Antonio Carlos Egypto
GRITOS E SUSSURROS (Viskningar och rop), Suécia, 1973.
Roteiro e
Direção: Ingmar Bergman, Fotografia: Sven Nykvist.
Com: Harriet Andersson (Agnes), Liv Ullmann (Maria), Ingrid
Thulin (Karin),
Kari Sylwan (Anna),
Erland Josephson (o
médico), colorido, 106 min.
O sueco Ingmar Bergman (1918-2007) foi, indiscutivelmente, um dos maiores
cineastas de todos os tempos. Sua obra
permanece atual não só pelos requintes e inventividade de suas filmagens e da
extraordinária fotografia de Sven Nykvist, com quem sempre trabalhou, mas
também porque lida com questões tão essenciais que dizem respeito a todos os
seres humanos, em todas as épocas históricas e espaços geográficos. Uma dessas questões essenciais é a
morte. A finitude da vida é a única
certeza absoluta a martelar nossa existência e para a qual temos uma gama
enorme de possíveis respostas, que vão da negação mais absoluta ao
enfrentamento mais direto, sem as muletas das religiões. Bergman se situa nessa
última categoria de respostas, daí a sua angústia e o medo que ela
provoca. Segundo suas próprias palavras:
“A curiosidade que sinto pela vida tem sido demasiado forte, minha vontade de
viver, demasiado robusta, e o meu medo da morte, demasiado infantil de tão
intenso”. (BERGMAN, 1988, pg. 94). Infantil,
talvez, mas extremamente corajoso e lúcido, como mostram as imagens e os
diálogos de quase todos os seus filmes.
Obra-prima que aborda a morte como tema, e em primeiríssimo plano, é Gritos e Sussurros. Creio que nunca antes no cinema a dor e o
sofrimento dos momentos que antecedem a morte tenham sido mostrados com tanta
intensidade e eficiência. Não apenas
pelos gritos lancinantes de dor e pelos sussurros que evocam o sofrimento que a
dor intensa traz, mas também pelas expressões que a câmera capta da doente e de
suas acompanhantes. Leitura de rostos,
mãos e expressões corporais cheias de sutilezas foram uma especialidade de
Bergman, que aqui alcançam especial relevo pelo admirável trabalho
interpretativo das quatro atrizes que protagonizam juntas Gritos e Sussurros.
O filme começa mostrando o ambiente onde tudo acontecerá, o exterior da
propriedade, um relógio, peças artísticas e objetos, introduzindo-nos num
universo onde duas mulheres dormem. Logo
se percebe que uma vela pela outra e que há mais duas mulheres na casa, uma
delas é uma criada. Closes nos trazem a
principal personagem da trama: Agnes, uma mulher que está sofrendo as agruras
que antecedem a morte.
Chegamos aos sete minutos e meio de filme, nenhuma fala e quase nenhum
som. Pura imagem, como convém ao cinema. As primeiras palavras serão escritas por Agnes: “Hoje é manhã de
segunda-feira e eu estou com muita dor...”
Isso também era dito pela expressão facial de Harriet Andersson. O clima segue quieto e aparentemente
tranqüilo, no sofisticado espaço vermelho e branco concebido para o filme. Tudo é omitido, a angústia e as tensões não
são compartilhadas.
A partir daí, Gritos e Sussurros
vai nos mostrar por meio de cada uma das personagens o que Bergman chamou de
“este emaranhado de mentiras”. (BERGMAN, 2001, pg. 89).
Anna, a criada, reza diante da foto por sua filha que Deus levou e isso
nos mostra outra face da crueldade da morte: aquela dos pais que têm de
enterrar seus filhos.
Agnes, a moribunda, pensa uma vez mais na mãe e nos conta que ela está em
seus pensamentos quase todos os dias, embora tenha morrido há mais de vinte
anos. A morte, para os que ficam, pode
ser uma lembrança permanente. Temos que
conviver com o sofrimento da perda e isso pode ser muito difícil, se encararmos
a inexistência de Deus.
