quarta-feira, 10 de julho de 2019

ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR

Antonio Carlos Egypto





ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR.  Brasil, 2018.  Documentário.  Direção e roteiro: Marcelo Gomes.  85 min.


“Cinema, Aspirinas e Urubus”, 2005, primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes, está para mim entre as melhores produções brasileiras do século XXI.  “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, 2009, dirigido por  Marcelo Gomes e Karim Ainouz , é um filme experimental brilhante e um dos produtos mais criativos da nossa filmografia recente.  O que recomenda vivamente o trabalho do cineasta.  Marcelo Gomes fez ainda “Era Uma Vez Eu, Verônica”, 2012, e “Joaquim”, 2017, e codirigiu com Cao Guimarães “O Homem das Multidões”, 2013.  Uma trajetória bastante sólida e consistente.

Seu novo trabalho, “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”, peca pelo título quilométrico, que remete a uma música de Chico Buarque.  No entanto, é um documentário com uma abordagem simples, clara e direta, que dá conta de uma realidade bem mais complexa do que a sua aparência faria supor e alcança uma dimensão reflexiva surpreendente.

Como um filme que se constrói ao caminhar sobre o tema e ao encontrar elementos novos a cada passo, a narrativa se estabelece à medida em que é capaz de ouvir o outro com atenção e, de algum modo, interagir,  participar e intervir no seu objeto de estudo.




O personagem do documentário é a cidade de Toritama, no Agreste de Pernambuco, que era uma localidade pacata, que Marcelo Gomes conheceu quando criança, acompanhando seu pai em visitas de trabalho.  Era, não é mais.  Foram justamente a agitação e as mudanças em Toritama, visíveis ao passar pelas estradas locais, que chamaram a atenção dele.  Agora Toritama se define como a capital do jeans,  20% de toda a produção de jeans  do Brasil vem de lá, cerca de 20 milhões de peças por ano produzidas em fábricas de fundo de quintal, que são chamadas de facções.  É surpreendente que uma cidade com 40.000 habitantes tenha uma produção assim tão grande para ostentar.  E por que isso acontece?  Em síntese, porque tudo que se faz lá, o tempo inteiro, é trabalhar.  Cada casa ou conjunto delas vira uma oficina de costura individual ou coletiva.  Quase todos parecem preferir trabalhar por sua conta e risco, como e quando quiser, sem carteira assinada na fábrica.  Com a certeza de que o que produzirem vai ser comprado.  Ou porque já foi combinado ou porque vai ser vendido nas grandes feiras que atraem público de todos os cantos.

Como mais peças ou partes de peças costuradas resultam em pequenas quantidades de dinheiro, quanto mais se faz mais se ganha. Conclusão, a maioria dos moradores/produtores da cidade trabalha continuamente desde cedo até tarde da noite.  Em casa mesmo, sem horário.  Ou melhor, sem horário para viver, só para trabalhar, comer e dormir, com direito a uma hora de TV, provavelmente para ver a novela. Uma espécie de escravidão não só consentida, mas buscada pela população.  Que dela não se queixa, com poucas exceções.  Acha que está muito bom assim, sente-se livre e dona do seu nariz.  Ou melhor, do seu negócio.  Muito curioso esse microcosmo do capitalismo que toma de assalto e transforma radicalmente uma pequena localidade, que já não tem espaço nem para criar galinhas ou fazer caminhar os bodes que restaram pela cidade, cruzando a rodovia.

Se isso parece estranho e surpreendente, o que dizer da obsessão absoluta de toda a população em, obrigatoriamente, passar o Carnaval na praia?  Custe o que custar, ninguém fica, todos saem para tomar banhos de mar, beber, fazer alguma fantasia, batucar e dançar no Carnaval.  Se não tiver dinheiro, vende o que tem – fogão, geladeira – ou toma emprestado, para depois pagar ou recomprar o que vendeu.  O que não pode é perder o Carnaval.

Marcelo Gomes filmou a cidade nos dias de Carnaval e só então reencontrou o silêncio e as ruas vazias do seu tempo de criança. O mundo do trabalho e o do  lazer (ou férias) se colocam em oposição.  Oposição não é bem a palavra.  Talvez espaço e tempo estanques, separados.  Trabalho todo o tempo.  Parada no Carnaval, fora da cidade, como obrigação incontornável.  Trabalho parece ser só dinheiro e o dinheiro vira uma dependência, é só ele que importa.  Prazer  no período mágico do Carnaval, tratado como obrigação tanto quanto a atividade produtiva. Mas há também prazer no trabalho e nos resultados obtidos. Por que não é possível integrá-los, mesclá-los, equilibrar algumas coisas, diante da obsessão em fabricar cada vez mais e mais e obter o dinheiro desejado?




Fico pensando nos mecanismos da Internet – e-mails, WhatsApp, outras redes sociais – nos tomando um tempo absurdo de trabalho não remunerado, quando a tecnologia teria de ter vindo para nos poupar tempo e permitir o ócio criativo.  Parece que também aqui nos deixamos escravizar com gosto, ou simplesmente o esquema nos engole.  Isso também tem a ver com abdicar da liberdade para seguir um salvador da pátria, um mito qualquer?  O ótimo documentário de Marcelo Gomes nos faz pensar em muitas coisas como essas, que não estão no filme, mas na minha cabeça, nesse momento.

A música do Chico Buarque, que está no filme, e tem como estribilho Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar  fazia alusão á liberdade que o sujeito viveria com o fim da ditadura militar opressora, restritiva de todas as liberdades e que tinha como oposição o Carnaval libertador.  Não é o sentido, aqui, o Carnaval, no caso, é uma liberação momentânea de um trabalho que, no fim das contas, embora não pareça, é também opressivo, mas que dura pouco e nada muda.

Este filme do Marcelo Gomes, cujo título me permito não ficar repetindo, por ser longo demais, ganhou o prêmio do Júri Oficial e o da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) no Festival  É Tudo Verdade  2019.  E está na sessão Vitrine, com preço reduzido, em grande número de cidades brasileiras.

CINEMA AFRICANO
Começa agora a Mostra de Cinemas Africanos, no Cinesesc São Paulo.  Serão exibidos 24 filmes de 14 países do continente, de 10 a 17  de julho.  Uma boa oportunidade para conhecer melhor um cinema ainda pouco divulgado por aqui.




Um comentário:

  1. Parece ser muito bom esse documentário,com facetas muito curiosas,!!!! Uma amostra muito grande de um capitalismo numa cidade tão pequena!!!!ótima a comparação com o nosso hábito e porque não dizer vício de ZAPs e outros aparelhinhos que nos entorpece sem querer mas , querendo compulsivamente. Vou assostir.. se puder!!!!

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