quarta-feira, 6 de abril de 2022

DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS

Antonio Carlos Egypto




CESÁRIA ÉVORA.  Portugal, 2022.  Direção: Ana Sofia Fonseca.  95 min.

Dizer que Cesária Évora (1941-2011) foi uma das grandes cantoras que o mundo já conheceu é fácil.  Basta ouvir qualquer de suas gravações.  E são muitas.  "Sodade" é a obra máxima, conquista o ouvinte na hora.  Pelo menos, comigo foi assim.

Seu timbre belíssimo e seu jeito espontâneo de entoar suas canções, associado a seu repertório original, composto de mornas caboverdianas, são grandes trunfos.  As mornas são canções dolentes, ritmadas, em baixo tom, que envolvem quem as ouve.  Cantadas em português e criolo, produzem um estranhamento, tanto na melodia quanto na letra, o que se torna familiar e, ao mesmo tempo, estrangeiro, para nós, brasileiros.

Cesária Évora provém do Cabo Verde, um pequeno país africano tão desconhecido que é um milagre que de lá tenha vindo uma estrela da canção mundial.  Ela colocou o país no mapa da música e o projetou a partir do talento do seu canto.  Como isso se deu?  Cesária nunca estudou música ou canto.  Simplesmente gostava de cantar desde pequena e, como agradava, percebeu que poderia ser cantora.  Sem maiores pretensões do que o aplauso dos seus conterrâneos em encontros musicais em bares e hotéis, por exemplo.  Para ela, era indispensável fumar e beber, quando se via num palco, ou entre as exibições.

Um talento natural assim acabaria sendo "descoberto" e levado para longe de Cabo Verde, aos palcos de todo o mundo, até alcançar um enorme sucesso e se tornar uma diva da música.  Isso, para uma mulher negra, africana, já em plena maturidade, é surpreendente.  E se torna ainda mais, quando se sabe do componente bipolar da sua personalidade.  Oscilando entre manias, como a excessiva generosidade a seus familiares, amigos e vizinhos, que fazia escoar quase todo o dinheiro que ganhava, e a depressão, que a mantinha em casa por períodos prolongados, sem qualquer interesse em nada.

O documentário da portuguesa Ana Sofia Fonseca trata de tudo isso com muito respeito e admiração por sua retratada, por ocasião dos dez anos de sua morte, que está sendo lembrada mundo afora.  Mostra para tentar entender como uma mulher como Cesária,  sem levantar bandeiras, desafiou o destino, rompeu preconceitos e encantou plateias de todo o mundo.  Bem produzida, mas cantando descalça, como se fosse uma excentricidade.  Na verdade, seus pés mal podiam suportar sapatos, por conta de deformidades, além de que o hábito faz o monge e quem sempre andou descalça não queria saber de sapatos, tirando-os na primeira oportunidade.

O documentário valoriza bem a obra artística de Cesária Évora, condição fundamental para justificar o filme.  Cesária projetou para todos o seu talento na música e, com ela, arrebatou as plateias.  Isso tem de estar no centro de sua vida, como aqui, de fato, está.

Uma curiosidade, além de mostrar suas mornas, o documentário traz Cesária cantando duas músicas brasileiras: "É doce morrer no mar", de Dorival Caymmi e Jorge Amado, com Marisa Monte, e "Se acaso você chegasse", de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins.




BELCHIOR, APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM.  Brasil, 2022.  Direção de Camilo Cavalcante e Natália Dias.  90 min.

Um dos maiores nomes da música popular brasileira é Antônio Carlos Belchior Fontenelles Fernandes (1946-2017), segundo palavras daquele que foi conhecido simplesmente como Belchior, cantor e compositor que não tem só um nome comprido, mas um talento muito grande também.  Belchior tem uma obra musical e poética forte, contestadora, produto talvez do coração selvagem que está no título do documentário de Camilo Cavalcante e Natália Dias.

O filme se apresenta como uma espécie de autorretrato do artista, porque montado a partir de suas performances, registros de apresentações, gravações musicais, falas e depoimentos do próprio compositor.  Ele mesmo, em filmagens recuperadas, e também no desempenho, ótimo, do ator Silvero Pereira, declamando poemas e letras do compositor.

Com isso, se resgata o grande trabalho de Belchior na música popular brasileira, desde a vinda do pessoal do Ceará para o Sul Maravilha.  Aquele pessoal, que incluía outros nomes que ficaram, como Fagner, trouxe a São Paulo e ao Rio Belchior, vindo da cidade natal de Sobral para vencer nas cidades grandes.  Vencer, não só no sentido do sucesso, como também da busca de uma renovação artística, de uma revolução jovem na música.  Que, por um lado, era seguidora dos Beatles e, por outro, voltada à realidade social e política brasileira, da tradição nordestina de Luiz Gonzaga à canção de protesto.

Belchior alcançou grandes voos, a partir das gravações que Elis Regina fez de algumas de suas canções, com tamanha força que o projetou nacionalmente a partir daí.  Ele só saiu de cena quando quis e por razões misteriosas, até sua morte em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.

O documentário "Belchior, Apenas um Coração Selvagem" é todo centrado na obra musical e poética que ele criou, fazendo excelente trabalho de recuperação e organização dessa obra, que se torna um roteiro perfeito para todos que queiram conhecer ou relembrar o legado artístico de Belchior.



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