quarta-feira, 6 de novembro de 2024

BRASILEIROS NA MOSTRA 48

Antonio Carlos Egypto

 

Para encerrar minhas postagens sobre a 48ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, vou comentar rapidamente sobre os filmes brasileiros que vi na Mostra, uma vez que eles estarão disponíveis para serem assistidos oportunamente, por quem não os viu no festival.

 

Começando pelos prêmios decorrentes da votação do público, com os quais estou plenamente de acordo.  A melhor ficção eu já comentei anteriormente, AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles, grande destaque não apenas entre os brasileiros, mas entre todos os filmes da Mostra.

 


3 OBÁS DE XANGÔ

3 OBÁS DE XANGÔ, vencedor do melhor documentário pelo público, foi também o vencedor da categoria no Festival do Rio 2024.  O filme, dirigido por Sérgio Machado, recupera matérias gravadas dos três grandes criadores baianos: Jorge Amado, na literatura, Dorival Caymmi, na música, e Carybé, na pintura.  A amizade e as ideias deles tomam a tela e nos enchem de talento e beleza.  77 min.

 

Dois outros vencedores do Festival do Rio 2024 estiveram por aqui, também: MALU e BABY.

 

MALU, de Pedro Freire, lida com a personagem complexa de uma atriz que foi poderosa, em momento de declínio, atuando de forma destrutiva e delirante, a partir de uma visão generosa dela e da sua geração e do trabalho importante desenvolvido no teatro de resistência à ditadura militar.  A crise se torna aguda nas relações com a mãe e com a filha. No elenco: Yara de Novaes, Juliana Carneiro da Cunha, Carol Duarte, Átila Bee.  100 min.

 

MALU

BABY, de Marcelo Caetano, trata de um personagem ainda adolescente, que, saído de um centro de detenção juvenil, se vê perdido, sem parentes ou recursos para tocar sua vida.  Uma relação homoafetiva com um homem maduro, a imersão no mundo do tráfico e da prostituição, farão parte dessa reconstrução, com muitos conflitos e muita paixão, também.  No elenco: João Pedro Mariano, Ricardo Teodoro, Ana Flávia Cavalcanti, Bruna Linzmeyer, Luiz Bertazzo, Patrick Coelho.  106 min.

 

MANAS, dirigido por Marianna Brennand, que levou o prêmio da crítica para filme brasileiro, aborda casos de abuso sexual de meninas, em balsas, na ilha do Marajó, no Pará.  Inspirada em casos reais que foram relatados, Marianna construiu uma ficção vigorosa e feita com muita sutileza.  Nada é diretamente mostrado, tudo fica subentendido, sugerido.  Mas é tudo muito claro e a denúncia, muito importante.  No elenco, Jamielli Correa, Rômulo Braga, Fátima Macedo, Dira Paes.  101 min.

 


MALÊS

MALÊS, dirigido por Antonio Pitanga, retrata a revolta dos escravizados em Salvador, em 1835, que é pouco conhecida e estudada.  A Revolta dos Malês foi a maior insurreição do gênero, na história do Brasil.  E parte de dois jovens muçulmanos, arrancados de sua terra natal na África, em pleno casamento, vendidos como escravos no Brasil.  A presença da crença muçulmana e a língua e a tradição árabes presentes na história são mais um dado relevante que precisa ser melhor conhecido.  No elenco: Camila Pitanga, Rocco Pitanga, Antonio Pitanga, Samira Carvalho, Patrícia Pillar, Edvana Carvalho, Bukassa Kabenguele.  113 min.

 

VIRGÍNIA E ADELAIDE, filme dirigido por Jorge Furtado e Yasmin Thayná, aborda o encontro histórico de duas mulheres que estão no início da psicanálise no Brasil.  Virgínia, mulher negra, vem a ser a primeira psicanalista do país.  Começou fazendo análise com Adelaide, psicanalista judia alemã, que veio para o Brasil, fugindo do nazismo.  Isso, no ano de 1937, quando começou a ditadura do Estado Novo getulista.  O filme é didático, ao contar a história delas, apresentando conceitos psicanalíticos aplicados às sessões vividas por elas. Destaque para a questão do preconceito racial, que marcou toda a vida de Virgínia.  No elenco: Gabriela Correa e Sophie Charlotte.  96 min.

