Antonio Carlos Egypto
A IMAGEM QUE FALTA (L’Image Manquante). Camboja,
França, 2013. Direção de Rithy
Panh. Documentário. 95 min.
Rithy Panh viveu na infância uma história tão absurda
quanto trágica, quando teve toda a sua família dizimada pela perseguição, pela
fome e pela separação de seus membros, durante o regime do Khmer Vermelho, no
Camboja, entre 1975 e 1979. Sobrevivente
dessa opressão, foi viver fora do país, se tornou cineasta e seu cinema se
pauta, principalmente, pelo resgate da memória daquele período histórico. O regime, que foi capitaneado por Pol Pot,
acabou virando um tabu no país, do qual ninguém fala, nem quer se lembrar. Romper esse tabu, revirar e mexer nessas
memórias, tanto as pessoais quanto as que podem ser provocadas por uma câmera
que perscruta quem viveu tudo aquilo, como algoz ou vítima, é seu principal
objetivo cinematográfico.
Embora militante dessa causa de explodir o tabu
cambojano do Khmer Vermelho, Rithy Panh não faz um cinema de pregação ou
propaganda. Apesar de tudo o que viveu,
ainda consegue ser sutil, ao mexer nesse vespeiro, que envergonha as pessoas que
seguem vivas. E registra que o Camboja
foi uma subjugada colônia francesa, fazia parte da Indochina, enfrentou esse
regime dito comunista do Khmer Vermelho, incompetente e delirante, mas vive
hoje na mesma miséria e exploração humanas de sempre, num mundo capitalista que
segue oprimindo por outros meios, perpetuando a pobreza e a miséria.
Nada se compara, é claro, ao genocídio que o Camboja
viveu naqueles quatro anos da década de 1970.
Um país que tinha sete milhões de habitantes viu morrer quase dois
milhões de pessoas. Perseguidos e
executados como inimigos do povo, por razões ideológicas ou por qualquer tipo
de resistência a uma vida insustentável.
A maioria, porém, morreu mesmo de fome.
Não poderia sobreviver a uma política de trabalhos agrícolas forçados,
de sol a sol, em busca de metas impossíveis, dependendo de uma ração de arroz
cada vez mais reduzida para sobreviver.
Tudo em nome da coletivização da produção para um país que deveria,
segundo seus dirigentes da época, se tornar puramente agrícola, só de
camponeses e políticos. O pai do
cineasta foi o primeiro a morrer na família, de fome, por decisão própria,
rejeitando a situação em que estava colocado.
O que tornou ainda pior a vida dos que ficaram.
Tudo isso fica muito evidente no filme “A Imagem que
Falta”, em que Rithy Panh relata na primeira pessoa, sem que sua imagem
apareça, suas memórias de infância. Sua
fala em off vai narrando a sua
história. O problema é encontrar imagens
para reconstruí-la. Não há. O país mudou, está diferente. O que restou de imagens daquele regime é
quase sempre filme de propaganda, idealizando os avanços, com slogans
ideológicos e uma postura equivocadamente patriótica. Pode-se ver o artificialismo e a falsidade
daquela publicidade, mas não basta.
É aí que o filme de Rithy Panh inova. Ele procurou artistas que reconstruíssem os
locais, os animais e as pessoas das suas lembranças e montou as cenas todas com
figuras de argila que povoam o filme do começo ao fim, entremeadas por filmes e
fotos do período, aquilo que foi possível juntar. Embora tendo partido de um livro, “A
Eliminação”, de Christophe Bataille, é da sua experiência particular que se
trata. São as suas imagens criadas por
meio da argila que formam a composição do filme. Segundo o cineasta, “não é a imagem final,
nem a busca de uma única imagem, mas a imagem objetiva de uma busca: a busca
que o cinema permite”.
Quem viveu tal experiência, ainda que se afaste e
conquiste novos rumos, nunca poderá esquecer o que viveu. É preciso voltar às origens, para poder
elaborar uma perda tão brutal, que vai das pessoas afetivamente mais
importantes na vida à própria identidade nacional. Com uma mensagem tão impactante pelo próprio
testemunho pessoal, era preciso encontrar o meio, a imagem para transmiti-la. Ele não poderia ter encontrado melhor forma
do que a dos bonecos de argila, que realizam o que ele buscou e suavizam a
barbárie, tornando-a mais assimilável. A
reação que produz no espectador é de interesse e de ouvir o que o cineasta tem
a dizer e não de rejeição, como poderia acontecer se o filme carregasse em
imagens violentas. Um brilhante trabalho
que recebeu o prêmio Um Certo Olhar,
no Festival de Cannes 2013.
“A Imagem que Falta” fez parte de uma mostra do
cinema do diretor cambojano, realizada pelo Centro Cultural do Banco do Brasil,
São Paulo e Rio de Janeiro. Pude
conhecer um pouco mais da obra de Rithy Panh, vendo outros dois filmes dessa
mostra. “Uma Barragem Contra o
Pacífico”, de 2008, que, por meio de romance de Marguerite Duras, retrata a
história de uma viúva francesa, vivendo com seus dois filhos na Indochina
colonial, que vê suas terras serem inundadas pelo mar, comprometendo a produção
do arroz. Daí a necessidade da barragem
que dá título ao filme. É uma bela
ficção, com Isabelle Huppert no elenco.
Vi, ainda, “Os Artistas do Teatro Queimado”, de 2005,
que mostra o Camboja como uma terra de sonhos destruídos. O teatro Suramet,
de Phnom Penh, capital do país, foi construído em 1966 e devastado por um
incêndio acidental, em 1994. Ficou como
estava, arruinado, mostrando o descaso atual com a cultura no país. Só que um grupo de atores e atrizes vive lá
assim mesmo, ensaia e faz apresentações precárias para turistas. Só muito amor à arte e a experiência de viver
com tão pouco podem explicar isso. Mas
tudo bem, na falta de comida, eles comem os morcegos que habitam o local.
O cineasta do Camboja, Rithy Panh, é um grande
realizador cinematográfico dos nossos dias.
Só lamentei não ter tido a oportunidade de ver os outros filmes dele que
foram exibidos nessa mostra.
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