Chega o médico que vai atender Agnes e o filme mostra Maria, a irmã mais
jovem, se oferecendo a ele. Ele a toca, mas recusa e sai. As reminiscências
desta relação por parte de Maria mostram tanto o médico “lendo” a face dela quanto
as relações com o marido Joakin, culminando numa tentativa de suicídio frustrada
dele, que deixa Maria paralisada. O caminho do suicídio, como possível alternativa,
decisão ou “solução” aparece corriqueiramente nos escritos de Bergman, na sua
autobiografia, Lanterna Mágica, e nos
textos de Imagens. Pode-se pensar que os filmes de Bergman
retratem uma característica depressiva do povo sueco, que consideraria
seriamente o suicídio como saída. Não me
parece que seja assim. Não se trata de
uma característica de uma ou mais realidades socioculturais, mas, sim, uma das
dimensões da angústia existencial a que estamos todos sujeitos, uma das
dimensões da morte: a imaginada, concebida como desejo e eventualmente tentada
ou realizada.
A figura de Karin, a irmã mais velha, é marcada pela postura defensiva,
tentando proteger uma frágil personalidade que não resiste ao contato. As relações dela com Agnes e com Anna em
cenas curtas revelam isso e, em momento posterior do filme, ela protagonizará
ao lado do marido Frederik e da irmã Maria momentos decisivos do emaranhado de
mentiras. Para ela, a morte é
assustadora e ela se coloca o mais longe que pode.
Anna, ao contrário, acolhe, cuida e acaricia Agnes, oferecendo seu seio
ao contato da pele. Agnes piora, Anna chama as irmãs. É impressionante como a imagem mostra em seu
rosto a expressão de pura dor. Na cena,
do escuro para o claro, vê-se que o tempo passa e a dor permanece. Ela chama por Anna, que a acolhe até que tudo
se acalme. Só aí as irmãs se aproximam,
dão banho, penteiam e lêem para ela.
A dor volta, gritos e sussurros. A morte é inexorável. “Alguém pode me ajudar? Eu não agüento!” são palavras de Agnes.
A morte se concretiza; gestos típicos dessas horas nos contam isso. Em seguida, as vestes pretas e o pastor com
sua fala característica evoca Deus como consolo. No entanto, essa fala revelará a profunda
angústia e as dúvidas que a morte provoca: “Que você saiba que língua falar
para que Deus possa ouvir” e “Reze por nós, que fomos deixados para trás com o
céu acima de nós, impiedoso e vazio” e “Que Ele dê sentido e significado à
vida”. Que esperança pode haver se a
vida não tem sentido ou significado e o céu está vazio? Por isso a morte dá tanto medo. E Bergman põe isso nas palavras do pastor
luterano...
É preciso lembrar que Bergman foi filho de pastor luterano e recebeu uma
educação rígida, que ele sempre condenou veementemente. No seu filme Fanny e Alexander, o pastor vira padrasto e tem tal requinte de
crueldade que se torna um vilão a ser queimado vivo.
Em Imagens, Bergman fala do
convívio com alguns destes valores religiosos e a idéia de Deus, um assunto do
qual ele nunca se afasta:
Meus pais falavam em devoção, amor e humildade. Posso assegurar que me esforcei, mas, durante todo o
tempo em que houve um deus em meu mundo, não pude sequer me aproximar de meus
objetivos. A humildade não era suficientemente humilde e o amor era, em todo o
caso, muito menor do que o de Cristo ou o dos santos, ou até menor do que o de
minha mãe. Quanto à devoção, essa esteve
sempre envenenada por dúvidas terríveis.
Agora que Deus não está mais presente em minha vida, sinto que tudo isso é meu, sinto devoção perante a vida, humildade perante meu destino sem
sentido e amor para com as outras
crianças também amedrontadas, atormentadas, cruéis. (BERGMAN, 2001, pg. 58).
No entanto, as questões espirituais sempre estarão presentes na sua obra
cinematográfica e em seus escritos. Em
um trecho da Lanterna Mágica: “Claro
que não acredito em Deus, mas a questão não é tão simples como parece, todos
nós trazemos um deus dentro de nós, toda a nossa vida é um mosaico que, às
vezes, conseguimos vislumbrar, sobretudo na hora da morte”. (BERGMAN, 1988, pg.
175).
