sábado, 2 de abril de 2011

VIOLÊNCIA E PAIXÃO

          Antonio Carlos Egypto

VIOLÊNCIA E PAIXÃO (Conversation piece/Gruppo di famiglia in un interno).  Itália, 1974.  Direção: Luchino Visconti.  Com Burt Lancaster, Silvana Mangano, Helmut Berger, Claudia Marsani, Stefano Patrizi.  121 min.

Vou com bastante frequência ao cinema, mas já fazia muito tempo que não via um filme de Luchino Visconti na tela grande.  A oportunidade surgiu com uma cópia restaurada de “Violência e Paixão”, exibida pelo Cinesesc, São Paulo, em sessões regulares.  Não há como negar que é uma experiência fascinante, muitos graus acima do que se consegue ver atualmente nos cinemas.

Não se trata de saudosismo, mas da constatação de que hoje o requinte e o perfeccionismo de Visconti talvez já não caibam numa indústria cinematográfica que gasta rios de dinheiro com atores e atrizes famosos, efeitos especiais em profusão, mas não no artesanato cenográfico, nem na reconstrução esplendorosa de época, de que Visconti era capaz.

“Violência e Paixão” é até modesto, se comparado a outros filmes dele, como “O Leopardo”, 1963, “Os Deuses Malditos”, 1969, “Morte em Veneza”, 1971, ou “Ludwig”, 1972.  Ainda assim, o apartamento do personagem chamado Professor (Burt Lancaster), o protagonista da fita, recheado de objetos e obras de arte, é primoroso em todos os detalhes, as roupas dos personagens são perfeitas, o ambiente, a exuberância da vista de Roma da varanda, tudo produz uma sofisticação que se pode dizer raramente encontrada no cinema.  Isso tudo também era caro, mas incomparavelmente mais refinado do que qualquer efeito de computador possa produzir.

A música de Mozart complementa, com sua beleza, todo esse requinte artístico e sublinha o mundo inteligente e sofisticado do Professor.  O contraste musical com o grupo dos jovens vizinhos do Professor é o pop, também de boa qualidade, onde até uma versão em italiano de “À Distância”, de Roberto Carlos, pontua uma cena do envolvimento sexual de três personagens. 

A narrativa permite diversas camadas de leitura, a partir da história do Professor, que vive sua solidão envolto em pinturas autênticas do século XVIII, espalhadas pelo apartamento, ao lado de esculturas, uma vasta biblioteca, uma discoteca clássica e objetos de casa e de uso pessoal altamente requintados.  O personagem vive em seu mundo recluso com sua serviçal, com vinte e cinco anos de casa, e longe dos incômodos e problemas que as pessoas possam lhe causar.  Até que é literalmente invadido por uma marquesa (Silvana Mangano) de posses, mas de comportamento decadente, que praticamente o obriga o alugar o apartamento de cima e traz consigo a filha e o namorado, jovens, além de seu amante 12 anos mais novo, Konrad (Helmut Berger).  A vida do Professor muda radicalmente a partir daí, vira um caos e ele é obrigado a conviver com tudo aquilo de que se apartara até então.

Só que a questão é mais complexa do que a descoberta, ou redescoberta, dos afetos para um intelectual solitário, que essa mudança produz.  Ela traz a vida, com todas as suas contradições e conflitos, frente à inexorabilidade da morte.  O envelhecer, diante do vigor da juventude.  As pulsões sexuais, rompendo a barreira protetora da racionalidade e da própria arte. O uso de álcool e outras drogas psicoativas, em busca de prazer, de poder, ou tentativa de aliviar o desencanto com a vida. As pessoas reais, em contraste com as pessoas representadas pela arte.  A família imaginária, ou que é memória, frente a laços familiares que se podem construir sem relações consanguíneas.

O isolamento pode ser fuga de afeto, expressão do medo de viver, mas também proteção diante do conflito com o que a ciência pode produzir de horror prático para a humanidade.  Ou, ainda, desencanto com os rumos coletivos políticos e com o desmoronar de uma classe social frente a novas camadas sociais que ascendem e transformam, de alguma forma, o mundo.  Por trás de conflitos pessoais, há escolhas políticas, como a direita fascista rediviva nos anos 1970 e a esquerda dos movimentos sociais e das revoltas estudantis.

Há inúmeras dimensões a descobrir e explorar, no convívio entre os personagens que Visconti nos apresenta em seu ambiente peculiar de beleza, arte e sofisticação, coisas que ele não dispensa nunca, nem quando fala de carência e pobreza, como fazia na época do neorrealismo italiano do pós-guerra.

O conde vermelho, como era conhecido o cineasta Visconti que, sendo aristocrata, optara pelo marxismo, fez do cinema um veículo de esplendor, crítica, informação e reconstituição históricas, sendo um de seus recursos as adaptações literárias.  O seu cinema também leva a uma reflexão sobre as relações humanas, num nível amplo e profundo, sem concessões à manipulação emocional, preservando sempre o distanciamento crítico e a racionalidade diante dos personagens e da trama.

O cinema de Luchino Visconti é uma obra autoral maiúscula, realizada dentro dos cânones clássicos, única e insuperável.  Vê-la na tela grande da sala de cinema é comprovar isso de forma cabal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário