terça-feira, 4 de outubro de 2011

BÉLA TARR – UM CINEASTA RADICAL

Antonio Carlos Egypto



Béla Tarr é um cineasta húngaro, nascido em 1955, que tem um trabalho autoral rigoroso e radical. Uma retrospectiva de sua obra foi exibida em São Paulo, na Mostra de Cinema Independente INDIE 2011, e poderá ser vista no Festival do Rio 2011, com a presença do diretor.

A oportunidade de ver seus filmes de forma concentrada, por um lado, enriquece a percepção de um trabalho artístico denso, esteticamente notável. Por outro lado, é uma proposta exigente para o espectador: é um cinema lento, que demanda concentração e uma atitude contemplativa. Seu cinema é feito de longos planos sequência, com muitas repetições de atos silenciosos e brigas ou desentendimentos verbais, onde as palavras e expressões de ofensa ou mágoa também se repetem muito. É um trabalho artístico, que põe sua beleza a serviço de uma visão desesperançada do mundo.

Para quem nunca viu um filme de Béla Tarr, o que escrevi até agora pode assustar ou desestimular o interesse por seu cinema. Sim, é um cinema sofrido, porém, desafiador, capaz de nos transportar a universos e situações em que mergulhamos tão intensamente que saímos da experiência tocados por sensações e sentimentos fortes, mas que nos levam a refletir sobre o que vivenciamos ali.


O Cavalo de Turim

O CAVALO DE TURIM (WA Torinói Ló). Hungria, 2011. Direção e roteiro: Béla Tarr. Com János Derzsi, Erika Bók, Mihály Kormos. 146 min.

O mais recente filme do diretor, concluído em 2011 e agraciado com o Urso de Prata do Festival de Berlim, é “O Cavalo de Turim”, que o cineasta afirma que deve ser sua última produção cinematográfica. Uma pena, se essa intenção se confirmar.

No texto de abertura do filme lê-se o seguinte: “Em Turim, em 03 de janeiro de 1889, Friedrich Nietzsche sai do imóvel da Via Carlo Albert, número 6. Não muito longe dali, o condutor de uma carruagem de aluguel está tendo problemas com um cavalo teimoso. O cavalo se recusa a sair do lugar, o que faz com que o condutor, apressado, perca a paciência e comece a chicoteá-lo. Nietzsche aparece no meio da multidão e põe fim à cena brutal, abraçando o pescoço do animal, em prantos. De volta à sua casa, Nietzsche então permanece imóvel e em silêncio, durante dois dias, estendido em um sofá, até que pronuncia as definitivas palavras finais (“mãe, eu sou um idiota”) e vive por mais dez anos, mudo e demente, sendo cuidado por sua mãe e suas irmãs. Não se sabe que fim levou o cavalo.”
O filme passa, então, a mostrar a vida de um condutor de uma carroça, de sua filha e do cavalo. Não há qualquer referência a Nietzsche, além do texto inicial. “O Cavalo de Turim”, na realidade, nos mostra a vida miserável desses personagens, numa habitação do século XIX. Os únicos pertences são uns poucos móveis rústicos, alguma roupa, lenha, fogão, água e batatas.

Fora da casa, um poço que provê a água e o estábulo, com o cavalo e a carroça. Passamos a viver intensamente o cotidiano dessa casa, onde os movimentos e os gestos se repetem, quase nada se fala e um vento forte e permanente aparece quando se sai da casa, se abre a porta ou se olha pela janela.





A paisagem externa é desoladora, assim como o interior da casa. Se não existisse uma reserva de batatas, a fome se imporia de forma absoluta. Ou se o poço um dia secar...

As imagens em preto e branco, os enquadramentos perfeitos, mas quase imutáveis e a rotina minimalista dos personagens, captadas por meio de planos sequência longuíssimos, conseguem nos transportar para a vida no limite da fome e da morte, em pleno final do século XIX.

Os poucos elementos em cena são também essenciais para a obtenção desse efeito. Estamos em outra época, em outro mundo. No entanto, nos deparamos com uma questão que permanentemente tem desafiado a existência humana em todas as épocas: a erradicação da miséria. Impossível não se sensibilizar para essa questão, após assistir a “O Cavalo de Turim”.

O símbolo do cavalo é também muito bem explorado, desde a sua movimentação intensa, no início do filme, até sua paralisia completa, em que ele prenuncia e como que escolhe seu fim.