Voltando à seqüência do filme, Bergman nos reporta às relações conjugais
de Karin com Frederik, relembradas por ela, já que ocorreram naquela casa
tempos atrás. Elas são formais,
distantes, gélidas. A cena mais forte do
filme, para muitos, é aquela em
que Karin utiliza os cacos de um copo quebrado para ferir
seus genitais e depois vai ao leito e mostra ao marido o que fez, lambuzando-se
do sangue que empapa sua vulva. Também há uma morte simbólica aí: a morte do
prazer, das relações conjugais, do próprio casamento, sob algumas
circunstâncias.
Aponte-se ainda o confronto de Karin com Anna, que é repreendida e não
aceita as desculpas que se seguem à repreensão. Tudo parece tão deteriorado que
não há esperança de reconstrução. Reconstrução parece ser o que tenta Maria com
Karin, após a morte de Agnes,buscando que sejam amigas, já que são irmãs.A
proposta é tentarem se conhecer, se aproximar, o que parece impossível. Karin rejeita o toque, depois acede, mas não
agüenta a aproximação. Chora e rejeita
Maria e o toque.
Karin dirá que sempre pensou no suicídio, mas que ele é nojento,
degradante e sempre igual. Ela vai do
riso ao choro numa cena, agride Maria e fala do seu próprio ódio. Grita, pede perdão, ambas choram, se tocam,
se beijam. Aproximam-se, afinal. Mais
tarde, ao final do filme, será Maria quem irá colocar a distância (e a
rejeição) na relação entre as duas, de forma agressiva. A despedida marcará essa impossibilidade,
matando uma vez mais uma relação desde sempre moribunda.
Antes desse desfecho, as irmãs decidem o que fazer com os bens materiais:
terra, casa e tudo o mais, e decidem dispensar Anna. E, gesto magnânimo, oferecem algo de Agnes,
já que ela foi tão dedicada. Para a
única que a acolhia genuinamente, uma migalha, que ela dispensa. A família
reunida, com os respectivos maridos, decide o futuro de Anna, cedendo-lhe o
restante do mês na casa e agradecendo, com perversidade evidenciada nos rostos,
jeitos e tons de voz. Maria dá algum
dinheiro a Anna, vê-se que é pouco.
Bergman não deixa escapar a crueldade que existe na relação entre patrões
e empregados, com necessidades e interesses diferentes, vivendo mundos
distantes, ainda que lado a lado, num mesmo teto. Se alguém tinha dúvida da sensibilidade
social de Bergman, ela acabou aí. As
questões essenciais e existenciais convivem com as questões sociais. Essas se inserem naquelas e moldam uma gama
de expressões, onde a crueldade deixa sua marca.
A morta (Agnes) retorna, pedindo
a ajuda das irmãs, como que representando a necessidade de “elaborar” as
questões vitais da existência mesmo após a morte. As irmãs novamente a rejeitam, com diferentes
reações e explicações, mostrando a impossibilidade eterna dessa elaboração. Revelam-se as distâncias e uma vez mais a dificuldade
de enfrentar a morte.
Quem a acolhe é mais uma vez
Anna e compõe-se uma cena belíssima, nos moldes de uma pietá. Anna, a criada, é a única capaz de
amar, já que não está presa à existência material pesada daquelas terras,
daquela casa, seus objetos, valores, posições sociais e regras de conduta.
O filme termina com duas imagens muito bem construídas que se combinam. Anna lê o diário de Agnes e se percebe mais
uma vez que ali há amor. Do diário vem
uma das poucas lembranças afetivas positivas de Agnes com as irmãs naquela
casa. Aparece, então, a imagem idílica das quatro personagens nos belos jardins
da propriedade, vestidas de branco com sombrinhas, e compartilhando o balanço
da infância. Idealiza-se o amor, o respeito e a proximidade entre seres humanos.
Uma busca interminável, mas inalcançável.
Em Imagens, Bergman se refere a
este filme como um poema: “Um ser humano deixa esta vida, mas, como num
pesadelo, detém-se a meio caminho, pedindo aos que ficam ternura,
reconciliação, libertação”. (BERGMAN, 2001, pg. 97).