 


APOCALIPSE NOS TRÒPICOS

APOCALIPSE NOS TRÓPICOS, documentário de Petra Costa, faz a pergunta: quando uma democracia termina e uma teocracia começa?  O filme perpassa todos os fatos recentes da política brasileira, do impeachment de Dilma Rousseff às tentativas de golpe de Estado, que culminaram na violência de 08 de janeiro de 2023.  Mas o faz seguindo o fio condutor das lideranças evangélicas, destacando o pastor Silas Malafaia e os fundamentalistas que sustentaram a experiência política negacionista do governo Bolsonaro, tentando entender seu modo peculiar de interpretar os fatos e seus fundamentos religiosos apocalípticos.  110 min.

 

O PALHAÇO DE CARA LIMPA, de Camilo Cavalcante, também retoma o ano de 2016, quando o país entra na crise política que levaria ao impeachment de Dilma Rousseff e suas consequências danosas, especialmente para a arte.  Aqui, o personagem é um ator em crise pela falta de palco para atuar, que apresenta suas obras pelas ruas do Recife, seus conflitos familiares e sua tristeza pelo momento que vive o país.  No elenco, Flávio Renovatto, Maria da Guia de Oliveira da Silva, Alex Lucena, Daniela Câmara e Sílvio Pinto.  80 min.

 

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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

O QUARTO AO LADO

                     

Antonio Carlos Egypto

 


O QUARTO AO LADO (The Room Next Door). Espanha, Estados Unidos, 2024.  Direção: Pedro Almodóvar.  Elenco: Tilda Swinton, Julianne Moore, John Turturro, Alessandro Nivola.  107 min.

 

“O Quarto ao Lado” é o primeiro longa-metragem de Pedro Almodóvar falado em inglês.  A ação se passa em Nova York, com duas atrizes extraordinárias na língua inglesa: a britânica Tilda Swinton e a norte-americana Julianne Moore.  No cartaz do filme a gente encontra a informação de que ele é escrito e dirigido por Almodóvar.  No entanto, ele é baseado na obra literária de Sigrid Nunez.  Trata-se, portanto, de um roteiro adaptado.  É que sabemos que o cineasta espanhol retrabalha o texto original e o torna almodovariano, como já fez outras vezes.

 

O que vemos em “O Quarto ao Lado” é uma reflexão sobre os caminhos da vida e da morte.  Um trabalho feito com profundidade, delicadeza, afeto, e, por que não esperança?  O tema é nada menos do que a eutanásia, que pode ser entendida como um direito humano fundamental, mas geralmente é tratada como crime.  E o suicídio costuma ser visto de modo intolerável pelas religiões.  Isso aparece claramente no filme, mas não é o ponto principal.

 

A questão central é o que se passa entre duas mulheres jornalistas, muito amigas e que se conhecem muito bem: Martha (Tilda Swinton) e Ingrid (Julianne Moore).  Distanciaram-se por um tempo, em função das circunstâncias de seus trabalhos, mas no reencontro a química e a cumplicidade entre elas se reestabelece quase que instantaneamente.

 


Só que Martha, agora, sofre com uma doença incurável que lhe traz dores terríveis e que motivou sua difícil decisão de querer partir.  Mas ela precisa de ajuda, tentou junto a outras amigas que rejeitaram o pedido e não considera sequer solicitar isso à sua filha, de quem se mantém distante.  Ingrid, no entanto, a entende, a aceita, tem empatia profunda com ela.  Nem por isso a decisão é fácil.  Aliás, todo o processo é muito difícil, embora tudo seja mostrado com beleza, com sutileza, sem excessos ou arroubos.  Na medida certa dos sentimentos que são expressos com precisão em cada gesto, tom de voz, postura ou silêncio.  Vivemos com elas, como espectadores, todas as nuances dessa história, com extrema sensibilidade.  Reconhecemos ali pessoas verdadeiras se relacionando.

 

O ambiente é mais do que bonito, é requintado.  A morte pode se dar com humanidade e com conforto.  É uma aspiração legítima.  Possível em alguns casos.  Sempre pressupõe condição econômica para isso, o que não invalida a aspiração.

 

Acompanhamos com interesse “O Quarto ao Lado” do começo ao fim, já que o filme exala humanidade, enfatiza a cumplicidade e a amizade, sem nunca esquecer os conflitos, os medos, as indecisões, as dificuldades todas que envolvem o viver, o morrer e a perda. 