Uma obra de arte soberba, extremamente sofrida, difícil mesmo de assistir. Mas uma obra maiúscula. Radical em todos os sentidos. Será lançada comercialmente nos cinemas? Espero que sim. De qualquer modo, atingirá um público reduzido, que terá condições de apreciar tal experiência cinematográfica. Os que entrarem no cinema desavisados ou serão tocados fortemente pelo filme, ou se ausentarão antes do seu final. Experimentos radicais geralmente produzem respostas de amor intenso ou ódio profundo. Não é assim?

Os outros filmes

“Ninho familiar”, de 1977, o primeiro longa de Béla Tarr e “Pessoas pré-fabricadas”, de 1982, têm em comum a discussão da vida, num regime planificado, centralizador e opressor, como foi a Hungria no período comunista ou do chamado socialismo real. Nesse sentido, são filmes datados. Tratam, por exemplo, da seriíssima questão das moradias. A ausência de um espaço para viver ou a aglomeração de pessoas em pequenos apartamentos gera angústia, discórdia, desentendimentos de todo tipo. A opressão que essa situação traz é mostrada, geralmente, com a câmera na mão e os atores focalizados muito de perto, sem espaço para o respiro. A sensação é aquela que a gente tem quando alguém chega muito perto, invadindo nosso espaço, e nos faz afastar-nos dessa pessoa. “Ninho familiar” se centra nisso e na repetição verbal exacerbada do quanto é importante ter um espaço próprio de moradia, mínimo e decente.

“Pessoas pré-fabricadas” enfoca mais os desentendimentos no casamento, em função de que a vida, as casas e os empregos são planejados e resolvidos pelo Estado, sendo as pessoas joguetes nesse processo. Se digladiam, se ofendem, brigam, fazem escândalos e não são donas de seus destinos. As duas películas são filmadas em preto e branco.

“Almanaque de Outono”, de 1984, é um filme colorido. Aqui se exploram as tonalidades cinza-azuladas e vermelho-alaranjadas, num espaço agora grande, onde vivem mãe, filho e mais três pessoas que, embora se conheçam e se relacionem, estão em conflito permanente. Brigam, discutem, se acusam, se atacam em jogos de poder violentos e desproporcionais. As relações se esgarçam, se desgastam, a confiança se quebra. Um clima hostil, cheio de medos e obsessões, que remete aos filmes de Bergman.

Dentre os principais filmes dele não vi “Maldição”, de 1987, nem o famoso “Satantango”, de 1994, um filme com 7 horas e meia de duração, que, no Festival INDIE foi exibido no Cinesesc, das 21:30 às 5:30 h, com intervalos. Para mim, seria demais todo esse tempo para ver um panorama amplo do fim do comunismo na Europa Oriental. Quem viu, garante que vale a pena.




“Harmonias de Werckmeister”, de 2000, é mais um filme em preto e branco, como são quase todos os que Béla Tarr fez, que tem uma linda plasticidade, uma atmosfera estranha e soturna, focalizando uma cidade que espera por um circo. A principal atração é uma enorme baleia ,a maior do mundo, que está fora d’água, num grande caminhão, cheirando mal, e há a promessa de um misterioso príncipe que deve se apresentar. Filme sujeito a inúmeras possibilidades interpretativas, surpreende pelo inusitado, tanto da situação proposta quanto dos comportamentos, e também por uma violência que irrompe, selvagem e aparentemente sem sentido ou direção.

“O Homem de Londres”, de 2007, foi o primeiro filme que vi de Béla Tarr, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Sua estética de filme noir, obviamente em preto e branco, com direito a assassinato e mala de dinheiro que é encontrada, é irresistível. Enquadramentos belíssimos nos fazem esquecer completamente os ritmos lentos, os longos planos sequência e a quase ausência de diálogos. Fotografia impecável, mostra uma estação ferroviária do litoral e um homem que pensa, vive dilemas éticos, testemunhou algo terrível e importante. O que fazer agora? Uma releitura do filme noir, que se interioriza.

Béla Tarr é um autor de cinema marcante, num tempo em que o espaço para o trabalho autoral é muito pequeno diante da avassaladora industria do entretenimento. Seu cinema aspira à mais alta dimensão artística e não tem qualquer olhar para o mercado. Opção rara e radical nos dias de hoje.


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