segunda-feira, 27 de junho de 2016

BIG JATO

Antonio Carlos Egypto





BIG JATO. Brasil, 2015.  Direção: Cláudio de Assis.  Com Matheus Nachtergaele, Marcélia Cartaxo, Rafael Nicácio, Jards Macalé.  92 min.



É possível fazer poesia da merda?  As palavras do romance de Xico Sá, com roteiro de Anna Carolina Francisco e Hilton Lacerda, os planos do cineasta Cláudio de Assis, aliada à fotografia de Marcelo Durst, conseguem essa proeza.

“Big Jato”, o filme de Cláudio de Assis baseado no livro de Xico Sá, põe em evidência um limpa-fossas de uma cidade sem saneamento básico, que é o ganha-pão de Francisco (Matheus Nachtergaele), um homem rude, austero, trabalhador, que literalmente vive da merda dos outros.  Xico (Rafael Nicácio), um garoto vivendo a adolescência, acompanha o pai Francisco no caminhão limpa-fossa e se sente identificado com aquele mundo.




Também se sente atraído pelo mundo um tanto delirante do tio Nelson, artista, libertário, anarquista, que evita o trabalho pesado e se dedica a um programa musical em rádio local, papel também de Matheus Nachtergaele.  Seu irmão Francisco considera que ficar numa salinha com ar condicionado não é trabalhar.

A poesia é a verdadeira vocação de Xico, como se pode ver na relação que ele mantém com o Príncipe, papel de Jards Macalé.  O tio Nelson é capaz de ver isso, ajudar e estimular Xico a sair daquele fim de mundo, onde ele próprio se afundou.  Ou se fossilizou, como os peixes que teriam dado origem à cidade, que um dia foi mar.

Se Xico Sá criou um romance de caráter autobiográfico, dando margem a uma ficção maluca, como ele mesmo diz, Cláudio de Assis ampliou o delírio.  O Cariri cearense da década de 1970 virou a cidade fictícia de Peixe de Pedra dos dias atuais, o que permitiu ao diretor criar imagens fantasiosas e etéreas lado a lado com o ambiente hiperrealista do povoado, sua gente, sua labuta.  Coisas que se petrificam, se fossilizam, sonhos delirantes com mulheres exuberantes, fantasiosos  inspiradores dos Beatles e coisas quetais convivem em harmonia com estradas de terra, buracos, sujeira, pobreza e demais carências.  Um amálgama bastante interessante e poético.  A locação na Chapada do Araripe, entre os Estados de Ceará e Pernambuco, traz beleza e poesia adicionais à trama.




As histórias de Xico Sá têm a ver com sua própria experiência, pelo menos como ponto de partida.  São datadas, naturalmente.  Trazê-las para o mundo atual gera alguns anacronismos.  Coisas ficam fora de lugar, apesar do esforço de adaptá-las, como o encanto da máquina portátil de escrever, que seria mais romântica do que o computador.  O smartphone da menina que veio da cidade grande não pega lá, se torna uma máquina fotográfica de luxo, que em nada combina com aquele ambiente.  Uma cidade sem saneamento, sem banheiros, infelizmente, é um anacronismo cruel que ainda faz parte da nossa realidade, a um só tempo de modernidade tecnológica e de atraso dos mais primitivos.  A mescla de elementos de diferentes tempos tem o sentido simbólico de revelar essa mistura estranha, que é um dos nossos espelhos.  Mas também produz um ruído na comunicação de ideias e imagens.




Matheus Nachtergaele, um dos maiores atores da atualidade, carrega o filme e esbanja talento no desempenho duplo, do pai e do tio de Xico, personalidades muito diversas e em conflito, vivendo realidades distintas e distantes, no mesmo espaço geográfico.  Marcélia Cartaxo faz a mãe de Xico, outro grande desempenho que fortalece o filme.  O jovem Rafael Nicácio faz bem o importante papel que lhe coube, mas tem uma dificuldade na dicção, que compromete a compreensão de diversas falas dele nas cenas.  O músico e compositor Jards Macalé faz um papel que lhe cabe como uma luva, pairando sobre a narrativa. “Big Jato” recebeu diversos prêmios no último Festival de Brasília, os de ator, atriz, roteiro adaptado e trilha sonora.


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