explorar o que se passa quando ele fica famoso e depois, também, quando é muito hostilizado e perseguido ao se tornar agressivo e com ímpetos assassinos, nos sonhos de todos.  Ou seja, a cultura da viralização e do cancelamento.  Ora, que sentido tem isso?  O sonho pertence ao sonhador, diz respeito a ele e aos seus sentimentos e não a quem, eventualmente, surja no sonho.  As reações das pessoas não se justificam, de forma alguma.  O personagem tenta se defender, dessa forma, dizendo não ser responsável por nada do que alguém sonhe com ele, mas não adianta. Na base da brincadeira, aparece até o que seria uma justificativa, a do inconsciente coletivo de Jung.  Nada mais absurdo.  O que pode haver de coletivo nos sonhos diz respeito à cultura, à história, aos símbolos, aos atavismos que estão nas sociedades humanas.  Não a um indivíduo atual, que não representa o conjunto da sociedade. Comédia?  Não consegui entrar nessa história estapafúrdia, nem me divertir.  102 minutos.



quarta-feira, 3 de abril de 2024

2 GRANDES FESTIVAIS

 

Antonio Carlos Egypto

 

 


De 04 a 14 de abril acontece a 29ª. edição do Festival Internacional de Documentários É TUDO VERDADE 2024, coordenado por Amir Labaki, com o que de melhor se produz em documentários no Brasil e no mundo.  E duas retrospectivas magníficas, a do diretor Mark Cousins, com 8 filmes, que vem a São Paulo e ao Rio de Janeiro, cidades que sediam o Festival (sua primeira vez no Brasil).  E a que comemora Thomaz Farkas, 100 anos, falecido em 2011.  Serão ao todo 77 filmes de 34 países, todos em sessões gratuitas, incluindo itinerância em Belo Horizonte e atividades de formação, conferências e seminários.  Um dos mais importantes festivais cinematográficos do país e o mais importante de documentários da América Latina, merece toda nossa atenção.  Em São Paulo, as sessões de cinema estão programadas para o Espaço Itaú de Cinema Augusta, Cinemateca Brasileira, IMS Paulista, Sesc 24 de maio e Spcine - Centro Cultural São Paulo.  No Rio de Janeiro, no Estação NET Botafogo e Estação NET Rio.  E tem ainda, de 15 a 30 de abril, uma seleção de curtas on line no Itaú Cultural Play.

 



O mais antigo e longevo festival de cinema do país chega à sua 50ª. edição.  O Festival SESC Melhores Filmes vai de 03 a 24 de abril com mais de 50 títulos em exibição no Cinesesc, com filmes também na plataforma Sesc Digital.  Os filmes mais votados pelo público e pela crítica, tanto nacionais quanto internacionais, como os melhores de 2023 estarão no festival.  Haverá também uma faixa histórica, com 10 clássicos restaurados do cinema brasileiro, premiados em 5 décadas de festival, e uma homenagem a Zezé Motta e o filme “Xica da Silva”, de Cacá Diegues.  Há, ainda, uma homenagem a Eduardo Coutinho (1933-2014) e seu “Cabra Marcado Pra Morrer”, em plenos 60 anos da ditadura militar.  Seu filme “Jogo de Cena” também está na programação.  Os ingressos terão preço único de R$10,00.  E não custa lembrar: o Cinesesc tem uma projeção impecável, som de primeira qualidade e o charme de um café, com salgadinhos e doces, dentro e fora do cinema.

 Abril chega com força aos cinemas, não há dúvida.

 

 

sexta-feira, 29 de março de 2024

NADA SERÁ COMO ANTES - A Música do Clube da Esquina

                        

    Antonio Carlos Egypto

 


NADA SERÁ COMO ANTES – A Música do Clube da Esquina.  Brasil, 2023. Direção: Ana Rieper.  Documentário.  79 min.

