quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

2 RUSSOS DO FESTIVAL

Antonio Carlos Egypto

 

Nesta quinta-feira, 10 de dezembro, começa a programação virtual e  gratuita do 1º FESTIVAL DE CINEMA RUSSO, produzido pela ROSKINO – organização promotora de conteúdos russos em todo o mundo - com apoio do Ministério da Cultura Russa. Com oito filmes de gêneros diversos, a mostra acontece na plataforma de streaming Spcine Play até 30 de dezembro. Além do Brasil, a série de festivais acontece de forma online na Austrália, México e Espanha. 

 

 



ARRITMIA.  Rússia, 2017.  Direção de Boris Khlebnikov.  Com Irina Gorbacheva, Alexander Yatsenko.  116 min.

 

“Arritmia” nos põe em contato com a realidade diuturna dos profissionais de saúde que atuam em serviços de emergência em hospitais e no atendimento domiciliar. São, lá como cá, pessoas extremamente dedicadas a seus trabalhos, que colocam o atendimento aos pacientes até à frente da própria vida pessoal. É o que acontece com Oleg e Katia, os personagens desse drama ficcional, que enfrentam muitas dificuldades no relacionamento de casal, principalmente, por conta da grande demanda que provém do trabalho.  Mas não só.  Se Katia consegue se equilibrar e manter seu eixo, Oleg é mais desregulado, descontrolado no seu dia-a-dia, além de abusar do álcool.  É muito dedicado ao que faz, a ponto de jogar para o alto certas regras de ação, pensando em salvar vidas, ou em dar um atendimento adequado ao momento.  Com isso, cria problemas.  Ou melhor, esbarra nas estruturas burocráticas do trabalho na saúde, que, muitas vezes, são absurdas, por exemplo, querendo controlar tempo e destinação a uma outra equipe, deixando sem atendimento, por momentos, uma pessoa que está à morte.  Por outro lado, se outro atendimento não acontece, também pode produzir a morte de alguém.

 

O que fica claro é que a estrutura do serviço não dá conta de toda a demanda e que as decisões burocráticas e centralizadas, sem ouvir adequadamente os profissionais que estão na linha de frente, não só não resolvem o problema como complicam a situação.

 

Como se pode ver, essa ficção tem muito de caráter documental, já que desvela um setor fundamental da vida e o papel do Estado nele: o sistema de saúde, que atende à população. A Rússia não fica muito bem nessa fita, não.

 

O casal que vive o seu drama, se separando, se aproximando, se entendendo, se perdoando ou não e, sobretudo, se amando, mesmo em meio ao caos, traz um profundo sentido de humanidade e até romantismo a um mundo profissional tão complicado e desafiador.  Esse paralelo relacional nos permite respirar um pouco, rir um pouco das situações, mesmo sabendo que aquilo tudo que eles vivem é muito sério, não pode se reduzir a comportamentos inadequados de um ou de outra. Seus problemas imbricam-se com o mundo em que estão, num amálgama.

 

“Arritmia” é um bom filme, bem conduzido e interpretado, numa chave realista, que contempla também elementos absurdos, ou até surreais, como o colchão aerado que, por falta de espaço, tem de ser colocado na cozinha para separar o casal nos momentos de crise.

 




O HOMEM QUE SURPREENDEU A TODOS.  Rússia, 2018.  Direção de Natasha Merkulova e Aleksey Chupov.  Com Evgeniy Tsyganov, Natalya Kudryashova.  104 min.

 

Na tentativa de enganar a morte, você corre o risco de ser morto a pauladas.  Esta frase me parece, sintetiza o sentido do filme “O Homem que Surpreendeu a Todos”, que pode ser visto como uma fábula sombria, passada numa aldeia siberiana.  Envolve incompreensão, preconceito e intolerância quanto à questão de gênero, mesmo diante da fragilidade humana frente à morte e mesmo partindo daqueles com quem se vive uma relação familiar de respeito e amor.

 

A questão de que a mudança choca, e parece impossível de entender, jamais poderia justificar a agressão pura e simples, sem motivo.  Se fôssemos destruir tudo o que não somos capazes de entender e aceitar, acabaríamos com a própria ideia de humanidade.

 

Se o filme me trouxe essas questões importantes, é porque ele foi competente, na forma, para mostrar essas coisas.  A narrativa se desenvolve num sentido, muito claro e compreensível, para mudar de rumo, nos surpreendendo, tanto quanto as decisões do personagem Egor.  O que passa a importar agora é outra coisa e logo será outra mais, já que nada se sucede como poderíamos esperar, realisticamente falando.

 

Quando tudo parecia selado, volta a nos surpreender, restabelecendo algo que havia sido perdido.  É um belo trabalho esse, conduzido pelo casal de diretores e roteiristas Natasha Merkulova e Aleksey Chupov.  O fato é que eles conduzem muitíssimo bem a trama, surpreendem e inovam no tratamento da narrativa.  A motivação, digamos, fantástica, fabular, se encaixa com facilidade no contexto realista, produzindo um híbrido para lá de interessante.

 

Cinema russo de caráter autoral e muito boa qualidade, também no desempenho do elenco.  Por sinal, o casal de atores protagonistas é brilhante, ao passar sensações e sentimentos com um mínimo de recursos e dispensando a necessidade de palavras, a maior parte do tempo.  Para Evgeniy Tsyganov, o desafio é maior, porque é ele que tem de segurar a mudança e a surpresa na figura de um personagem que, afinal, tem duas vidas e contextos de relacionamento completamente distintos.

 

“O Homem que Surpreendeu a Todos” é um pequeno grande filme.  Excepcional na sua simplicidade de recursos que, partindo de algo trivial, chega a uma dimensão reflexiva notável.




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