quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

PRÊMIO ABRACCINE - MELHORES FILMES DE 2018

Antonio Carlos Egypto




A ABRACCINE, Associação Brasileira de Críticos de Cinema, congrega uma centena de críticos em 16 estados brasileiros.  Também faço parte dela.  Como em todos os anos anteriores, votamos nos melhores filmes lançados e exibidos ao longo do ano, em dois turnos.  Inicialmente, cada um indicando os seus três favoritos em cada categoria, depois, escolhendo entre os três mais votados por todos, os melhores longa e curta brasileiros e o melhor longa estrangeiro.

Como sempre, são considerados elegíveis os filmes lançados no circuito cinematográfico durante o ano todo, exceto festivais e mostras especiais.  A novidade neste ano foi a inclusão dos filmes lançados em streaming, como foi o caso do longa estrangeiro vencedor.

O prêmio ABRACCINE relativo aos melhores de 2018 vai para:
Longa estrangeiro – ROMA, de Alfonso Cuarón.
Longa brasileiro – ARÁBIA, de Affonso Uchoa e João Dumans.
Curta brasileiro – GUAXUMA, de Nara Normande.

Leia, a seguir, as minhas críticas dos dois longas premiados.

ROMA (Roma).  México, 2018.  Direção: Alfonso Cuarón.  Com Yalitza Aparício, Marina de Tavira, Marco Graf, Daniela Demesa, Enoc Leaño, Nancy García.  135 min.





ROMA, filme mexicano de Alfonso Cuarón, com uma bela fotografia em preto e branco, é focado nas mulheres.  Coloca-nos dentro do espaço doméstico de uma família de classe média-alta do México, anos 1970.  A empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparicio) e sua colega Adela (Nancy García), de ascendência indígena, trabalham, sem conflitos aparentes, para Sofia (Marina de Tavira), a dona da casa, com quatro filhos, cujo marido está sempre ausente.

Cleo cuida dos filhos de Sofia como se fossem seus.  E o filme mostra uma rotina em que fica claro o trabalho extenuante, semiescravo, das serviçais, mas também um convívio pacífico e mesmo acolhedor da patroa.  Sem tempo de ter vida própria, Cleo parece realizar-se por meio da vida da família que a emprega.

O incômodo inicial fica por conta de um carro grande, o velho Galaxy, que vive arranhado, porque não cabe direito na garagem da casa.  Algo ali não se sustenta.  Os dramas que se desenvolverão a partir daí na vida das duas mulheres protagonistas, Cleo e Sofia, provocarão um turbilhão de eventos, que se entrelaçam com as lutas políticas do período, entre milícias e manifestantes estudantis, que acabarão por exercer papel decisivo no desenrolar da trama.  Mas os homens que se relacionam com as protagonistas são os grandes responsáveis pela dor e sofrimento que elas têm de viver.  A condição de mulher aproxima ambas.  Aquilo que as diferenças de classe separam a condição feminina agrega.

Sequências muito bem construídas, ao longo de todo o filme, encantam, da lavagem do pátio da casa ao impressionante encontro nas ondas do mar, sempre com a figura marcante da empregada Cleo. Tanto quando nada parece estar acontecendo, como quando tudo se desencadeia com grande intensidade.

A atriz indígena Yalitza Aparício obtém um desempenho notável para uma iniciante.  É um dos grandes trunfos do filme.  Será a primeira indígena indicada a melhor atriz no Oscar.  E já na sua primeira atuação no cinema.

ROMA, vencedor do Leão de Ouro em Veneza, com dez indicações no Oscar 2019, é um trabalho autoral de Cuarón, que atuou como diretor, roteirista, montador e diretor de fotografia.  Pela sua qualidade merece ser visto na tela do cinema, mas é uma produção da Netflix, que está sendo vista nas telas da TV.  Está sendo exibida em poucas sessões gratuitas nos cinemas, em algumas cidades do Brasil.  Isso acaba dando acesso a pouca gente.  Por outro lado, o lançamento em streaming deu uma dimensão maior à divulgação do filme.  O que é especialmente interessante em se tratando de um trabalho artístico autoral, que dificilmente alcançaria grande repercussão.  Mesmo considerando que o cineasta mexicano Alfonso Cuarón já tem uma larga filmografia de sucesso também em Hollywood.  São filmes dele, por exemplo, “E Sua Mãe Também” (2001), “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban “ (2004), “Filhos da Esperança” (2006), e “Gravidade” (2013).
__________________________________

ARÁBIA.  Brasil, 2017.  Direção:  Affonso Uchôa e João Dumans.  Com Aristides de Souza, Murilo Caliari, Renata Cabral, Gláucia Vanderveld, Renan Rovida.  96 min.



  
O cinema dispõe de recursos poderosos para nos trazer, reportar, realidades, que podem estar distantes de nós, não apenas por meio de uma riqueza de informações, mas também com a carga emocional que a situação apresentada requer.  Bons personagens, dentro de uma boa estrutura dramática, são capazes de nos levar a viver a experiência de vida intensa e sofrida de pessoas que estão mergulhadas em contextos sociais diversos dos nossos.

 O filme brasileiro ARÁBIA, por meio do personagem Cristiano (Aristides de Souza) e seu diário encontrado após sua morte pelo jovem André (Murilo Caliari), nos coloca em cheio na realidade do trabalhador operário no Brasil dos últimos anos e da atualidade.  Conhecemos sua existência bem de perto, o que faz, como trabalha e se relaciona com as pessoas, suas andanças e mudanças, desejos, esperanças, desilusões.  Uma vida muito dura, penosa, mas enfrentada com vigor e resignação.  Emocionalmente nos transportamos para um universo psíquico, que requer um equilíbrio precário e difícil, como fator de sobrevivência, para além das circunstâncias materiais propriamente ditas.

Quem nos conta sua vida no cotidiano é o próprio personagem, na narrativa descritiva e também reflexiva de seu suposto diário, escrito em linguagem simples, mas nem por isso menos elaborada, enquanto dimensão humana. Os diretores evitaram a intelectualização da escrita, mas a deixaram consistente e profunda.  Detalhada demais para a situação, talvez.  É essa narrativa simples e forte que conquista o jovem leitor, que vive no mesmo ambiente e nas mesmas condições de penúria e vulnerabilidade.

ARÁBIA é um nome estranho à narrativa do filme.  Refere-se apenas a uma piada contada no bar, que ilustra uma percepção simplista de uma situação inusitada, essa, sim, ligada ao contexto árabe.  Mas é um título que esconde o que é o filme.

Grande vencedor do Festival de Brasília, premiado como melhor filme. ator, montagem, trilha sonora e prêmio da crítica.  Foi bem recebido e premiado em muitos outros festivais internacionais, especialmente em competições latino-americanas.





Nenhum comentário:

Postar um comentário