 

Quem lê meus textos, aqui no Cinema com Recheio, sabe que eu valorizo esse ramo do cinema brasileiro, que se dedica, por meio de documentário ou de ficção, à nossa melhor música popular (e à medíocre também).  Nossa música sempre teve muita qualidade para ser reconhecida mundialmente, isso aconteceu e acontece.  É um dos maiores patrimônios do nosso país.

 

O documentário “Nada Será Como Antes” destaca um desses momentos luminosos da nossa MPB, em que um grande número de músicos, compositores, letristas, produziu um trabalho inovador e de altíssima qualidade, a partir de Minas Gerais.  Na origem, no cruzamento entre as ruas Paraisópolis e Divinópolis, em Belo Horizonte, num bar onde se reuniam, entre outros, Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta.  Daí surgiu um movimento musical que resultaria em um disco histórico, reconhecido como um dos melhores já realizados no Brasil: o álbum duplo, em LP, Clube da Esquina, de 1972.

 

Participam do disco os nomes citados no poster do filme, mostrado acima, outros mais e um ilustre ausente, Fernando Brant (1946-2015), coautor de alguns dos maiores êxitos da carreira de Milton Nascimento.  Todos, os mais e os menos importantes, têm espaço no filme para falar do seu trabalho e do conjunto, expondo sua visão daquele histórico momento musical de que participaram.

 


Clube da Esquina é um feliz encontro de uma turma que se alimentava de jazz, música erudita, música afro, rock progressivo, Beatles, cinema e movimento estudantil de resistência à ditadura militar.  Essas influências são citadas e mostradas pelos integrantes do Clube da Esquina, hoje senhores já idosos.  E há quem aponte as montanhas mineiras como elemento essencial da criação musical que se fazia por lá, com altos e baixos, e picos pouco comuns aos que fazem música ao nível do mar, como o pessoal da Bossa Nova.

 

Seja como for, a diretora carioca Ana Rieper soube explorar muito bem em seu filme essa criatividade mineira, rica em diversidade, mas com um espírito coletivo admirável.  Na base da amizade, se construíram grandes e variadas parcerias, sessões musicais empolgantes, e cada um deles preservou sua identidade musical.

 

O grupo pôde contar, como divulgador, com um dos maiores cantores que já apareceram no Brasil: Milton Nascimento, uma voz belíssima, um timbre marcante, falsetes magníficos e um bom gosto de admirar como compositor.  Essencial relembrar tudo isso que, felizmente, está disponível ao nosso desfrute.  E que nos orgulha.

Este filme marca o retorno da sessão Vitrine Petrobrás, a preços reduzidos, nos cinemas.



quarta-feira, 20 de março de 2024

2 FILMES E 1 MOSTRA


Antonio Carlos Egypto

 

 



 

SAUDOSA MALOCA.  Brasil, 2023.  Direção: Pedro Serrano.  Elenco: Paulo Miklos, Gero Camilo, Gustavo Machado, Leilah Moreno, Sidney Santiago Kuanza.  108 min.

 

Pedro Serrano dirigiu um empolgante e divertido documentário sobre Adoniran Barbosa, chamado “Meu Nome é João Rubinato”.  Agora, ele prossegue com a celebração da obra de Adoniran, realizando uma ficção que toma por base a história de um dos maiores sucessos do compositor: “Saudosa Maloca”.  Adoniran (Paulo Miklos) convive com Joca (Gustavo Machado) e Matogrosso (Gero Camilo), que frequentam um bar, servido por Cícero (Sidney Santiago Kuanza) e onde se destaca Iracema (Leilah Moreno).  A trama é recheada de letras das muitas músicas de Adoniran Barbosa.  Os diálogos se alimentam delas e de encenações radiofônicas do personagem Charutinho, de “História das Malocas”, de Osvaldo Moles.  Assim vai se desenrolando a saga dos despossuídos que acabam despejados de sua maloca, tendo até de tentar trabalhar, em nome do pogréssio, que vão a um samba na casa do Arnesto, que não acontece, e a disputada Iracema termina, como sempre soubemos, atropelada na contramão.  Uma São Paulo, um Bexiga, que já não são os mesmos, é o ambiente em que se move o povo que Adoniran Barbosa conheceu e com quem conviveu de perto, nessa história que, embora contada de forma cômica, na verdade é trágica.  O lamentável é que só piorou e é cada vez menos divertida.  Vale a pena, no entanto, aproveitar a brincadeira tão bem organizada e original desse roteiro.  E curtir o desempenho de um elenco que passa muito amor pela obra e pela figura de Adoniran Barbosa, a começar por Paulo Miklos.  Todos os protagonistas estão muito bem, curtindo seus papéis.