Esse poema, segundo Bergman, precisaria de cores para existir em
plenitude: “Todos os meus filmes podem admitir-se filmados em preto e branco,
menos Gritos e Sussurros. No roteiro
está mencionado que imagino a cor vermelha como sendo o interior da alma”. (BERGMAN,
2001, pg. 90). Com efeito, o vermelho
parece nos pôr o tempo todo em contato com as emoções, com o coração, frágil,
endurecido, hesitante, não importa, ele está lá, expressando alguma forma de
afeto, vivido, negado ou reprimido. O
branco faz o contraste perfeito, que sugere limpeza, pureza, leveza, o que a
trama não consegue nos dar, a não ser em momentos fugidios. De qualquer modo, a beleza visual do filme,
para a qual o vermelho e o branco dominantes contribuem decisivamente, é
incontestável. Cada fotograma é um
quadro perfeitamente composto, com uma combinação de cores impecável, ou,
então, expressões faciais e corporais marcantes, também perfeitamente
enquadradas. O filme visto no DVD permite o recurso da pausa; o congelamento de
qualquer das imagens demonstra claramente essa beleza, essa precisão, essa aula
de cinema. É um filme soberbo, do ponto
de vista plástico, em harmonia com a profundidade do tema abordado.
Claude Beylie [1991, pg. 257], em sua crítica, aponta Gritos e Sussurros como uma obra
agônica, nos moldes da fórmula de Cocteau: o cinema como a arte de filmar a
morte em pleno trabalho, com cenas de horror absoluto, atenuadas por doçura. De
fato, as expressões afetivas se alternam num universo sem esperança, com muito
sofrimento físico e moral, como ele escreve na sua análise. É o fruir da
existência desesperançada diante da proximidade e da inevitabilidade da morte.
Em outra crítica a respeito de Gritos
e Sussurros, Rubens Ewald Filho faz esta afirmação: “Se por acaso uma
catástrofe destruísse a civilização, bastaria que fosse preservada uma cópia
deste filme para que os arqueólogos do futuro pudessem ter uma idéia precisa da
natureza humana”. (EWALD FILHO, 2001, pg. 81).
Claro que à primeira vista a afirmação parece muito exagerada, até
porque é peremptória, mas ela faz sentido.
Bergman alcançou nesse filme uma eficiência raramente encontrada no
cinema, ao tratar de um tema tão fundamental, tão básico e tão complexo que diz
respeito a toda a humanidade. Além disso,
se não fosse esse o filme a revelar a essência do humano diante da morte, qual
seria? Não vejo concorrente à
altura. Evidentemente, um único filme
nunca será capaz de sintetizar a natureza humana, mas as pistas deixadas por
Bergman seriam de grande valia.
Rubens Ewald Filho também chama a atenção para a luz empregada, a do
entardecer, já que não existiria nada mais aterrador do que a luz forte do sol
para Bergman. O uso dessa luminosidade
do entardecer, me parece, favorece muito a possibilidade da reflexão por parte
do espectador. E a reflexão é buscada
continuamente ao longo de toda a película.
Eu diria que a principal função desse filme é produzir uma reflexão
profunda sobre a vida. O ambiente é todo
preparado para isso, inclusive a luz.
Tanto Ewald quanto Beylie abordam, ainda, a questão das muitas
interpretações possíveis a muitas cenas do filme e a ele, como um todo. Nisso,
aliás, reside um dos pontos fortes da obra.
Pode-se adotar um ponto de vista filosófico existencial, por exemplo,
aplicar a psicanálise e até a crítica social sem jamais esgotar Gritos e Sussurros. As múltiplas possibilidades de interpretação
continuarão lá, como que a nos mostrar que muitas verdades são possíveis, ou
que a verdade, enquanto tal, não existe.
BIBLIOGRAFIA
BERGMAN, Ingmar
– Lanterna Mágica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
BERGMAN, Ingmar
– Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BEYLIE, Claude –
As obras-primas do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1991 (p. 257)
EWALD FILHO,
Rubens – Os 100 melhores filmes do século
20. São Paulo: Vimarc Editora, 2001
(p. 86 a 88)
-------------------------------
– Dicionário de Cineastas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002
(verbete Ingmar Bergman, p. 68 e 69).
TULARD, Jean. Dicionário
de Cinema – Os Diretores. Porto
Alegre: L&PM, 1996 (verbete Ingmar Berman, p. 65 e 66).
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