quarta-feira, 4 de agosto de 2021

PIEDADE

Antonio Carlos Egypto

 

 


PIEDADE.  Brasil, 2019.  Direção: Cláudio de Assis.  Com Fernanda Montenegro, Irandhir Santos, Matheus Nachtergaele, Mariana Ruggiero, Cauã Reymond, Gabriel Leone.  99 min.

 

Quem vive numa comunidade ao lado do mar pode usufruir dele, nadar, mergulhar, pescar e comer peixe fresco.  E ainda tocar um bar para turistas que vão se deliciar com essas iguarias.  Não é mesmo?

 

Não é, não.  Em “Piedade”, isto tudo já foi verdade, mas antes da chegada da Petrogreen, empresa que explora o petróleo no mar e produziu alterações no meio ambiente que tornaram um simples banho de mar num perigo mortal, pela presença de tubarões em grande escala.  Já se fala que Piedade é uma praia, uma cidade, um tipo de tubarão característico.  Os peixes que eram pescados na hora sumiram e hoje o bar tem de comprar os peixes fora dali.  E nem é preciso comprar muito, não, porque os turistas também desapareceram.

 



Como se faz para resistir a tudo isso?  Na família de D. Carminha, interpretada por Fernanda Montenegro, o bar segue aberto e não está à venda, apesar da insistência de Aurélio (Mateus Nachtergaele), que aproveita a deterioração provocada pela Companhia que ele representa, a Petrogreen, para adquirir barato um belo terreno a ser explorado.  Omar (Irandhir Santos), um dos filhos de D. Carminha, luta como pode para permanecer por lá.  Já sua irmã Fátima (Mariana Ruggiero) tem outras preocupações e já não vive lá, mas seu filho, Ramsés, sim, e tem um grande desejo de mergulhar no mar.  Isso, Aurélio resolve virtualmente, um simulador de mergulhos no fundo do mar, com imagens belíssimas, acopla-se aos olhos e pronto.  O simulacro está dado. Todos esses elementos já dariam uma bela trama, mas há muito mais coisas pelo meio.  Histórias negadas, mal contadas, um personagem que figura como herdeiro de uma eventual transação imobiliária: Sandro (Cauã Reymond). O que estava represado tem de vir à tona.

 

Cláudio de Assis, diretor pernambucano dos já conceituados “Amarelo Manga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), “Febre do Rato” (2011) e “Big Jato” (2016), explora esse universo de forma alegórica, investindo nas figuras humanas sem escamotear a sordidez, a ilusão, a mentira, a manipulação, o medo e o desespero que estão aí presentes.  A estética não deixa de mostrar a beleza dessa natureza, mas destaca não só os gafanhotos de ferro, como uma ambientação suja e tensa, além do mau gosto.  Quem daria a seu filho um nome como Omar Shariff ou Marlon Brando, porque curte cinema?  E que cinema aparece na narrativa?  Um pornô, com cabines e tal, chamado Mercy (piedade, em inglês), devidamente fiscalizado por uma tela, até para que se possa devolver um celular roubado em meio à transa, flagrado por ela.  O que sobrou do cinema, afinal?  E da segurança?  Não se pode confiar em mais ninguém.  Fique alerta, é o recado.

 

Sempre alerta porque, de muitos modos, o mundo está prestes a ruir para as pessoas, para o ambiente de que elas dependem, para os mares, rios, espécies animais.  A sensação que o filme passa é que, a qualquer momento, tudo pode desabar.  E o que restará? Impossível desconsiderar também que “Piedade” passa a ideia de que realmente o ser humano não deu muito certo.  Cada um lida com a alteridade a partir de seu narcisismo, procurando cobrir suas fragilidades e lacunas do jeito que dá, como pode.

 



Até quem parece dispor de muito poder e forçar os outros a fazer o que não querem, não passa de um ser infantilizado, controlado pela mãe por chamadas de vídeo a qualquer hora.  Como o tal Aurélio. A matriarca Carminha segura uma família que não se sustenta em suas bases.  Sem negar a realidade, é impossível.  O charme da cidade, da moda, da beleza, de Fátima, é oco, destoa de tudo o que os outros membros da família vivem e de seu próprio filho.  O cinema pode servir meramente à sobrevivência, mas não à arte, pela ótica de Sandro.  O bar, “Paraíso do Mar”, vira uma ironia sem tamanho.  Como resistir e defender um paraíso que não existe mais?

 

“Os tubarões ou a gente os come ou eles nos comem”.  É o que diz um dos frequentadores do bar que pede lá um dogfish.  É isso.  Mas essa escolha metafórica realmente existe? 

 

Como se vê, “Piedade” é um filme que provoca, faz pensar e não dá muita trégua, não.  Tem uma direção forte e firme e um elenco notável. Só pela presença de Fernanda Montenegro num papel relevante, a esta altura da vida, já vira referência.  E como ela brilha, como ela acentua as palavras e os sentimentos.  Uma beleza!  Tem o ator superlativo, que é Matheus Nachtergaele, o talento admirável de Irandhir Santos, além de Mariana Ruggiero, Cauã Reymond e outros.  Um time muito bom, que empresta muito vigor ao filme, como cúmplices do diretor. 

 

Imagens da cidade, com  seus edifícios engolindo o mar e deslocando as pessoas da terra para a janela do apartamento, completam a poesia de “Piedade”.




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