 

 




NO SUBMUNDO DE MOSCOU (Khitrovka Znak Chetyryokh).  Rússia, 2023.  Direção: Karen Shakhnazarov.  Elenco: Konstantin Kryukov, Mikhail Porechenkov, Anfisa Chemykh, Evgeny Stychin.  129 min.

 

“No Submundo de Moscou” é uma divertida aventura russa, inspirada em Arthur Conan Doyle.  Passa-se em Moscou, em 1902, contando com alguns fatos reais da época, criando uma trama que envolve o assassinato de um residente local indiano bem misterioso.  O ambiente é o bairro pobre de Khitrovka, que entra na história porque o famoso ator, encenador e teórico do teatro, Stanislavsky, pediu ajuda ao jornalista Vladimir Gilyarovsky para ver de perto, observar, o comportamento da “Ralé”, que dá nome à famosa peça de Tchekov, em que estava atuando. Anton Tchekov, outra grande figura da época, participa da história também.  Por conta disso, tudo acontece com Stanislavsky e com Gilyarovsky, que acabam desvendando uma complicada e esotérica trama mirabolante.  Um filme policial, de detetive, que explora o exótico em todos os sentidos possíveis.  Por exemplo, a figura de um anão estranho que sopra flechinhas envenenadas certeiras, que matam instantaneamente.  Não falta também uma joia imensa e caríssima, cujo poder vale matar ou correr risco de morte.  Um entretenimento muito bem realizado.  Seu diretor, Karen Shakhnazarov, está vindo ao Brasil para divulgar seu filme por aqui.

 

OJU – MOSTRA DE CINEMAS NEGROS

 

No Cinesesc São Paulo acontece, de 20 a 27 de março, a OJU – RODA SESC DE CINEMAS NEGROS, em sua 3ª. edição.  O evento também ocorre nas unidades Sesc da capital e do interior do Estado.  Destaque para o ótimo documentário de Lucas H. Rossi dos Santos sobre um dos maiores atores e comediantes do Brasil de todos os tempos: Grande Othelo (1915-1993).  O filme chamado “Othelo, o Grande” se vale de um vasto material de arquivo para compor a figura artística de Sebastião Bernardes de Souza Prata, que rompeu todas as barreiras do racismo estrutural para vir a ser o ícone do cinema, e de outras mídias, que foi.  83 min.  Lá está também o doc. “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy, já comentado aqui recentemente, e muito mais.  Filmes como “Levante”, de Lilah Ella, “Mussum, o Filmis”, de Sílvio Guidane, “O Dia Que Te Conheci”, de André Novais de Oliveira, e vários outros, inclusive curtas.

www.sescsp.org.br/oju



segunda-feira, 18 de março de 2024

O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA

        

 Antonio Carlos Egypto

 


 

O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA (Il Primo Giorno Della Mia Vita).  Itália, 2023.  Direção: Paolo Genovese.  Elenco: Toni Servillo, Valerio Mastandrea, Marguerita Buy, Sara Serraiocco, Gabriele Cristini.  121 min.

 

É raro que o autor de um romance se torne também o diretor do filme que adapta o texto literário.  Essa é uma das características de “O Primeiro Dia da Minha Vida”, de Paolo Genovese. 

