terça-feira, 18 de dezembro de 2018

RASGA CORAÇÃO


Antonio Carlos Egypto





RASGA CORAÇÃO.  Brasil, 2018.  Direção: Jorge Furtado.  Com Marco Ricca, Drica Moraes, Chay Suede, Luísa Arraes, George Sauma, João Pedro Zappa.  115 min.


Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha (1936-1974), escreveu, em 1970, a peça que dá origem ao filme de Jorge Furtado, com roteiro dele, de Ana Luiza Azevedo e de Vicente Moreno, “Rasga Coração”.

O centro de toda a narrativa é a relação pai e filho, permeada pela política, por valores de vida, por estratégias de ação, com o pressuposto de que os jovens querem mudar o mundo e construir algo em que acreditem genuinamente. 

A motivação psicológica é clara: os jovens precisam se diferenciar dos pais, ter identidade própria, conquistar autonomia.  Para isso, o rapaz terá que “matar o pai”, no sentido simbólico.  Negar o pai, rejeitá-lo, tirá-lo da sua vida, momentaneamente.  Ou, pelo menos, distanciar-se dele, isolar-se.  E buscar os seus caminhos individuais.




Com esse substrato, “Rasga Coração”, a peça,  refletindo o momento de ebulição de 1968, em contraponto à opressão da ditadura militar, coloca a alternativa  hippie  de vida e de política frente à ação típica dos movimentos de esquerda tradicionais, reformista e revolucionário.  A revolução agora é outra: passa pela negação da guerra, pela liberdade, mas também pela comida, pela vestimenta, pela busca de novos padrões de comportamento e de vida. 

Esse choque geracional, no entanto, não é novo.  Repete o que foi vivido pelo pai quando filho, na juventude.  Ele fará tudo para, como pai, não repetir o que viveu como filho.  Mas conseguirá?  É um enfrentamento necessário, difícil e permanente, no sentido de se repetir ao longo da história e nos mais diversos espaços geográficos.

O filme de Jorge Furtado atualiza essa narrativa, trazendo a questão de gênero para os comportamentos.  A mãe, Nena (Drica Moraes), reage ao que imagina ser um encontro homossexual porque confunde a namorada do garoto com outro garoto, pela vestimenta “masculina” da menina.  Luca, o filho (Chay Suede), acaba pintando as unhas de vermelho e usando uma ampla saia, os novos modos de encarar o sexo estão mais descomplicados.  Participa da invasão da sua escola, em lugar das reuniões e ações políticas que visam a toda a sociedade, por exemplo.  A tecnologia também se atualiza.  As formas de comunicação mais instantâneas geram outro tipo de respostas.  Os projetos de longo prazo, como o consultório médico do futuro, já não servem.  Novos modelos de atuação médica são valorizados. Mas a rejeição do caminho planejado e acomodado já é um legado daquela era  hippie.

Vista hoje, a trama de “Rasga Coração” mantém sua atualidade.  Até porque esses confrontos pai-filho, permeados pela dinâmica social e política do país, apresentam atitudes que se repetem e se renovam.  Quando os jovens de agora lutam pela preservação do planeta e priorizam questões globais a questões nacionais ou latino-americanas, dá para entender.  O que Vianninha talvez não projetasse é que a oposição à esquerda racional e careta poderia ser não só a direita, mas uma juventude de extrema direita, violenta, com traços racistas, misóginos, homofóbicos, intolerantes.  Isso não soa como evolução, assusta.




Jorge Furtado, ao falar sobre o filme e perguntado sobre qual seria a revolução do momento, optou pela efetivação do diálogo com quem pensa diferente, combatendo o ódio e em busca do mínimo denominador comum que nos une como brasileiros.  Muito lúcido.

O talento de Jorge Furtado como cineasta não deixa margem a dúvidas.  Bastaria lembrar de “Ilha das Flores”, de 1989, o curta mais festejado e premiado da história do cinema brasileiro.  E ele faz muita coisa há décadas, na Casa de Cinema de Porto Alegre e na TV.

O elenco de “Rasga Coração” é também recheado de talentos.  Marco Ricca, o Manguari pai, é sempre um grande ator em cena.  João Pedro Zappa está bem no papel de Manguari filho, embora sua caracterização física seja um tanto caricata, não convencendo em relação à figura mostrada do adulto em que se tornou.  Drica Moraes, excelente como a mãe Nena, Chay Suede, muito bem como Luca, o filho.  Luísa Arraes mostra força e segurança como Mil.  Lorde Bundinha é uma oportunidade para o ator George Sauma extravasar seus dotes histriônicos.  Enfim, o elenco todo é bem homogêneo, e brilha.  O filme envolve, comunica e faz pensar.




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