 

A música de Alberto Iglesias, colaborador habitual de Almodóvar, dá ênfase às emoções que estão subjacentes à atuação das atrizes.

 


Almodóvar declarou que teve muita sorte ao poder contar com as duas grandes atrizes, que deram um show no filme.  Sorte é fruto de trabalho, empenho, busca criteriosa de soluções, abertura para o que vem.  Nesse caso, pode-se dizer que Pedro Almodóvar costuma ter muita sorte nos seus filmes.  Que começam pelas ideias em profusão que saem do seu imaginário de autor.

 

“O Quarto ao Lado” foi aplaudido no Festival de Veneza 2024 por 17 minutos e venceu o Leão de Ouro, o prêmio maior do Festival.





sexta-feira, 1 de novembro de 2024

GRAND TOUR NA MOSTRA 48

Antonio Carlos Egypto

 


GRAND TOUR.  Portugal, Itália, França, 2024.  Diretor e corroteirista: Miguel Gomes.  Elenco: Crista Alfaiate, Gonçalo Waddington, Cláudio da Silva, Lang-Khê Tran.  129 min.

 

“Grand Tour” é um filme que impressiona por qualquer ângulo que o observarmos.  É uma grande aventura que nos leva ao mundo do Oriente, no pós-guerra, 1918.  Parte de Rangum, na Birmânia, onde supostamente Edward e Molly vão se casar, após sete anos de noivado sem se encontrarem.  Edward, que é funcionário do Império Britânico, que nem se lembra dela com clareza, foge do compromisso e passa a viajar sem rumo, ao sabor das circunstâncias.  Mas interage em cada cidade que passa com os elementos culturais locais. E olha que ele vai percorrer, além de Rangum, Bangcock, Saigon, no Vietnã, e chegará ao Japão e à China.

 

Toda essa carreira oriental dá margem para que o filme faça magníficas  tomadas de cena, enquadramentos sofisticados, e capte a realidade local em alguns elementos definidores ou de ocasião.  A fotografia, em esplêndido preto e branco, alternando com cores, é deslumbrante.  A música, tanto a oriental quanto a ocidental, com valsas de Strauss, My Way, La Mer e outras, preenche a tela, nos deliciando.  É puro prazer acompanhar o desenrolar do filme, que quase não tem história.

 

Para voltar a ela, enquanto Edward se perde pelo mundo oriental e foge do casamento, Molly, partindo de Londres e logo de Rangum, o persegue o tempo todo, o que caracteriza toda uma segunda parte da saga, em que não se sabe bem o que esperar dos eventos que vão surgindo.  O fato é que, à procura de resgatar o noivo, ela encontra outro homem, que a pede em casamento.  Os percalços da viagem, tanto dela quanto dele, tornam impraticável um encontro entre ela e Edward.  Por exemplo, ambos adoecem e flertam com a morte, em momentos distintos.

 


A cada passo, descobrimos novos elementos que vão fazendo sentido e, ao mesmo tempo, nos surpreendendo.  É uma narrativa para lá de envolvente, que nos acolhe.  Tanto quanto Edward se insere com facilidade em diferentes contextos.  E Molly, com seu jeito decidido e engraçado, também é muito bem recebida e manda e desmanda por aí. É a colonização se expressando?  Os conflitos existem, mas são administráveis.  Ou melhor, nem sempre. 

 

O filme é lindo, uma viagem maravilhosa, só que é preciso deixar fluir, sem se preocupar com a história, com o que vai dar.  Tudo vai aparecer a seu tempo.  E o que interessa é o caminho, o que se desvenda pelo caminhar.  Dispostos a tudo, como os personagens.

 

O filme do diretor português Miguel Gomes é uma pérola cinematográfica.  Eu só o assisti no último dia oficial da Mostra, em sessão noturna.  Ou seja, bem ao final.  E foi aí que eu descobri o melhor filme dessa 48ª. Mostra, na minha opinião.  Eu já conhecia e admirava esse diretor, mas aqui ele se superou.  Contou com uma produção internacional de peso, também.  “Grand Tour” não aparece entre os vencedores, mas espero que apareça, e logo, nos nossos cinemas (tem distribuição Mubi).  Não é a toda hora que se pode apreciar um filme assim.

 

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