 

Há muitas outras especificidades no filme, que parte de uma questão que nos ocupa ao longo de toda a vida.  O que acontece após a morte?  Esse assunto é, geralmente, muito explorado pela filosofia e pelas religiões.  Frequentemente, envolve questões morais e a expectativa por uma imortalidade.  O trabalho de Paolo Genovese não vai por aí.  Trilha um caminho mais original sobre o tema.  Mais leve, também, mas não se trata exatamente de uma comédia.  É uma fantasia que nos leva a uma reflexão bastante interessante sobre a vida e a forma como lidamos com seus desígnios e suas agruras.  Por exemplo, quem nunca pensou em como segue o mundo quando eu não estiver mais aqui?  Se faz alguma diferença a minha ausência?

 

Após um suicídio, o que vem em seguida?  Quero dizer, imediatamente após, na primeira semana que se segue ao fato.  Em primeiro lugar, encarar o que se fez e o que motivou o ato.  Buscar uma reparação seria algo possível?  Imaginemos que sim e o processo dessa semana seja conduzido por um homem misterioso, uma figura misteriosa, que não é Deus, nem demônio, nem anjo, nada disso.  No entanto, tem um papel fundamental nesse momento. 




Diante de quatro suicídios ocorridos na noite anterior, o condutor do processo vai reunir um comunicador famoso, da área de motivação, uma atleta jovem, vice-campeã na ginástica de competição, que por uma queda acaba numa cadeira de rodas, uma mulher madura, inconsolável com a morte da filha e um menino de 12 anos, diabético, que comeu 40 donuts intencionalmente e não tomou sua insulina habitual.

 

Toni Servillo faz o homem misterioso de uma forma contida, como convém ao personagem.  E explora bem o inusitado da figura.  Napoleone, o motivador desmotivado com a própria vida, papel de Valerio Mastandrea, exige dele uma ambiguidade constante e uma rejeição à situação em que está.  Que é central para a trama. 

 

Marguerita Buy, no papel de Arianna, explora muito bem o lado materno e acolhedor, mesmo em contexto tão angustiado e desesperador.  Sara Serraiocco, a atleta Emilia, compõe um papel que nos remete à vida em suspenso, com muita clareza.  E o jovem Danielle, de 12 anos, vivido por Gabriele Cristini, compõe o quarteto dos suicidas com alguma leveza e até toques de humor, em meio à circunstância trágica de rejeição de pai e mãe.

 

Acompanha-se o filme com muito interesse, porque é um modo novo de abordar o assunto.  E porque a armadilha do moralismo e da literatura de autoajuda está bem perto, mas não triunfa.  Afinal, é sempre possível olhar os assuntos triviais por outra ótica, buscando um novo ângulo, desviando do que não interessa tratar.  Ainda bem.  Ponto para o romancista cineasta.



 

quarta-feira, 13 de março de 2024

LUPICÍNIO RODRIGUES - CONFISSÕES DE UM SOFREDOR

 

Antonio Carlos Egypto 

 


 

LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR.  Brasil. 2022.  Direção: Alfredo Manevy.  Documentário.  Narração: Paulo César Pereio.  96 min.

 

O longa de estreia do diretor Alfredo Manevy, o documentário “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor” tem o mérito de destacar o trabalho de um grande compositor, poeta e intérprete da música popular brasileira.

 

O gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) teve composições gravadas por intérpretes de várias gerações, que alcançaram sucesso e se tornaram clássicos, nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Elizeth Cardoso, Linda Batista, Jamelão.  E também de Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Elis Regina, Ney Matogrosso, Marisa Monte.  Enfim, todos os grandes intérpretes da música brasileira beberam na fonte de Lupicínio.

 

O compositor se alimentou das desventuras do amor para fazer suas letras ternas, duras e diretas, machistas também, mas de rara beleza poética.  Pode ser considerado o criador do chamado samba da dor de cotovelo.  Lembremos um trecho de “Esses Moços, Pobres Moços”, quando ele se dirige aos jovens: Se eles julgam que a um lindo futuro só o amor nesta vida  conduz, saibam que deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz.  Bonito, não é?

 

Lupicínio, com sua música, aparece inteiro no documentário, todo montado a partir de vasto material de arquivo, incluindo entrevista  e canto com ele e muita música dele em várias interpretações, como citei acima.  Destaque para a linda interpretação de João Gilberto, para “Quem há de dizer”.  E para uma música de Lupicínio que foi indicada ao Oscar 1945, no filme “Dançarina Loura”, sem consulta ao compositor e sem lhe dar crédito.  Era nada mais nada menos do que uma versão instrumental e dançante de “Se Acaso Você Chegasse”.  A mesma canção lançaria a grande Elza Soares ao estrelato, pela genialidade de sua interpretação, em 1960.

 


São muitas as histórias que envolvem a música que ele criou com maestria.  Vamos lembrar mais algumas delas?  “Felicidade” (foi-se embora...), “Vingança”, “Nervos de Aço”, “Cadeira Vazia”, “Nunca”, “Ela Disse-me Assim”, “Volta”, “Maria Rosa, “Loucura”, “Brasa”...

 

Sustentado à base do álcool e das noites e madrugadas de música, bares e mulheres, foi um compositor que ultrapassou seu próprio tempo.

 

Embora marcada pelos valores de sua época, a música de Lupicínio é tão atual hoje, 50 anos após a sua morte, que o filme de Alfredo Manevy, narrado por Paulo César Pereio, com certeza vai entusiasmar todos que forem vê-lo no cinema.  De todas as idades e preferências musicais.  E é muito bom que a música popular brasileira, tão rica e variada, com talentos tão fantásticos, esteja sendo tão bem documentada pelo cinema brasileiro.

 

 

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

ERVAS SECAS

Antonio Carlos Egypto

 



ERVAS SECAS ((Kuru Otlar Üstüne), Turquia, 2023.  Direção: Nuri Bilge Ceylan.  Elenco: Deniz Celiloglu, Merve Dizdar, Musab Ekici, Ece Bagci, Erdem Serocak.  197 min

 

O cineasta Nuri Bilge Ceylan é muito respeitado, admirado pelos cinéfilos pelo trabalho de alta qualidade que desenvolve. É só lembrar de “Climas” (2006), “Era uma Vez em Anatólia” (2011), “Sono de Inverno” (2014) e “A Árvore dos Frutos Selvagens” (2018).

 

Em “Ervas Secas”, personagens bem representativos aparecem.  Como um professor de cidade pequena, a escola onde atua, os alunos, os pais, os colegas e a burocracia, que dificultam uma existência mais livre e criativa.  Onde um erro pode pesar muito e as relações de poder podem se dar por coisas menores, comezinhas.  O ciúme, a maledicência, as simulações, correm soltos.  

 

Uma mulher bonita e inteligente precisa vencer não só o machismo e os preconceitos de gênero como os das pessoas com alguma deficiência, que é o caso dela. Tanto naquilo que envolve a visão de mundo e as ideologias, quanto na manifestação humanística da aceitação, da compreensão e da solidariedade.  As coisas são difíceis.  

 


Ao longo de mais de 3 horas brilhantemente conduzidas, o filme flui em consistência e beleza.  A sequência inicial nos remete à neve que se alastra no local, ocupa toda a tela, exceto por um transporte coletivo visto lá atrás e alguém que vem à frente, aos poucos, já dá toda a dimensão do filme.  

 

Essa neve, esse branco, esse frio, representam as relações humanas que não florescem, não se aquecem, não se colorem.  Fora do inverno, vigoram as ervas descoloridas. Desprezíveis, desinteressantes, sem brilho.  E... secas.  Nesse sentido, o filme é realística e simbolicamente pessimista.  

 

A fotografia nos filmes de Ceylan é sempre um espetáculo à parte.  Os enquadramentos perfeitos e as paisagens turcas escolhidas são primorosos.  É um arrebatamento visual, uma experiência muito gratificante.